quarta-feira, 19 de agosto de 2015

(SE EU FOSSE UM CISNE)...


Edson Negromonte

De repente, vi-me de volta à adolescência, quando eu vivia na casa de uma tia solteirona, com quem aprendi várias lições que me acompanharão pela vida toda, lições fundamentais para a idade adulta. Eu podia passar o dia como bem entendesse, ouvindo Pink Floyd, fumando um baseadinho, mas quando ela chegava em casa tudo devia estar em ordem, limpo, a louça lavada, a casa varrida, a mesa posta para o jantar. Depois da refeição, agradecíamos pelo alimento e, daí, ela desatava a falar, tomada por um espírito que tudo soubesse de moral e atitudes éticas, recitando de cor passagens do Velho Testamento, trechos de insuspeitados filósofos gregos, árabes, os quais ela não considerava hereges. Íamos dormir cedo, às oito horas, impreterivelmente. Na verdade, eu ia para a cama a essa hora, mas quem disse que conseguia conciliar o sono? Ficava a remoer as palavras terríveis da minha tia, sibilinas, as quais calavam fundo em meu coração ainda tenro, ficava também assuntando os ruídos dos bichos da noite, dentro e fora de casa, no sótão e na mata. Foi em uma noite dessas, eu estava a tentar discernir os sons de fora da casa, os quais eu julgava virem de uma mangueira centenária, próxima ao curral, mangueira que nunca dera manga, portanto, assombrada, quando fui me apercebendo de um choramingo humano, longínquo. Passei a prestar mais atenção, até ter certeza de que o choro vinha do quarto ao lado do meu. Corri, então, desesperado, ao quarto da minha tia. Ela chorava baixinho, sentada na cama, acesa a luz do abajur. Perguntei-lhe por que chorava, abraçando-a.

– Estou desempregada há várias semanas, tenho saído todos os dias em busca de uma ocupação qualquer para manter a casa... mas quem dá emprego a uma mulher velha? O dinheiro acabou e só nos resta vender o único bem que possuímos, a Mimosa.
– A Mimosa?!
– Sim, amanhã você irá à cidade para vendê-la.

No dia seguinte, rodei a feira, no mercado da praça, à procura de alguém que quisesse comprar a vaca por míseros mil reais, que não dariam nem para passar direito o mês.

– Ora, rapaz, quem vai querer essa vaca velha?
– Quanto você me paga para ficar com ela?
– Acho que eles estão te avacalhando, garoto, hehehe.
– Avacatueté? Hahahaha!

Cansado, amargurado, antes de começar o caminho de volta para casa, sentei-me à beira da estrada. Estava enrolando um cigarrinho do demônio, com o pensamento longe, quando acercou-se de mim um homem bem trajado, com ar de vivaldino, um finório, pode-se dizer. Sua proximidade me causou um arrepio na espinha, senti os cabelos da nuca arrepiarem, o que me fez ficar de sobreaviso.

– Eu venho lhe propor um negócio made in China, meu bom rapazola.

Permaneci em silêncio, segurando fortemente Mimosa pela corda.

– Troco a sua vaca por esses feijões mágicos. Pode pegá-los para se certificar se são mágicos mesmo. Você, de aparência tão inteligente, um ar tão sagaz, sabe certamente ver quando os feijões são feijões comuns, e quando feijões mágicos são verdadeiramente mágicos, não sabe?

– Ah, que essa história é tão velha...

O espertalhão depôs educadamente três grãos de feijão em minha mão. À primeira vista, não eram em nada diferentes dos outros caroços de feijão que eu já vira. Para não parecer mal-educado, olhei-os. Olhei-os mais demoradamente para não parecer ignorante. Palavra que os vi brilhar e rebrilhar ao lusco-fusco da tarde que caía. Logo, minhas convicções foram por água abaixo e a fantasia tomou conta dos meus pensamentos. Num átimo, comecei a me questionar onde começa a verdade e termina a mentira. Ou onde começa a mentira e termina a verdade. Será que o destino estava a sorrir para mim e eu, por superstições tolas, não estava a enxotar a sorte grande da minha vida? E da vida da minha pobre tia. Ela, tão boa comigo, que me tratava como um filho, não merecia que eu, por inépcia, a privasse de uma vida mais farta...

– Rico, você ficará rico com eles! – disse o homem, arrancando-me abruptamente das minhas conjecturas.
– E porque você, então, os está trocando por uma vaca velha, se esses feijões lhe trariam a riqueza? – respondi num assomo de desespero, utilizando-me do tênue fio de sanidade que ainda me ligava ao mundo real.
– Ora, meu rapaz, porque eu já sou rico, milionário. Não vê os meus trajes? É chegada a hora de passar adiante o motivo da minha fortuna, pois é assim que funciona a máquina do mundo. Como queremos manter a riqueza se não a dividimos com os irmãos necessitados que encontramos ao longo do caminho? Longe de mim a mesquinheza. Mas se não lhe apetece uma vida de fausto, luxo e riqueza, podendo ajudar as pessoas que lhe são queridas, devolva-me os meus preciosos feijões que hei de encontrar outro que por eles se interesse.

Foi o que bastou para que eu me decidisse a fechar o negócio, convicto da honestidade do cavalheiro. Não é sempre que encontramos alguém que, já enriquecido, esteja disposto a ajudar o próximo. Voltei para casa, todo contente, radiante, aos pulos. Pela primeira vez, eu tinha feito um negócio, e um bom negócio, excelente, que daria grande alegria para minha tia.

– Rico, finalmente rico! – gritei na estrada, para que todos soubessem. Imediatamente, percebi a grande besteira que tinha feito, os malfeitores estão sempre escondidos no vão das árvores à espera de incautos.

Ao chegar em nossa humilde casa, orgulhoso, um sorriso de orelha à orelha, postei-me diante de titia, a mão espalmada, onde reluziam os três feijões maravilhosos.

– O que significa isso? – perguntou-me a pobre mulher, olhos esbugalhados, a voz esganiçada: a ignorância é capaz de nos deixar aparvalhados diante do desconhecimento, diante da riqueza a espancar a nossa porta, pedindo entrada.
– São feijões mágicos, querida tia! Troquei-os pela Mimosa, com um bondoso...
– Ora, cale a boca, seu estúpido!

Eu nunca tinha visto minha tia tão irada. Deu-me um bofete e, ato contínuo, raivosa, atirou os feijões mágicos pela janela. Depois, surrou-me, como se eu ainda fosse uma criança. Fui dormir com o lombo quente, sem jantar, padecendo uma fome terrível. E eu que pensara muito mais nela que em mim, eu que só queria lhe dar uma vida mais folgada... Coimo é duro ser incompreendido.

No dia seguinte, percebi que não tínhamos realmente nada para comer. Nem mesmo pão duro, o qual titia tinha comido de madrugada, exasperada, sem deixar sequer uma migalha para mim, de propósito. De tão raivosa que estava, fizera questão de ignorar minha fome. Logo ela, que sempre me tratara como a um filho. Mas, conformado, não liguei para isso, meu coração é capaz de, sempre foi, compreender os atos impensados dos seres humanos na hora da raiva.

Lavei o rosto e olhei desconsolado pela janela. Foi quando avistei um enorme pé de feijão que se alongava verticalmente em direção aos céus. Estupefato, esfreguei os olhos e a visão prodigiosa não se desvaneceu. Tornei a esfregar os olhos, agora com mais força. O pé de feijão continuava ali, impassível, colossal. Se eu tivesse tomado um ácido, ainda vá, mas qual o quê. Chamei titia, desesperado, as pernas bambas.

– A senhora está vendo o mesmo que eu? – gritei, apontando para fora, pulando feito um macaco.
– Ora, deixe de sandice, menino! O que significa isso?
– Um pé de feijão que sobe em direção ao céu!
– Sim, isso eu estou vendo, apesar de não acreditar nos meus olhos. Como é que pode?
– Será coisa do Capiroto, minha tia?
– Beócio, não percebeu ainda que os feijões eram mesmo mágicos e que a história de João está se repetindo?
– Ah, então, dê-me o machado que vou cortá-lo porque, como disse Marx, a história só se repete como farsa...
– Estúpido, mil vezes estúpido! Idiota! – ela gritou na minha cara, esbofeteando-me. – É incapaz de perceber quando a sorte grande lhe sorri? Esse pé de feijão conduz certamente ao castelo do gigante, onde ele guarda a galinha dos ovos de ouro. E você vai até lá, para roubar essa maravilha dos contos de fada!
– Mas, titia... – tentei argumentar, usar da razão, como ela fizera comigo na noite anterior, mas ela me ameaçou novamente, agora com o punho fechado, como uma boxeadora. Achei por bem obedecê-la. E lá fui eu escalando aquela planta fantástica, depois de levar uns bons trompaços, para criar coragem, já convicto de que a história se repete, sim, contrariando o equivocado pensador alemão. As tias sempre têm razão, ainda mais quando fazem uso da força bruta.

A subida foi penosa. Cheguei à nuvem mais alta, bem perto do sétimo céu, onde se situa o castelo do gigante, no finalzinho da tarde, com um pouco de luz porque, como vocês devem saber, inteligentes que são, nas nuvens escurece um pouco mais tarde. Embarafustei portão adentro e logo me vi atravessando o salão do castelo, indo em direção à cozinha, seguindo as instruções de minha tia de que esquecesse as moedas e ouro e a harpa dourada, finitas, dando prioridade à “áurea e eterna poedeira”, segundo suas palavras. Ouvi, então, o inconfundível cacarejar de uma galinácea. Mesmo as galinhas que põem ovos de ouro fazem um escândalo dos infernos, nem mais nem menos que as penosas ordinárias. O ninho ficava ao lado do fogão, no qual a mulher do gigante cozinhava uma sopa assaz cheirosa, cujo adivinhado sabor aguçou mais ainda a minha fome de ontem, mas que me corroia como se fosse de anteontem. Como em um desenho animado, atraído pelo cheirinho inebriante do caldo grosso que a giganta preparava, descuidei e, quando dei por mim, estava aos pés da baita mulher.

– Ora, vejam só, o que temos aqui? Mais um dos ratinhos lá de baixo, que o gigante adorar comer fritinhos, os ossinhos torradinhos, croc croc.
– Por favor, não... – comecei a dizer, implorando pela vida.

Ela pegou-me rapidamente pelo fundilho das calças e ergueu-me diante dos olhos, como se eu fosse um camundongo.

– Já sei o que vieste buscar aqui: a galinha dos ovos de ouro. Certo? – disse, com um risinho zombeteiro. – Pelo menos, uma vez, a cada estação do ano, vem um dos teus amiguinhos larápios em busca dessa riqueza, desde que João deu com a língua nos dentes. Todos viraram tira-gosto para o meu marido. Mas você está com sorte, o gigante anda me batendo muito, espanca-me todos os dias, desde que arrumou uma namorada, uma guria mais nova; o trouxa está atravessando a crise dos quatrocentos anos. Ele vem para casa só para comer, a ninfeta não sabe cozinhar. Cansada de tanto apanhar sem nada dever, resolvi me vingar, só não sabia como. A tua chegada me deu uma boa ideia, vou ajudar-te a roubar a galinha encantada, o seu bem maior. Assim, o gigante será penalizado e quero ver que mulher vai querer aquele traste sem dinheiro. Ouça, já vem aí o gigante!

Imediatamente, a giganta enfiou-me decote adentro, escondendo-me entre os seios gordos e fartos.

Ao assomar à porta da cozinha, o brutamontes trovejou:

– Estou sentindo cheiro de menino!
– Ora, deixe de besteira, marido, você já deve ter comido todas as crianças de lá de baixo. Ou bebeu além da conta!
– Pare de tagarelar, mulher, e sirva-me logo esse caldo, que estou morto de cansaço e quero ir logo para a cama, se não quiser levar umas boas bordoadas.

Enquanto isso, eu permanecia ali quietinho, quase sem respirar, sentindo-me como Gulliver, colocado entre os seios suarentos das gigantescas cortesãs de Brobdingnag. Lembrei-me também do aventureiro de Swift cavalgando o bico do seio de uma das damas de companhia da rainha. Veio-me ainda à mente, nesse deleitoso momento de enlevo sensual, a sombra dos seios da giganta de Baudelaire. Foi, então, que, nesse torvelinho de imagens, um arrepio perpassou a minha espinha. Como não evocar os peitos assassinos de Chesty Morgan? Mas como o gigante era um perigo bem maior e certo, achei por bem ficar sem dar piti no meu sufocante esconderijo.

– Continuo sentindo cheiro de pirralho fedorento!
– Vai dormir que você ganha mais, gambazão, não há menino nenhum por aqui.

Logo em seguida, de bucho cheio, o gigante estava resfolegando, roncando que nem um porco capão. Então, a bondosa giganta trouxe-me à luz da vela que bruxuleava na mesa da cozinha.

– Aja com cuidado, aproveite a noite para levar daqui essa galinha; à noite, as galinhas encantadas não cacarejam.
– Dessa, eu não sabia...
– Você é jovem, há muitas coisas que ainda não sabe. Por exemplo, nunca traia uma mulher porque a mulher traída é capaz das maiores atrocidades.
– Mas você não pode ficar aqui, venha comigo! – disse-lhe, cavalheiresco, pois que, aos 17 anos, a intimidade e o calorzinho daqueles seios enormes tinham despertado em mim uma repentina paixão. Imagine que bela figura eu faria, rico e com um mulherão daquele.
– Não, eu devo ficar aqui para assistir a desgraça do gigante quando ele acordar e perceber que não tem mais a sua galinha mágica. Só não esqueça de, quando chegar lá em baixo, cortar o pé de feijão, para que o meu pobre marido não possa ir no seu encalço... Vá, antes que eu me arrependa!

Enfiei a galinha em um saco e despenquei pé de feijão abaixo. Ao chegar ao solo, apanhei o machado e cortei-o pela raiz.

Minha tia, como se pode deduzir, ficou radiante com o meu retorno, são e salvo. “Nossa vida de pobreza está no fim”, gritava ela. Só não acordou toda a vizinhança porque não tínhamos vizinhos, nossa casa era tão distante de tudo e de todos que posso dizer, sem medo de errar, que ficava no cu do mundo. E a vida de miséria acabou-se mesmo. Passamos a fazer quatro refeições por dia, incluindo o lanche da tarde, ou melhor, o chá das cinco, tal e qual nobres ingleses. E a galinha, tratada com a mais cara das rações, balanceada, enriquecida, ômega isso, ômega aquilo, tudo de direito, chegava a botar, algumas vezes, mais de um ovo por dia. Ouro puro, 24 quilates! Logo, estávamos morando em uma mansão na cidade, minha tia ia duas vezes por semana ao salão de beleza, pintar as unhas, o cabelo, fazer peeling, chapinha, academia, essas coisas de gente rica e desocupada. Titia deu um upgrade no visual, siliconizou os seios e o bumbum. Não posso dizer que tenha ficado bonita, mas como dinheiro chama dinheiro, acabou atraindo as atenções de um magnata da soja que por ela se apaixonou. Casaram-se em segredo e foram embora do país, desapareceram até da minha vista. Sabe-se lá para onde foram os dois pombinhos, se Bahamas, Miami, Las Vegas ou coisa parecida. Mas minha tia, precavida como ela só, levou consigo a galinha dos ovos de ouro, sem nem me avisar. Não posso dizer que a tenha roubado de mim, o que sei é que minha tia era de uma sabedoria salomônica: como repartir um ser vivo em dois e não matá-lo? Logo, para que não perdêssemos os dois, ela achou por bem levar a sua parte junto com a minha. Mas a sua bondade e preocupação com o meu futuro fez com que deixasse, para mim, um ovo de ouro, o qual eu soube administrar, vivendo modestamente: voltei à nossa antiga casa de madeira no fim do mundo, voltei a fazer uma única refeição por dia, porém substanciosa. O resto do dia passava comendo guloseimas, como jujuba e paçoquinha, para enganar a larica. Assim, novamente a vida me era risonha, eu não gostava mesmo da vida nababesca e ostentatória que passáramos a levar; o meu ideal de vida era mesmo passar o dia ouvindo Pink Floyd e fumando uma ganja. De minha tia, nunca mais tive a mais breve notícia, espero que esteja feliz, ela merece. Eu, por outro lado, depois que troquei no ourives a última raspinha do ovo de ouro que titia me deixou, tive, mesmo contra os meus princípios, que cavar um ganha-pão. Foi assim que fui parar na Johnston & Johnston. Durante muito tempo, dediquei-me de corpo e alma ao emprego, não cheguei a ganhar o prêmio de operário padrão, mas posso assegurar que estive perto disso.

Apesar da boa posição na multinacional, eu pedi demissão quando soube, através de um colega de trabalho, o qual, fiquei sabendo mais tarde, estava de olho no meu cargo, que o maior fabricante de fraldas descartáveis para bebês é também o principal fabricante de camisas de Vênus. Como pode isso? É, no mínimo, uma incongruência. Sou um errado mesmo nesse mundo de paradoxos. Não admito contradições, tornei-me um homem sério, graças à educação rígida que minha tia me proporcionou. Considero-me um paladino. Resultado: pedi as contas; eu não podia, de forma alguma, compactuar com tamanho absurdo. Estou novamente desempregado, mas acredito na boa-vontade de um amigo, que indicou meu nome para ser pastor na Igreja das Sacras Sementes de Tangerina dos Últimos Dias, uma das poucas instituições religiosas idôneas neste país. Enquanto isso, graças ao salário-desemprego, sigo pitando o meu cigarrinho de maconha e ouvindo Pink Floyd; Deus é pai.

If I were a swan, I’d be gone...

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

O MENINO DO CHAPÉU DE SAPO


Edson Negromonte

Esta história que ora contarei é muito antiga, há muito tempo é contada e, durante muito tempo será contada, das mais diversas formas, nas mais variadas línguas e dialetos, por toda a eternidade. Essa história faz parte da natureza intrínseca da humanidade, seja nos primórdios de um tempo em que o homem ainda não tinha dominado o fogo e temia a escuridão da noite, seja em um futuro que nem o mais atilado dos perscrutadores divinatórios jamais alcançará sequer supor. Portanto, não atribuam a mim a sua autoria; eu a entrevi em um relâmpago momentâneo em que a mente diurnal cedeu espaço ao negror subjacente, como outros antes de mim perceberam, e outros mais certamente perceberão e a recontarão com suas próprias e lindas palavras, mais adequadas, mais refinadas, às gerações do porvir.

Esta é a história do Menino do Chapéu de Sapo, que vivia em estreita harmonia com o Universo. E o Universo, por sua vez, sentia-se gratificado por ter o Menino do Chapéu de Sapo em consonância com as forças cósmicas. As crianças, à imitação dos pais, quando o percebiam, aproximavam-se do menino e perguntavam, curiosas:

– Quem é você? De onde você vem?

– Podem me chamar de Menino do Chapéu de Sapo, como toda gente tem me chamado, vem me chamando, desde a aurora dos homens. De onde eu venho? Das brumas dos sonhos, essa região onde tudo pode acontecer e para onde vão as mentes cansadas dos homens depois de um dia extenuante de trabalho ou os corações exauridos de amores não correspondidos, ou talvez eu venha do sofrimento dos artistas incompreendidos que vêm antes do seu tempo para abrir as portas do amanhã para os contemporâneos. Venho da região à qual os homens vão em busca de lenimento para as suas dores. Eu sou aquele que às crianças é dado conhecer, na tenra idade, para que não esqueçam que, em seus momentos de amargura, na idade adulta, elas têm para onde correr, a quem recorrer. Eu ficarei gravado em suas recordações mais íntimas, embora disso não lembrem com nitidez, mas intuitivamente vocês seguirão, como buscadores, na noite escura de suas almas, a estreita estrada que leva ao jardim circular onde incessantemente desabrocham as rosas vermelhas da compreensão da missão de cada homem na terra. É necessário que, agora, brinquemos sem preocupação, pois somente uma única vez as crianças têm acesso a esse momento de folguedo, o qual deve ser e continuará sendo raro, uma única vez ele se manifestará. Mas não pensem que, por ser fugaz, esse momento deixará de ficar gravado em suas mentes: todas as vezes que um adulto desesperançado chegar à beira de um banhado e avistar um sapo, e ouvir o coaxar desse sapo, ele terá um vislumbre do caminho, da senda deveras estreita que o levará à compreensão da sua estada nesse plano terreno, à compreensão do Universo, do seu papel no grande esquema cósmico, se ele não se acovardar diante do espinheiro selvagem que obstrui o caminho ao castelo onde dormem os convivas da grande festa... Então, se esse homem ultrapassar todos os perigos, sendo o maior deles a sua própria descrença, descrença essa gerada pelo medo do desconhecido, ele não mais temerá o misterioso Universo porque ele é e será, como sempre foi, o próprio Universo, com todas as suas leis eternas e imutáveis, amorosas e maravilhosas. Eu, o Menino do Chapéu de Sapo, sou a marca indelével que se fará em seu coração de criança e que as pessoas, no dia a dia, no afã de a todos sujeitar à sua pequenez, farão questão de apequenar, de ridicularizar, até de me apagar, como se fosse possível, seja nas escolas, nos templos ou mesmo no seio familiar. Portanto, continuem brincando como se nada tivesse acontecido, como se eu fosse uma aragem que tivesse passado por seus corpos e, momentaneamente, apenas momentaneamente, os enregelasse. Eu sou a Morte que leva à Vida, à verdadeira Vida, à Vida que todos os homens, mais cedo ou mais tarde, terão de viver.

sexta-feira, 31 de julho de 2015

EXCERTO DA VIDA DE UM PINTOR CUJO NOME NÃO MAIS INTERESSA


Edson Negromonte

Parecia um bando circense, aquela gente. Não que houvesse, entre eles, deformidades, os inevitáveis freaks, o que evidentemente chama atenção e faz que os associemos à trupe de um circo mambembe, desses que perambulam pelas cidadezinhas do interior. Mais porque aquela gente vestia-se com várias cores, esmeravam-se nas combinações, pareciam saídos do guarda-roupa de um teatro, mesmo o irmão mais velho, o qual era o responsável pela família, depois que o pai foi internado em um asilo, como insano, após atear fogo a um exemplar de O Tico-tico, autografado por Ruy Barbosa, por ordem direta do general-presidente Garrastazu, fã do Águia de Haia. A mãe das crianças era catatônica; as meninas da família eram as encarregadas de vesti-la e lhe dar banho todos os dias. Depois do asseio matinal, a mulher era colocada em frente à TV, permanecendo horas a fio exposta à programação da Globo. Fazia as necessidades ali mesmo, na poltrona, o que emprestava um cheiro nauseabundo de urina fermentada a todo o terceiro andar.

Apesar disso, era uma gente agradável. Pelo menos, para mim. Desde que a minha família mudou-se para o sobrado, depois que papai perdeu “as graças do mar”, eu me enamoraria de uma das meninas, mas o meu encantamento não era tanto pela beleza física de Maria do Rosário, a qual ela tinha de sobra. O que mais me seduzia era muito mais a combinação de cores das roupas que ela vestia. (Não sou hiperestésico, mas o meu senso estético me proíbe de olhar para alguém vestindo uma combinação de verde e azul, chego mesmo a ter ânsias de vômito). Até hoje, sou capaz de sentir prazer quando deparo, em algum momento do dia, seja em um outdoor ou em um desenho infantil, com as combinações primárias de amarelo, azul e vermelho. Um dia, ela vestia camiseta amarela e short vermelho. No outro, a camiseta era azul e o short amarelo. Ah, vermelho-da-China, amarelo-ouro, azuis celestes, em contraste com os cabelos negros de Rosário... E, assim, ela ia, sem disso ter consciência, dando asas à minha ainda incipiente teoria estética. O que mais me dava satisfação é que aquela gente não usava botões. Suas roupas simples dispensavam essas coisas horríveis que os homens primitivos inventaram a partir das singelas conchas do mar: os botões. Odeio botões.

Nosso caso de amor teve fim exatamente no dia em que ela apareceu, radiante, na escada entre o segundo e o terceiro andar, no primeiro dia de carnaval, usando um vestido branco que ela mesma confeccionara, cheio de botões, sem repetir cor nem formato. Botões em profusão pendiam desavergonhadamente, como despudoradas verrugas coloridas. Desse momento em diante, não pude mais sequer olhar para Maria do Rosário. Sou incapaz de precisar o início da minha ojeriza a esse artefato nojento que chamam de, bleargh, botão. A simples ideia de tocar em um deles leva-me à exasperação. A primeira lembrança do horror que os botões me causam leva-me aos três anos de idade, quando um vendedor bateu à nossa porta e, enquanto ele explicava a minha mãe a excelência do seu produto, um eletrodoméstico qualquer, eu não podia despregar os olhos da sua camisa, aliás, dos miúdos botões brancos da sua camisa azul-marinho, os quais se assemelhavam a minúsculos comprimidos que, em mim, provocavam intensa salivação. Comprimidos que eu não conseguia engolir, que se amontoavam em minha garganta, sufocando-me. E ninguém ali me socorria, todos ali ignoravam o meu suplício.

Nunca contei a ninguém sobre essa minha fobia; as pessoas normais são ávidas por levar alguém que, como um corpo estranho, destoa dos padrões aceitáveis para a vida em sociedade. E eu tenho muito medo de psiquiatras; para eles, todo mundo é, no mínimo, bipolar. E, hoje em dia, ser bipolar é quase um xingamento. E o que diriam de alguém que odeia botões? Recentemente, descobri que isso é quase uma doença, à qual deram o pomposo nome grego de koumpounophobia. As estatísticas, se é que se pode confiar nelas, dizem que a cada 75.000 pessoas, uma é koumpounofóbica. Mas esse desequilíbrio interno só veio a público depois que o magnata Steve Jobs, da Apple Inc., declarou, um pouco antes de morrer, em uma entrevista, que ele era portador dessa fobia. Mesmo assim, os koumpounofóbicos não vieram a público, continuaram mocozados. Não são bobos, sabem que só os famosos e bem-sucedidos podem ser excêntricos. Neil Gaiman, o espertinho, se utiliza, em “Coraline”, de sinistros botões pretos no lugar dos olhos para as criaturas do outro lado, a gente de um mundo paralelo. Ouvi dizer também que, em Curitiba, existe um artista performático que coleciona botões. Onde já se viu tamanho despropósito?

Foi assim, por causa dessa incompetência para a vida, o maldito horror a botões, que eu perdi para sempre Maria do Rosário, o grande amor da minha vida. E, o pior de tudo, é que ao lembrá-la, nas longas horas de solidão a que estou exposto, devido à minha ocupação profissional, a imagem que dela me vem à mente é justamente aquela em que ela está de vestido branco, forrado de botões coloridos, de todos os tamanhos e formatos. A minha profissão? Sou faroleiro. Com o tempo à minha disposição, medito muito sobre a estética de Miró, a teoria das cores de Goethe, a cor inexistente de Israel Pedrosa...

quarta-feira, 15 de julho de 2015

VOCÊ JÁ EXPERIMENTOU?

Edson Negromonte

Na minha pequena cidade, à primeira vista, pode parecer que nada acontece, devido ao ritmo em descompasso com o restante do mundo. Mas isso é somente impressão de gente desavisada, como esses caixeiros-viajantes que só por pernoitarem em um lugarejo qualquer dizem que o conhecem. Para se conhecer uma cidade, por menor que seja, é preciso, no mínimo, uma certa intimidade, um não sei quê de amante. Mas para conhecê-la a fundo faz-se necessário que de tanto amá-la não precise mais nem oferecer flores, mas mesmo assim surpreender a amada com flores as mais singelas, roubadas de um oportuno jardim oculto no caminho. Minha pequena cidade tem um pequeno porto, que é por onde todas as coisas importantes, as coisas dignas de nota, chegavam. Para mim, continuam chegando. Nessa pequena cidade, eu sou eternamente adolescente, perambulo por ela a pé, de bicicleta e, às vezes, até batendo asas. Sim, na minha cidade, eu sei voar. Adejo, faço loopings, acrobacias, dou rasantes no oceano. Piruetas no ar. Sigo esvoaçando, olhando tudo do alto. Às vezes, pairo de leve, deixando-me levar pelas correntes de ar e, como em um desenho animado, desafiando as leis da física, para despeito de todos os outros seres voadores, alados, não só os pássaros, os anjos inclusive, viro de barriga para cima e deixo-me levar; um exibicionista.

Aconteceu que, em um final de tarde, morna, dessa mornidão que só as pequenas cidades à beira do mar sabem ter, eu pousei no atracadouro, na forma de um albatroz que vira em uma ilustração hipercolorida, em uma enciclopédia que já era antiga no tempo dos meus avós. Não, não um simples albatroz, como eu sei que você está imaginando, mas um albatroz-de-sobrancelha, de belo bico amarelo. E ali fiquei, a observar pontos indistintos no horizonte, até que um deles, em especial, chamou minha atenção. Este ponto foi se aproximando cada vez mais, lentamente, até que se deixou reconhecer como um barco, uma embarcação, que foi se aproximando mais e mais, crescendo mais e mais, chegando cada vez mais perto e, então, tornou-se um navio. Portentoso navio negro, de carga e passageiros. Como é costume entre os nativos da minha pequena cidade à beira do mar, eles acorreram ao cais para ver a descida dos passageiros, essa gente enfatuada, enfatiotada e enfastiada, como se fazem parecer os passageiros de um transatlântico aos olhos ingênuos dos observadores, daqueles que, no seu entender, vêm de terras as mais longínquas. Porque, para nós, tudo é distante, muito distante, já que o umbigo do mundo é aqui. Com seus indefectíveis pincenês, esses turistas aproveitavam o tempo ocioso entre o embarque e desembarque de carga, às vezes horas, outras vezes dias, para experimentar os sabores locais, como a bala de banana ou o bolinho de camarão. Ou um delicioso ensopado de bagre. Ou uma casquinha de siri, acompanhada de uma batida de maracujá. Para a noite, sopa de tartaruga.

Foi, então, enquanto eu, irrequieto, estava pousado na boia de sinalização, que vi descer do navio um conhecido, alguém que fazia parte da minha família eleita, alguém a quem só eu reconhecia: um negro de quase dois metros. A altura, a cabeleira despenteada, a imponência e o alheamento lhe emprestavam ares de príncipe africano. Aquela fisionomia... Sim, com certeza, eu já o tinha visto! Sim, nas capas dos discos e nas revistas de música. Com meu passo desengonçado, corri em seu encalço. Chamei-o: Jimi! Jimi Hendrix! Ele virou-se lentamente em minha direção, sem estranhar que um albatroz-de-sobrancelha soubesse o seu nome terreno, e pôs o dedo indicador nos lábios, em sinal de silêncio.

Naquele tempo, eu ainda era livre para o inusitado, álibi que somente a pouca idade nos concede. Como um gângster de filme americano, Hendrix carregava para lá e para cá, por onde ia, sem dele se desgrudar, o estojo de uma guitarra, o qual parecia mais pesado que o usual, como se portasse metralhadoras ou bombardeiros, napalms, gritos de dor, lágrimas, a pele dos inocentes se desgrudando dos corpos em chamas... Eu, em meu tenro desconhecimento da alma humana, perguntava a mim mesmo por que ninguém o percebia. E se o percebiam, percebiam através de um farfalhar diferente das palhas do coqueiro, fingindo ignorar o novo com uma estridente risada interna, silenciosa somente para quem ri. A arma das mentes comezinhas é o riso, mesmo que o riso silencioso, o mais perigoso, o riso covarde, o pouco-caso, assim como até hoje fazem as hienas da obviedade diante de uma tela de Picasso ou ante a fonte de Duchamp. Ou perante “Voodoo Child (Slight Return)”. Como aquela gente trabalhadora, acostumada a dormir cedo, ciosa dos seus princípios materialistas, suportaria a visão do príncipe negro acompanhado por um albatroz-de-sobrancelha? Hoje, com a idade, eu compreendo o mecanismo de defesa dos meus conterrâneos. Muitas vezes a ignorância nos livra do perigo de enxergar além do cotidiano; o cotidiano é confortável, dá segurança. O desconhecido nos lança em direção a mares habitados por seres fantasticamente perigosos. Foi, então, quando o sol começava a se esconder por trás das montanhas e o céu atingia um nível intenso de púrpura, colorindo a água do mar das mais diversas cores e tons, cores ainda inominadas, que ocorreu o milagre: sem emitir sons, Jimi Hendrix chorou. Debruçado na amurada, o príncipe negro chorava. E suas lágrimas, conforme caíam no chão, iam se transformando em morangos silvestres, pequeninos morangos silvestres, luminosos. Embora as crianças da terra não se deem conta disso, quando elas se deliciam com os deliciosos morangos silvestres, cujo sabor jamais se desgarrará das suas memórias de infância, elas estão inocentemente saboreando as lágrimas de Jimi Hendrix.

O que acabo de revelar é uma acontecência de meados dos anos 70 do século passado, quando eu ainda era um adolescente. Mas como (você dirá, fazendo as contas), se Jimi Hendrix morreu no final do ano de 1970, em setembro? E eu lhe direi, então, com toda a segurança de que sou capaz, que ele faleceu, na verdade, em 27 de novembro de 1942. O que vem depois é uma ilusão à qual nos apegamos para continuar uma vida que não é a vida propriamente dita, mas que, sem tal ilusão, morreríamos, se é que a morte realmente existe. Se é que tudo não passa de vida, somente vida, vida manifesta em outras formas de vibração, em planos que não discernimos pela impossibilidade de chorarmos morangos silvestres diante de um pôr do sol. Apesar de ainda longe, chegará o dia que todos seremos capazes de perceber essas nuances, assim como somos hoje capazes de compreender, não ainda de apreender, as sutilezas cambiantes da Nona Sinfonia, de Beethoven, a qual os seus contemporâneos diziam ser impossível executar, que aquelas notas não existiam, eram inalcançáveis, principalmente as do coral, que aquilo só podia ser obra de um surdo... Precisou, então, que a humanidade evoluísse para desfrutar a beleza que, naquela época, só Beethoven percebia.

Hoje, quando eu digo, com toda convicção, aos meus clientes que a minha delicada geleia de morangos silvestres tem origem nas lágrimas psicodélicas de Jimi Hendrix, quando de sua passagem pela pequena cidade de onde nunca saí, eles pensam que, no mínimo, estou fazendo blague ou, então, que sou mais um maluco.

– Mas, então, por que você deu o nome de Ingmar à sua fabriqueta? E não de Hendrix? Ou Jimi? – pergunta uma cliente.
– Bem, isso já é outra história! – respondo, com um sorriso.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

DR. WELLINGTON



Edson Negromonte

Essa é do tempo em que o trem era o principal meio de transporte da grande maioria dos habitantes do País. Para os pobres havia a classe econômica e, para os ricos, os vagões especiais da primeira classe, com grande luxo e conforto; enquanto os pobres viajavam em bancos de madeira, no toco-duro, como se dizia então. Mesmo na estação, a diferença de classes sociais era nítida, não só pelas vestimentas, mas principalmente pelo movimento daqueles que iam embarcar: enquanto os pobres se acotovelavam, falavam alto, puxavam as orelhas das crianças, os ricos mantinham-se à parte, falando baixo, rindo baixo e olhando por baixo de suas lentes, com desdém e reprovação, para os seus “irmãos” desfavorecidos pela sorte. Mas quanta vida naquele ajuntamento de gente pobre que nem bem o trem chegava, já ia se despedindo dos parentes, cheios de recomendações. No meio dessa gente simples, sem grandes aspirações, o cotidiano já era um fardo sobremaneira pesado, é que doutor Wellington sentia-se satisfeito, participando das conversas, mais escutando que falando, estar com o populacho lhe fazia feliz. Deliciava-se com essa gente pequena, de sonhos pequenos; gente miúda, capaz de gestos os mais nobres, mas também de pequenezas as mais sórdidas. Dr. Wellington nunca fizera questão de enriquecer com a medicina, e bem que poderia, como todos os seus colegas tinham feito. Não via torpeza nisso, mas não era essa a sua índole. Era, ali, em meio ao bodum dos homens e do talco Palmolive das mulheres que ele podia fumar tranquilamente o seu cigarrinho de palha, sem a recriminação dos olfatos sensíveis. Junto com o bom médico, em visita à capital, ia sua esposa Cinira: alma boa, benfeitora dos pobres, a companheira ideal daquele homem que levava o juramento de Hipócrates ao pé da letra. Junto à arraia-miúda é que sentiam-se em casa.

Dr. Wellington era pequeno, de baixa estatura, os cabelos brancos, revoltos, nariz aquilino, um tipo franzino, gostava de contar casos, que dizia verídicos, tendo como ponto final uma espécie de grasnado, à guisa de risada, arrematado por um curto acesso de tosse. Seu amor pela medicina, aliás, pelos doentes e a consequente cura, não o fizera rico, mas também não se podia dizer que vivesse mal, bastava-lhe o necessário a uma vida honesta e prazenteira. Quando o homem é capaz de ir abrindo mão, ao longo da vida, dos supérfluos que a sociedade de consumo inventa para lhe aprisionar cada vez mais, ele sabe que está no caminho certo para a felicidade. Não tinha nenhum apreço em subir a serra de automóvel (não que tivesse um, mas sempre havia quem lhe oferecesse carona), gostava mesmo era de ir de trem, onde desfrutava da companhia daquele a quem se dedicava de corpo e alma: o homem do povo, essa abstração para os intelectuais de gabinete, mas não para ele. Para ele, o homem do povo era tangível, palpável, uma realidade indiscutível. Dr. Wellington era clínico-geral, toda a população de Torres do Pilar o queria bem. À sua passagem, o saudavam: Doutor! Doutor! Dava com a mão, sorrindo, e seguia caminho, com a inseparável maleta preta.

A viagem transcorria dentro da normalidade, os solavancos habituais, os vagões jogando de lá e para cá, de cá para lá, alternada e harmonicamente, como em um jogo infantil, puxados pela maria-fumaça, que ia resfolegando serra acima, o apito soando estrepitoso a cada curva, ostentoso a cada estação... Foi, então, que, na estação de Pedro Torres, entrou uma senhora com os bofes virados, ralhando e levando pelo braço um piá de aproximadamente cinco anos. Mas o que realmente chamava atenção não era o mau humor da mulher, que gente azeda tem em todo lugar, a qualquer hora do dia ou da noite, era mesmo a cabeça do menino, toda envolta em gaze. Era gaze sobre gaze, camada sobre camada, sem uma brecha sequer, por menor que fosse, que deixasse adivinhar a cor do cabelo da criatura. As crianças têm, por natureza, a cabeça grande em relação ao corpo, mas a daquele menino era enorme, descomunal. E a gaze, branca, só fazia torná-lo quase uma aberração; a mãe, preocupada em não chamar atenção para o defeito da criança, acabara transformando o filho em uma atração circense, um projeto de múmia, uma espécie de homem-elefante. O que mais constrangia as pessoas era um calombo do lado direito da cabeça do menino, um único e protuberante calombo qual se projetava como um bulbo, o tubérculo de uma batata inglesa. Podia-se perceber dó e curiosidade, um misto de culpa cristã, nas faces dos passageiros comovidos. Apesar disso, de todo sofrimento, o menino era de uma vivacidade a toda prova: os olhos dele não tinham parada. Ao lado da mãe, seguro pelo braço, permanecia quieto, a contragosto, com o ombro erguido e parecia que, a qualquer momento, saltaria inopinadamente para o corredor, como um boneco de engonço. As sardas, os lábios com um inexplicável ar de zombaria, os irrequietos olhos azuis eram a comprovação de que as crianças, por mais doentes ou defeituosas que sejam, estão sempre dispostas à vida. Nelas, graças a Deus, a energia vital se manifesta em toda plenitude. As crianças doentes transbordam essa energia, sensibilizando os que estão à sua volta, arrancando sorrisos comovidos. Nem o mais sisudo dos homens é capaz de não se comover com essa manifestação da natureza, sorrindo-lhe com os olhos, por cima do jornal. Aos poucos, as pessoas foram se acostumando com a presença do cabeçudo, o pequeno monstrinho já não era mais novidade; uns aproveitavam para retomar a leitura de um livro, outros admiravam a paisagem, mas a grande maioria aproveitava para cochilar, embalada pelo balanço da composição.

Quando menos se esperava, num solavanco do trem, o menino, de um pulo, qual mico de circo, liberta-se das garras da mãe. A mulher, desatinada, berra:

– Volte já aqui, moleque do Capeta!

O menino corre de uma ponta a outra do vagão, equilibrando como um malabarista a tremenda cabeçorra.

– Volte aqui, inferno! – brada a mãe.

E o menino nem aí. Puxa as tranças de uma mocinha, com uniforme de normalista, rouba o cachimbo de um senhor e tira umas baforadas antes de arremessá-lo de volta no colo do dono, imita galo cantando, galinha cacarejando, cachorro ganindo, o que de imediato causa risos em todos, coisa que irrita ainda mais a sua mãe. A mulher, desesperada, sai no encalço do filho, que agora pula de banco em banco, macaqueando e fazendo fusquinha para ela, mostrando a língua, até que o bagunceiro, num passo em falso, escorrega e cai no meio de dois bancos, virados de frente um para o outro. Ela, aproveitando-se desse momento, agarra-o pelo bracinho. A primeira coisa que a desalmada faz é desferir, com toda a força de que é capaz, um croque certeiro na cabeça da criança, que cambaleia. O barulho choco faz estremecer os presentes. Não satisfeita com o primeiro golpe, possuída, desfere outro, e outro, e mais outro, sendo que este último acerta justamente a protuberância da cabeça da criança. Com cara de grande dor física, a mulher leva-o pelo braço, sob uma avalanche de croques e socos, todos indefectivelmente na cabeça, certeiros. O menino tonteia, cambaleia, oscila, balança, em evidente desequilíbrio, mas mesmo assim ri e faz caretas para a mãe. Botando a língua pra fora, ele imita sons de peido. A pobre criança parece sentir satisfação nisso, sorri a cada pancada.

– Ainda faz pernacchia, cachorro? – Toma. – Não saia mais daqui, senão eu te mato! – ameaça a mulher, arfante e chorosa, indiferente ao que pensassem dela.

Indignadas, as pessoas comentam entre si a tamanha violência a que tinham sido expostas, um teatro dos horrores.

– Na cabeça!
– Seja, na cabeça...
– Tadinho!

O menino ergue os olhos para a mãe, e sorri.

– Atentado, quer apanhar mais?

Então, Dr. Wellington, autoeleito o porta-voz da indignação dos passageiros, levanta-se.

– Minha senhora, como médico que sou, peço-lhe que não bata mais na cabeça dessa criança. Bata em qualquer outro lugar, na bunda... mas na cabeça, jamais. Nem em crianças sãs, deve-se bater na cabeça, aí estão os...
– Ah, o senhor está com pena dele, é? Deveria sentir pena é de mim! De mim, que aguento esse peste todos os dias!
– Minha senhora...

A mulher, botando fogo pelas ventas, começa a desenrolar a cabeça do filho.

– O que ela está fazendo?! – pergunta-se, curiosa, a plateia, perdão, os passageiros.
– Olhem, olhem bem, essa é a cabeça inchada, a cabeça deformada da pobre criança! Estão vendo, vejam bem, a cabeça dele está é entalada num penico. Ele tava pulando na cama e caiu de cabeça no penico. Ele não me dá um minuto de sossego. E eu é levando esse encapetado no hospital... Não fica quieto nem com um penico grudado na cabeça. O senhor acha que uma mãe merece isso? Peste! Peste, peste...

sexta-feira, 12 de junho de 2015

GUARDADOR DE NINHARIAS


Edson Negromonte


Poderia dizer que sou um colecionador de ninharias, mas seria uma inverdade. Colecionar exige ordem, coisa que não faço questão nenhuma de ter. Colecionar exige álbuns, pinças, luvas etc., um aparato. O que faço poderia até ser chamado de amealhar, mas amealhar implica acúmulo, o simples acúmulo, juntar por juntar... E o pior, amealhar dá ideia de ganância. Não é bem esse o meu caso. Talvez guardador, sim, “guardador de ninharias” seja mais adequado àquilo que faço, além da expressão exalar um aroma suave de poesia, o que me agrada muitíssimo: fragrância de rosas, sim, de rosa musgosa da Índia. Não sou um guardador compulsivo, não guardo ninharia qualquer, assim como guardar por guardar, sem discernimento. A grande parte das minhas ninharias é literária, mas não só literárias, mas principalmente aquelas que os livros encerram em suas páginas (isto foi o que eu quis dizer com “ninharias literárias”), já que sou um leitor contumaz, mas essas ninharias também podem vir de histórias em quadrinhos, de letras de música e de diálogos de filmes, o que implica quase sempre literatura. As minhas ninharias são aquelas que, durante a “leitura”, fazem-me parar e pensar, encantado com a descoberta, assim como quem encontra uma gema preciosa no criado-mudo da velha tia, cuja descoberta e consequente apropriação indébita o leva a se alistar na Legião Estrangeira, onde ninguém jamais o encontrará, a não ser um outro leitor. Ou um certo tipo de ninharia que fica à espera, durante anos, escondida na esquina de um parágrafo, pronta a lhe pregar um susto. Não, não se ganha dinheiro, não se faz a América com isso; o único prêmio dos guardadores é que eles se mantêm conscientes disso. De quê? Ora, do equilíbrio do Universo. É justamente por causa deles, dos guardadores de ninharias, que os astros mantêm as rotas sem colidir uns com os outros, na nem tão imensa assim abóboda celeste. É justamente por isso que a Lua não cai na cabeça dos namorados, que trocam juras eternas de amor e, no momento seguinte, se hostilizam. Mas as juras, independentes dos casais, permanecerão para sempre eternas. E é justamente por isso, por causa desses guardadores de ninharias, que as crianças sabem que se apontarem para a Lua, crescerá uma verruga na ponta do dedo. E elas apontam mesmo assim, só pra se certificarem de que as verrugas, um dia ou outro, quando necessárias, brotarão compassivas quando elas estiverem se sentindo sozinhas com a separação dos pais. Esta é uma ninharia da infância, de grande magnitude.

Talvez seja melhor exemplificar para melhor compreensão porque exige um estado muito próximo da poesia. Durante a leitura de “Sobre Heróis e Tumbas”, de Ernesto Sábato, lá pela página 168, o autor descreve as impressões do personagem, talvez as suas próprias impressões, quem há de saber, sobre um encontro casual com o grande escritor argentino, seu conterrâneo, Jorge Luis Borges, o qual ele trata somente por Borges, mas que não deixa dúvida sobre a sua identidade: “... o cumprimentou. Martín deparou com uma mão pequena, quase sem ossos nem energia”. Isto é uma indubitável ninharia, já que Borges não faz mais nenhuma outra aparição em todo o restante do livro. Esta ninharia é o gatilho de uma pistola de raios laser, a qual dá origem a um devaneio, e o leitor passa, então, a divagar por galáxias jamais intuídas, sente-se apertando a mão pequena e flácida, e branca e mole como requeijão, do velho brujo. As mãos do leitor transformam-se imediatamente em gigantescas manoplas que encerram a mão já agora minúscula do seu amado Borges, uma espécie de comunhão cósmica. Então, o Guardador de Ninharias compreende que nada está morto, que nada mais estará morto e que, aliás, nada nunca esteve morto. E eu pensei em dizer isso para você há tanto tempo, mas não tinha tido coragem, pelo medo de soar ridiculamente sentimental: você é tão linda que os peixinhos do mar vêm até a beira só pra te ver passar.

Outro bom exemplo de uma preciosa ninharia: a série de TV favorita do grande pintor surrealista René Magritte era “Bonanza”. Como saber disso e não perceber uma espécie de revelação, um satori estético, o choque elétrico de uma enguia, que percorre a espinha e o leva a imaginar o grande inventor de situações impossíveis refestelado em uma poltrona, deliciando-se com as aventuras da família Cartwright, vibrando com a bela abertura que mostrava cada um dos quatro cavaleiros surgindo sobre o mapa da fazenda Ponderosa. Daí, o guardador é transportado pela máquina do tempo de volta à infância. Só que, desta vez, é acrescentado um dado novo às suas memórias: ele agora está irmanado, para sempre, com Magritte, através de uma prosaica série de faroeste. Este é um dado de suprema importância para mim, mas para você pode não dizer nada e, com certeza, não dirá mesmo. Não adianta forçar a barra. Não que sejam experiências egoísticas, mas são experiências solitárias, únicas, intransferíveis, mormente quando os dois, tanto Magritte quanto este guardador, descobrem que ambos têm uma verruga na ponta do dedo. Por isso, a estreita passagem para a sensibilização em relação às ninharias é e deve ser cultivada, como um jardim de dois dias de extensão.

”Quando Robert Louis Stevenson morreu, sua governanta escocesa, de espírito discretamente comercial, começou a vender cabelo, que alegava ter cortado da cabeça do escritor quarenta anos antes”. Esta insignificância está em “O Papagaio de Flaubert”, de Julian Barnes, e expressa muito bem o que pode vir a ser uma ninharia, muito embora o valor dessas pedrinhas preciosas varie de leitor para leitor. O que me transporta para paisagens as mais insuspeitadas pode não significar nada para você. A delícia desse jogo, no qual não há vencido nem vencedor e ao qual se dedica a vida toda, é que não há meio-termo, um guardador de ninharias nunca joga pela metade, ele está inteiro na quadra, embora não demonstre nem para si mesmo a expectativa de deparar com uma ninharia que o estremeça como, com certeza, o estremeceria, ou não?, ou seja, ver alguém em uma estação de metrô, na plataforma, sorrindo, acenando para você, com quem você sequer marcou um encontro, por mais fortuito que fosse. E você seguirá pela vida sem duvidar de que aquela pessoa na estação do metrô lhe ofereceria a última mecha existente do cabelo de Stevenson. Daí, então,dando sequência à brincadeira, virá à mente uma outra ninharia, uma das suas máximas prediletas, resgatada do filme “Motoqueiro Fantasma”: ”Sorte é o nome do meu cachorro, ele é caolho e não tem saco!”

quarta-feira, 3 de junho de 2015

NA TAVERNA DA VELHA HAQUB 2 ou AS DUAS CRIANÇAS


Edson Negromonte

Quem via a velha Haqub, como a chamava toda a gente, como toda a gente passou a chamá-la de um tempo em diante, desgrenhada, rabugenta, por trás do balcão daquele lugar imundo, que nos acostumamos a chamar de taverna, disputando com os fregueses o título de “a boca mais suja do inferno”, é incapaz de imaginar a beldade que era, quando jovem. O que sempre me atraiu nela, além da beleza e do sexo fácil (mediante uma contribuição em moeda sonante, é claro, todo mundo precisa, de uma maneira ou outra, sobreviver), era a sua independência. Sempre tive um fraco por mulheres fortes, mulheres com voz de comando, de queixo proeminente, olhos duros, e Haqub, durante um bom tempo, significou isso tudo para mim, isto é, o porto seguro para o jovem grumete. Portanto, é meu dever contar uma passagem da história de nossa aldeia, a meu ver uma das mais inspiradoras, em que a jovem Haqub teve papel importante, considerado por mim um dos acontecimentos mais significativos dos anais de Dw Revhs. E tal história merece ser contada, se não pelo que ela carrega de ensinamentos para a vida, para os libertários do porvir, mas para enaltecer e registrar a importância dessa mulher, responsável pelos melhores momentos da minha juventude, carnais e espirituais. E de outros jovens, e mesmo de homens casados, eu bem o sei. E contrariando as leis naturais (e quem conhece realmente os meandros dessas leis?), depois que meus contemporâneos se foram, eu ainda estou vivo, no único intuito de registrar as passagens do meu povo, como um legado, para as novas gerações; um povo que não conhece e cultiva a própria história, está fadado ao engodo, e consequentemente a morder o anzol dos erros de seus antepassados. Portanto, dou aqui continuidade à minha missão.

Quando as duas crianças surgiram na aldeia era uma daquelas manhãs geladas que há muito tempo não fazem mais, emolduradas pelas emanações miasmáticas dos pântanos ao redor. Não se tinha a mínima ideia de onde vinham os dois pequenos, abraçados, isto é, agarrados um ao outro, enrolados em um cobertor, se é que se pode chamar de coberta aquele trapo todo esburacado, incapaz de conter a ferocidade da umidade matinal da região. A gente da aldeia, num misto de piedade e superstição, não se aproximava deles, ficava olhando-os a distância, penalizada, como se fossem a encarnação de uma maldição tão antiga que já houvéssemos esquecido e que só agora, diante daquelas duas almas inocentes, entregues à própria sorte, ou azar, voltasse à nossa memória. Enquanto isso, as duas pequenas criaturas, uma loira, a outra morena, tentavam escapar da nossa curiosidade, essa loba feroz e esfaimada, capaz de arreganhar os dentes ao cordeiro indefeso, fechando com força os olhos remelentos.

Nenhum de nós dava um passo em direção às crianças, nem lhes dizia uma palavra. Resmungávamos, somente resmungávamos, muito mais temerosos que condoídos ante a infância ultrajada. Elas, as crianças, por sua vez, apertavam-se cada vez mais, naquele abraço estreito, que era a única arma que possuíam contra o desconhecido. Contra os desconhecidos. Até que Haqub, que ainda não era velha, portanto ainda não se tornara conhecida como a velha Haqub (e diga-se, a bem da verdade, à qual não posso faltar, ela era bem fornida de carnes e de uma beleza que lhe garantia o próprio sustento, e a seus pais também, é forçoso dizer), bem, até que a bela Haqub foi aproximando-se deles e lhes abriu o sorriso mais cândido, mais doce, mais maternal, até sensual, já visto em face humana. (Oh, qualquer homem seria passível de cometer uma loucura diante de um sorriso desses). Mas os pequenos não corresponderam, pelo contrário, abraçaram-se ainda mais forte, quase desaparecendo suas cabecinhas em meio aos corpos um do outro. Haqub, confiando em seus instintos femininos, passou primeiramente a mão na cabeça do menino loiro, o qual estremeceu, assustado. Depois, ela acariciou os cabelos negros do outro menino, que devolveu-lhe o gesto com um rosnado, olhando-a com olhos vermelhos, raivoso, em defesa do irmão e de si mesmo. Haqub (como era inteligente essa mulher!) estendeu-lhes, então, as costas da mão, para que as duas crianças a cheirassem e entendessem que ela não lhes faria mal, como se costumava fazer com os sofridos lobos, mas isso há muito tempo, quando os homens ainda não tinham empedernido totalmente seus corações.

Enquanto isso, permanecíamos todos ali parados, formando um semicírculo, como se assistíssemos a uma improvisada peça teatral, da qual éramos, ao mesmo tempo, público e personagens.

– O de cabelo preto parece o mais velho...
– É, sim, é o que defende o outro!
– São dois meninos, é? De onde será que vieram?
– Do céu é que não foi!
– Vai ver foram deixados aqui por esses zÍgans desalmados... Vejam, a louca da Haqub os está abraçando!

Durante a nossa confabulação, Haqub os trouxera de encontro aos seus seios fartos e róseos, e sempre acolhedores, como devem ser os seios da Grande Mãe: fartos e róseos e acolhedores. Além do mais, os de Haqub eram perfumados, os únicos seios perfumados de toda a aldeia. Eu bem o sei, guardo ainda hoje comigo, em minhas narinas, na memória de minhas células, o cheiro adocicado dos seios da Haqub, a minha Haqub. Ficaram tempo, um longo tempo nesse abraço, o abraço estreito, terrenal, que, com certeza, a natureza acolhe os seus filhos degredados. A multidão, se é que o ajuntamento dos habitantes da nossa aldeia podia ser chamado assim, de multidão, parecia embevecida com cena tão comovente; “a galinha e seus pintinhos”, sussurrou maldosamente um de nós. Estávamos realmente tocados (eu mais que todos), com tudo isso acontecendo já assim pelo início da manhã, quando nos preparávamos para mais um dia ordinário de trabalho na lavoura ou nas forjas. Em nossa aldeia era assim: quem não trabalhava no campo, fabricava ferramentas para a agricultura. (Muito tempo depois, é que descobrimos como forjar as melhores espadas e isso foi o início da nossa ruína). Portanto, quando algo nos tirava da rotina, era sempre bem-vindo.

– Eu bem ouvi essa madrugada o rodar de carroças pela estrada próxima do pântano de Tzarevhs.
– Ora, e como é que eu que moro mais próximo do pântano, não ouvi nada?
– E como querias ouvir algo além dos teus próprios roncos, se eu os escuto de minha casa?

Foi, então, que Haqub ergueu-se do degrau da fonte central (Para que dizer “fonte central” se era a única que havia na aldeia?), onde estivera ajoelhada, abraçada às duas crianças. Uma delas, estava envolta em seu xale, e a outra enrolada em seu casaco de lã. Já não tremiam tanto os dois pequerruchos (eu sempre quis, perdão, como cronista oficial das terras de Dw Revhs usar esta palavra e não poderia perder a ocasião). E nem mesmo a Haqub tremia, embora estivesse com os ombros desnudos (Ah, essa Haqub levava os meus versos e as minhas economias!).

– Essas duas crianças foram abandonadas em nossa aldeia, em nossas portas, e precisam de um lar! – exclamou a Haqub.

Entreolhamo-nos, balançando as cabeças. Negativamente, é óbvio. Se a vida já estava difícil com o pouco que tínhamos, imagine sustentar mais duas bocas? E todo mundo sabe o quanto uma criança come, imagine duas. Essas crianças cresceriam e se tornariam ainda mais famintas, todos sabem, e se não sabem, deveriam saber, que criança em fase de crescimento, come muito mais que dois adultos. E se nos compadecêssemos, logo, nessa batida, os zígans estariam desovando todas as suas crias às nossas portas, sem mais nem por quê. Após um tempo de falação inócua, que a nada de concreto levou, a indignada Haqub declarou que ela, então, cuidaria dos meninos.

– Tu, logo tu!...
– Por que logo eu?
– Ah, não te faças de tonta! Não tens moral nem para criar a ti mesma! O que seria desses meninos com uma mãe que vende o corpo?
– O quê?!
– É isso mesmo, todos aqui concordam comigo: a serem criados por uma perdida, é melhor que apodreçam no pântano!

A discussão entre Haqub e as mulheres da aldeia prolongou-se por um bom tempo, até que foi, finalmente, para alívio de todos, principalmente meu (a minha terna Haqub tinha sido insultada pelas palavras mais vis que podem ser proferidas a um ser humano), convocado o Conselho dos Anciãos, formado pelos doze homens mais velhos da aldeia, não os mais sábios, evidentemente. Eu disse os doze mais velhos, o que nem sempre significa “sabedoria”. Há tanto tempo o Conselho não se reunia que somente sete dos doze participantes foram encontrados; quatro haviam morrido, o quinto desaparecera. Eu bem disse que não acontecia nada em nossa aldeia que nos tirasse da modorra, e esse desfalque do Conselho, sem que ninguém desse por isso, é um bom exemplo do nosso cotidiano. Então, os sete anciões restantes resolveram julgar a questão mesmo em número inferior ao tradicional, antes que morresse ou desaparecesse mais um deles. Apesar de tudo, de toda a insensibilidade atribuída aos anciões do Conselho, eles se mostraram genuinamente preocupados com a sorte dos dois pequenos filhotes de zíngans. Não que não houvesse aldeões interessados em fazer parte do Conselho, mas é que as exigências para tal eram tantas que o candidato bem poderia morrer durante as provas. E, daí, teria que ser feita nova convocação, e não mais para cinco, mas agora para seis anciões. E, de mais a mais, me desculpem, esse Conselho mais parecia um blefe, pois não entendíamos nada do que os anciões tartamudeavam. E, éramos então obrigados a interpretar seu palavreado ininteligível, trêmulo, balbuciante.

Pelo bem geral (nesse tempo, antes da invasão dos iardaranos, ainda pensávamos no bem de todos os habitantes da aldeia), achamos melhor, seguindo a orientação do Conselho, decidir logo o destino dos dois meninos abandonados. Sim, já era ponto pacífico, assim tinha decidido o tão perigoso senso comum, com a aquiescência dos anciões, que os dois tinham sido abandonados. Sim, entregues aos nossos cuidados pelos zíngans. Logo, dois passos tinham sido dados: um bom exemplo do que a boa vontade dos cidadãos é capaz. O Conselho dos Anciãos, corroborando a opinião das mulheres, decidiu primeiramente que “os dois não podiam ficar”, sob hipótese nenhuma, “aos cuidados da Haqub”. Restava decidir, então, quem iria adotar os dois irmãos ou a quais famílias seriam eles destinados, mesmo que a simples ideia de separação daquelas duas criaturas nos compungisse o coração. (Desculpe, mas “compungir” é outra palavra que eu não posso perder a oportunidade de usar). No final da tarde, os velhos do Conselho, sonolentos, mais pra lá que pra cá, sem solução aparente para tão difícil caso, resolveram subitamente que as crianças seriam entregues aos cuidados da Mãe Terra, e que o pântano de Tzarevhs seria a sua morada, ou o pântano que bem lhes aprouvesse, já que “todos os pântanos pertencem à Mãe Terra, a provedora de todos os homens de bem”, segundo as palavras do mais velho de todos os anciões do Conselho, o encarquilhado Lemamel, e que se lhes fosse facultada a vida, apesar da sua origem, eles certamente sobreviveriam a todas as intempéries e necessidades, já que estariam sob a proteção da mãe comum a todos os homens de bem. E dando por encerrada tão legítima questão, afastaram-se todos para as suas casas, com a consciência tranquila de quem dera o mais piedoso dos vereditos.

A noite fria, com seu manto negro, salpicado de estrelas, havia descido sobre a aldeia. Na fonte, que jorrava incessantemente dia e noite, indiferente às querelas dos homens, provendo tanto os bons quanto os maus, permaneciam somente as duas crianças e a robusta Haqub. E, quando já não havia mais ninguém para recriminá-la, para tolher os seus passos, a esperta Haqub deu a mão aos dois meninos e silenciosamente os conduziu não ao pântano, mas à sua casa, a mais humilde das casas da aldeia, a bem dizer uma choupana, mas muito mais bela que a casa destinada ao mais velho ancião do Conselho dos Anciãos. Serviu-lhes, então, uma sopa de raízes, fumegante. E “somente as sopas fumegantes são capazes de aquecer a alma”. (Na verdade, este axioma é de minha lavra, mas botei-o entre aspas para lhe dar alguma credibilidade). Colocou-os, depois, para dormir na cama de casal que herdara dos pais, enrolados nas cobertas, nas suas roupas de frio e, sem cerimônia, beijou-os, como sua mãe fazia.

Enquanto os pequenos dormiam a sono solto, na quietude da noite, uma Haqub insone bordava diligentemente um pano. Foi assim que, pela manhã, surgiu um estandarte, fincado no centro da aldeia, em frente à fonte, como os seguintes dizeres:

PALAVRAS DA GRANDE MÃE - Estes meninos são meus protegidos, são eles HUND e ZÓS, são para os homens a NOITE e o DIA, se algo de ruim lhes acontecer, acontecerá também a mim, a MÃE TERRA. Cuidem deles como se cuidassem de mim, a MÃE QUE TUDO PROVÊ. À Haqub, e somente a ela, será dado o nome de MÃE DE HUND E ZÓS, a Mãe da Noite e do Dia, ou do Dia e da Noite.

Assim, sob a proteção da Grande Mãe, os dois meninos cresceram fortes, como os frutos mais belos e saudáveis da Natureza, e não se separavam jamais, pois o dia sempre traz dentro de si a escuridão, e a noite, consequentemente, traz em seu bojo o alvorecer. E esta deveria ter sido a nossa lição... Quando completaram quatorze anos de existência em nossa aldeia, à instância de Haqub, obediente aos infalíveis instintos femininos, que lhe alertavam da grande desgraça que se abateria sobre a nossa gente, eles foram levados, transportados pela magia de uma caravana, formada de artistas e magos e músicos, que atravessava a aldeia. Nas laterais dos carroções, lia-se TRUPE DAS SOMBRAS LONGAS. Haqub compreendia muito bem a necessidade que os homens têm de bodes expiatórios. Alguns anos depois, Haqub segredou-me que entendeu premonitoriamente a desgraça que se abateria sobre a população, a qual seria creditada a Hund e Zós, quando, ao esfregar as suas costas, no banho, percebeu neles o surgimento de escamas douradas.

E assim o inverno mais tenebroso teve início em Dw Revhs. E, com ele, o início da nossa lenta ruína. Foi nesse tempo também que aprendemos a usar o aço para fabricar espadas, e não mais ferramentas agrícolas.

quinta-feira, 28 de maio de 2015

NHENHENHÉM

Edson Negromonte

Umas das figuras inesquecíveis que vem à tona da memória nas agradáveis conversas sob a sombra do Jequiti Bar, uma construção em frente à entrada principal da Praça Coronel Macedo, erigida na gestão do prefeito Cecyn Jorge Cecyn, com dois quiosques, onde hoje servem-se café e bolinho de banana, mas na década de 70 podia-se, num deles, saborear deliciosos dolés de maracujá, é Nhenhenhém. Este antigo funcionário do Instituto Nacional de Previdência Social era querido por todos, mas principalmente pelos adolescentes que, ao vê-lo passar, à noite, pelas ruas sonolentas de Antonina, ao volante de um Corcel, acenavam com a mão, saudando-o:

- Nhenhenhém!

Ao que ele prontamente respondia, de voz pastosa:

- Nhenhenhém... nhenhenhém....

De pele escura, quase marrom, Nhenhenhém confundia-se com o carro da mesma cor, de vidro fumê. Após o expediente, depois de jantar com a esposa, o bom servidor público acendia um cigarrinho de maconha, saboreando-o até a última ponta, botava os óculos escuros e saía dirigindo pelas silenciosas ruas de paralelepípedos. Todos sabiam do vício, mas como ele não incomodava ninguém faziam vista grossa.

- Nhenhenhém! – provocava alguém.
- Nhenhenhém... nhenhenhém... – respondia ele, beatífico.

O apelido remonta, talvez, à impossibilidade de ele pronunciar algo além de resmungos, de nhenhenhéns, a língua pastosa por causa da maconha, hábito que adquirira com os índios. Segundo o dicionário, o vocábulo “nhenhenhém” tem origem no tupi “nheeng-nheeng-nheeng”, que significa “falar, falar, falar”. A popularidade de Nhenhenhém tornou-se ainda maior, durante o julgamento de Sete Facadas.

Aconteceu de surgir, um dia, na cidade, vindo não se sabe de onde, um estranho que não dizia o nome a ninguém, não procurava travar relações, como se estivesse por ali com o único intuito de cumprir uma missão. Fizesse sol, chuva ou frio, ele trajava sempre uma comprida capa cinza de lã e chapéu de feltro, da mesma cor. Perambulava pelas noites de breu, encarando as pessoas diretamente nos olhos, olhos brilhantes e acinzentados. Ou melhor, de um brilho metálico, como o aço de um punhal que nos atravessasse lentamente a carne, o coração, o espírito, chegando aos recônditos da alma. Todos indistintamente, prefeito, padre, meninos, professor, bacharel, baixavam os olhos à sua passagem. Como já foi dito, não se sabia o seu nome, nem mesmo onde ele dormia ou fazia as refeições. Nem se era de parte do Bem ou do Mal, apesar de que alguns enviados de Deus, muitas vezes usarem a aparente maldade para a purgação das feridas que não querem curar. Assim, o estranho andou pela cidade, dia e noite, dias e noites, como se estivesse à procura de algo ou, pior, de alguém. Com o passar do tempo, das idas e vindas das marés, os velhos, as mulheres, as crianças, foram se acostumando com a sinistra figura, que deixava um estranho rastro de enxofre. Os homens, esses, continuavam baixando os olhos ante a sua onipresença, fosse prefeito ou padre, professor ou fiscal da aduana.

Na manhã do dia sete de setembro de 1974, o mais antigo açougueiro da cidade apareceu morto, no chão do estabelecimento comercial, com várias facadas espalhadas pelo tórax; uma delas, a fatídica, bem no meio do coração. Um detalhe: faltava-lhe a orelha direita. A população, entre curiosa e estarrecida, aglomerava-se à porta do açougue, enquanto os soldados contavam um por um os golpes pontiagudos, desferidos violentamente no corpo enrugado do pobre homem de mais de 60 anos. Chegaram, finalmente, ao cabalístico número sete.

Imediatamente, deram início às investigações, mas o magarefe não tinha inimigos, segundo a esposa, os filhos, os netos, os amigos, a Rosinha... Seu único senão era encontrar grande diversão em esconder fios elétricos desencapados em apetitoso nacos de carne, à espera de que algum esfaimado cachorro de rua viesse abocanhá-lo. Ao ver o cão estremecer com a súbita descarga elétrica, ria e batia palmas, como uma criança feliz. Era uma visão adorável aquele senhor pulando de alegria com brincadeira tão inocente. Quem, naquela pacata cidade banhada pelas águas lodosas e fétidas da baía, seria capaz de cometer tal barbaridade? Sabia-se da vida de cada habitante, das grandezas e pequenezas de cada um; ninguém ali era capaz de matar um gato sarnento sequer, embora os gatos estejam associados desde os primórdios da civilização à magia negra, às bruxas. Então, foi dada voz de prisão ao homem de capa cinza que, apesar de tanto tempo entre nós, ainda fazia parte dos nossos medos. Assim, o estranho sem nome foi batizado de Sete Facadas. Entre os seus poucos pertences, foi encontrada uma faca enferrujada. Segundo o delegado, com manchas de sangue fresco. Era prova suficiente; todos nós, em nossas conversas sob a sombra do Jequiti Bar, estávamos convictos, mesmo sem provas concretas, inclusive as velhas faladeiras, de que, além de assassino, Sete Facadas era também dado à terrível prática do canibalismo. O bandido comera a orelha do açougueiro!

Após um ano já tínhamos esquecido disso tudo, até que um dia de sol causticante botou a população em polvorosa: aconteceria no fórum da cidade o julgamento de Sete Facadas, encarcerado pacatamente esse tempo todo na pequena delegacia. Pela tarde, uma verdadeira multidão lotava o prédio do fórum atrás da igreja, gente sentada em cadeiras, nos corredores, de pé, amontoadas, num vozerio que mais parecia um bando de abelhas, um grande enxame de gente, e aqueles que não conseguiram entrar apinhavam-se nas janelas e no pátio em frente. Parecia que toda a população estava ali reunida, homens, mulheres, crianças, velhos, gente de respeito, bêbados, prostitutas, intelectuais, analfabetos, curiosos e muitos que diziam ser indiferentes àquilo tudo, até gente que estava só de passagem. Comentava-se que Sete Facadas estava lá dentro desde cedo, para evitar a revolta dos populares, como se nós fôssemos incivilizados, capazes de agredir alguém ou, pior ainda, xingar a mãe de um cidadão acusado de assassinato.

O julgamento transcorria sem novidades, aquela coisa chata de sempre, que estávamos acostumados a ver no cinema. Fazia silêncio tão absoluto no ambiente que sou capaz de jurar pela sua mãe morta que ouvi várias moscas voando, e não eram varejeiras, mas moscas comuns, das que convivem pacificamente com os homens, compartilhando os seus lares e pondo ovos nos móveis e na geladeira branca, quando do nada, do meio do público, ergueu-se uma voz conhecida:

- Todo mundo aqui é muito honesto, mas roubaram o meu capote.

Era Nhenhenhém soltando uma das suas pérolas. Entre os risos dos presentes, disfarçados, devido à seriedade do momento, os policiais responsáveis pela segurança mandaram que o engraçadinho ficasse quieto, melhor dizendo, que calasse a boca, mesmo porque os homens da lei não pedem, ordenam, e obedece quem tem juízo. Assim sendo, o silêncio voltou ao recinto. Todo o público compenetrou-se e a ordem foi imediatamente restabelecida. Dessa vez, até as moscas se intimidaram e pararam de zumbir. A sessão transcorria em paz, até que o juiz, antes de dar o veredicto, alongou-se numa falação empolada sobre o Bem e o Mal, invocando gregos e latinos, passando de raspão por um poeta persa, sobre o qual ele evidentemente não sabia nada, mas ficava bonito citá-lo, dando aparência respeitável ao discurso, quando ouviu-se novamente a mesma voz pastosa, típica de quem está sob o efeito da cannabis:

- Esse juiz só fica de nhenhenhém, nhenhenhém, não julga nem absolve ninguém.

Risada geral. Aplausos. Mas, desta vez, o pequeno e franzino Nhenhenhém foi levado pelos homens da lei para fora do recinto, os quais quase lhe pediram desculpas por terem de agir assim. Afinal, nós, os antoninenses, éramos praticamente uma grande família, com suas mazelas, nossa moral duvidosa, e aquele juiz viera de fora, e definitivamente não era um dos nossos. Em família, com o tempo, perdoa-se tudo. E Nhenhenhém não queria incomodar ninguém, só queria que a sentença fosse rápida para saber onde fora parar o seu capote, apesar de, naquele dia, fazer um calor insuportável.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

FAZER O QUÊ?

Edson Negromonte

Cada vez, o país tem menos livrarias. Uma pesquisa estatística dos meus tempos de menino, isso lá pelos anos 1970, já dizia que o Brasil todo tinha menos livrarias que Buenos Aires, a capital da Argentina. Sim, é necessário esclarecer que a Buenos Aires a que me refiro é esta porque há também uma Buenos Aires nordestina, antigamente conhecida pelo nome de Jacu, cidade natal do meu avô pernambucano. Mais recentemente, vi um documentário sobre o apreço dos jovens argentinos pela leitura, mostrando que os seus pontos de encontro são as livrarias. Um amigo que para lá viajou, voltou encantado com os sebos da capital, os quais vendem, além de livros, revistas e discos, também jornais antigos, o que nenhum sebo brasileiro sequer cogita comercializar, devido à dificuldade de conservação. Pode soar anacrônica essa minha preocupação com livrarias físicas em tempos de informação virtual. A celeridade da internet é algo que desorienta qualquer um nascido no século passado. E quando digo “século passado”, como isso soa distante, apesar de estarmos vivendo há somente 15 anos neste novo século. Nunca o homem sentiu tão rápida a passagem do tempo como nos dias atuais; a nossa consciência dos acontecimentos ao redor (e tenho a impressão de que, ultimamente, tudo acontece a um palmo do meu nariz ou dos meus olhos). Se o mundo já parecia pequeno no século anterior, tornou-se agora, com o incrível avanço da tecnologia, diminuto. Podemos nos solidarizar com a dor do povo da pequena Tuvalu, no distante Pacífico, prestes a desaparecer tragada pelo mar, do que com a perda de um ente querido do nosso vizinho do apartamento em frente, muito embora o cumprimentemos todos os dias pela manhã, perguntando com um sorriso amigável, plástico, se ele está bem. Acontece que ele, invariavelmente, responderá que sim, que tudo está bem, embora não esteja. Estará preocupado com a guerra no Oriente Médio, com a sua pequenez para resolver os conflitos internacionais.

“Mas não foi sempre assim?” – pergunta-me a pequena Laura, entrando na pré-adolescência e já se interrogando sobre o mundo das aparências, usando apropriadamente as minhas próprias palavras. Como são precoces as crianças de hoje em dia. Questionado, com a caneta na mão (e como isso soa anacrônico também. E quem, dessa nova geração, sabe realmente utilizar uma esferográfica? Saberão eles, um dia, do supremo prazer de coçar o ouvido com a tampinha de uma Bic? Tenho minhas dúvidas. Mas espero que desfrutem de prazeres outros a mim já inalcançáveis), lembro-me, então, de me preocupar genuinamente, em minha juventude, muito mais com a sorte de Smierdiakóv, de “Os Irmãos Karamazóv”, o clássico de Dostoiévski, do que com a saúde de seu Antoninho, o franzino sapateiro que acostumei-me a ver trabalhando em sua oficina por anos e anos a fio, o qual veio a morrer de uma doença que até hoje não sei qual era. Refletindo, a partir do questionamento da pequena Laura, o mundo, pelo menos o meu, já era virtual há muitos anos atrás, bem antes de os computadores se tornarem um eletrodoméstico comum a todos os lares . Eu tinha a capacidade, não sei se boa ou ruim (ainda hoje a tenho), de me condoer dos personagens fictícios dos romances que eu lia. Assim, Pater Sanctus e Pater Angelus, de “A Abadia dos Beneditinos”, eram para mim tão ou mais reais que os meus colegas de classe, com os quais eu convivia e aprontava as traquinagens típicas da idade, como botar bombas para rebentar o relógio de luz do colégio ou tocar fogo nas cortinas do teatro. Não sou daqueles que louvam os tempos antigos em detrimento dos atuais (sou capaz de reconhecer os avanços e as benfeitorias que a tecnologia traz, como o barateamento do alimento para a população mundial ou a democratização da informação), mas que as opções eram mais fáceis, lá isso eram, não tínhamos tantas alternativas de escolha. Nem sei, atualmente, dizer se isso, as poucas alternativas, é bom ou ruim, só sei que era mais fácil. Sei que os adolescentes de hoje dirão amanhã as mesmas, ou quase as mesmas, palavras.. É natural pensar que o tempo da nossa meninice foi melhor por já estar catalogado, rotulado, sem perigo aparente de nos passar uma rasteira quando menos esperamos, corroborando o dito popular de que águas passadas não movem moinhos. Tenho cá comigo que, muitas vezes, essas águas são capazes de ficar à espreita, anos a fio, à espera de um descuido qualquer. São mágicas as águas do passado.

Não sou nenhum fanático pelas novas tecnologias. Uso-as, se tiver que usá-las. Devo admitir, para melhor compreensão, que, apesar de ser um defensor dos computadores e da internet, também das redes sociais, não tenho telefone celular, e nunca tive. E faço questão de não tê-lo. Que problema o telefone celular representa para mim? Não é bem o celular, mas o uso que fazem dele. O pior dos problemas, a meu ver é quando se atende uma chamada e a primeira coisa que, do outro lado, alguém diz é: Onde você está? Ora, onde eu estou?! Isso não é da conta de ninguém! As pessoas não têm mais o direito de estar onde bem entender. E se eu não quiser que saibam onde estou? Ora, nesse mundo totalitário, dou-me o direito de perambular por onde bem me aprouver. É o último resquício de liberdade individual: não quero ser encontrado, mesmo porque não estou perdido. E, mesmo que estivesse, não gritei por socorro. Então, deixem-me entregue à minha danação. Saboreio de antemão a cara de basbaques que farão quando pedem o meu número e respondo, convicto, que não tenho celular. O mais interessante é que isso soe como ameaça, desmantelando o mundinho das coisas estanques da grande maioria dos habitantes do planeta.

Reconheço, o mundo virtual é perigoso. Muitas doenças em decorrência do seu uso excessivo estão surgindo, mas a maior parte desses males é provocada pelos games. Há atividade mais danosa que o jogo? Sim, eu percebo o quanto essa assertiva pode soar preconceituosa às novas gerações. Fazer o quê? Não estou aqui para agradar ninguém. Não tenho veleidades políticas, logo posso dizer o que penso, o que bem entendo. O baralho sempre me causou, e causa, ojeriza. Nunca tive parentes viciados nas cartas, no pano verde, mas como eu sofri com o vício de Dostoiévski, solidarizando-me com ele, apesar de mais de um século a nos separar. O mundo virtual é, para mim, mais real que a própria vida. Consciente disso, sou, na maioria das vezes, capaz de me relacionar com as pessoas que me cercam, muito embora prefira a companhia de John Fante, aliás, a companhia de Arturo Bandini. A bela Camila Lopez faz parte da minha família, desde a primeira vez que nos encontramos, nas páginas de “Pergunte ao Pó”. Acredito que o livro impresso é bem mais capaz de alienar alguém; nele, somos obrigados a comungar com os personagens, se quisermos usufruir plenamente da obra. A pequena Laura continua ao meu lado, interessadíssima nas minhas digressões. Só ela mesma, com a doce ingenuidade diante do mundo adulto, para acreditar em tudo que digo e escrevo. Revelo-lhe agora, olhando bem dentro dos seus olhinhos de passarinho, um segredo que deve permanecer entre nós dois: quando li “O Judeu Errante”, apesar de envolvido com a gama de personagens, senti-me, ao final dos quatro volumes, traído, ao perceber que o judeu do título, o qual aparece pouquíssimas vezes e sem nenhuma relevância, é somente um chamariz do qual o autor, Eugène Sue, se vale para atrair os leitores do jornal no qual publicava os capítulos do seu folhetim; o judeu errante era moda na França do século XIX...

- O que é um “judeu errante”, vovô? Assim como eu, é também uma realidade virtual?

quarta-feira, 13 de maio de 2015

RESGATADORES DE CARROSSÉIS DOS SONHOS ALHEIOS


Edson Negromonte

“Minha função é resgatar carrosséis dos sonhos alheios”. Esta função não se escolhe, somos designados a ela desde o primeiro despertar espiritual. Não sei precisar, com certeza absoluta, se se faz por merecê-la, acredito que sim porque no Universo não existe acaso, todos os acontecimentos são parte da lei cósmica, logo inexorável, de causa e efeito, ação e reação, sabia e claramente enunciada pelo resgatador Isaac Newton. O fato é que esse aparentemente insólito ofício, sublime e reparador, existe: resgata-se o carrossel, ou mesmo os carrosséis, de outra pessoa – jamais o carrossel do seu próprio sonho. Ou de seus próprios sonhos. Resgata-se, afinal, carrosséis que iriam ser desmontados, carrosséis de parques de diversões, carrosséis que iriam virar sucata. Para se resgatar esses velhos carrosséis é necessário que se recupere primeiramente a lembrança infantil que os adultos conservariam dessas máquinas, o material de que são constituídos. Só quem teve a oportunidade de observar um carrossel novinho, recém-saído da fábrica e ainda sem uso, pode constatar quão sem vida, amorfo, estritamente mecânico, é ainda sem anima essa geringonça, a qual será posteriormente batizada de “carrossel”, cujo nome oriundo do fantástico remonta às primeiras Cruzadas.

O passo seguinte, depois de resgatado o carrossel de um determinado sonho, é alimentar os cavalinhos, e escovar-lhes o pelo, até que voltem a brilhar sedosos como antigamente, quando os seus proprietários eram crianças e ainda não tinham adquirido o sentimento de posse. Descobre-se, depois de certo tempo, como resgatador de carrosséis dos sonhos alheios, a existência de uma confraria de resgatadores. Não se sabe da existência dessa confraria até que se seja digno de conhecê-la. Essa descoberta ocorre justamente quando o resgatador sente-se solitário, à parte de tudo e de todos, questionando inclusive a sua capacidade, e o poder a ele outorgado, de resgatar carrosséis que iriam apodrecer nos ferros-velhos de beira de estrada. Quando a solidão chega ao ponto mais extremo, quando essa sensação dói como a visão da lágrima da baleia ao ver o filhote arpoado, sangrando no oceano que até então lhe fora o lar seguro, quando o leite da mãe se espalha incontrolável pela água salgada, tingindo de branco o azul profundo do oceano ao redor. Só, então, nesse momento de suprema dor, quando se é, ao mesmo tempo, a baleia, o filhote, o arpão e o arpoador, e o oceano, lhe é dado tomar conhecimento da existência de outros iguais a você: resgatadores de carrosséis dos sonhos alheios.

Não se resgata nada dos próprios sonhos, isso é vedado a qualquer resgatador. Por isso, o nome de “resgatador de coisas dos sonhos alheios”. Mesmo sem consciência, somos todos, uns mais, outros menos, resgatadores de coisas dos sonhos alheios. Em vigília, por uma questão de misericórdia, jamais lembramos que resgatamos algo dos sonhos de alguém ou que alguém resgatou algo de nossos sonhos. Sim, a misericórdia divina! Como conseguiríamos continuar vivendo nas horas de vigília se soubéssemos que, durante o sono, temos a suprema missão de resgatar carrosséis de sonhos alheios. Como poderíamos amarrar os sapatos sem uma expressão de revolta, ou no mínimo de tédio, diante dos atos comezinhos do cotidiano, quando em nossas horas de sono somos muito mais do que qualquer homem jamais sonhara. Ou sonhará. Como conviver pacificamente com a finitude se somos deuses?

Existem os mais variados tipos de resgatadores, como aqueles que resgatam coleções de tampinhas de cerveja. De maços de cigarros Saratoga. De garrafas de leite, deixadas nas portas das casas, de madrugada. Das bicicletas dos entregadores de pães. Ou os resgatadores de estampas do sabonete Eucalol. Estes resgatadores existem em grande quantidade, pois os colecionadores de tampinhas de cerveja e de estampas Eucalol eram comuns quando os lares ainda não eram assombrados pela televisão. Raros mesmo, raríssimos, são os resgatadores de coleções de fotos da atriz Patrícia Medina dos sonhos dos meninos de suspensórios. É preciso também que se diga que um resgatador de carrosséis dos sonhos alheios jamais se tornará um resgatador de coleções de fotos de Patrícia Medina, porque se nasce designado a uma determinada classe de resgate. Não há maior ou menor mérito em qualquer tipo de resgate, apenas se exerce a função para a qual se desperta durante o sono reparador das atribulações do dia-a-dia.

Além dos resgatadores de coleções de fotos de atriz Patricia Medina, outra classe muito curiosa é a dos resgatadores das pequenas peças de víspora perdidas nos desvãos das escadas de madeira que dão acesso aos sótãos. Geralmente, estes resgatadores têm a voz pequena e suave para não se sentirem tentados a cantar o número das pedras e, assim, acordar aquele que dorme e de quem se está resgatando as pequenas peças de víspora. É preciso ser muito sutil quando se penetra nos sonhos de alguém, é preciso entrar pé ante pé para que o pretenso proprietário da coisa que se vai resgatar não acorde durante a ação de resgate e, assim, agarrar-se àquilo que, um dia, lhe deu prazer e que, no momento atual, é um empecilho para o bom andamento da vida prática, condição a que grande parte da humanidade aspira. Só aos poetas é permitida a posse das ninharias da infância, ninharias essas que são o combustível para a confecção de um mundo próprio, o qual contém carrosséis, peças de víspora e fotos de Patricia Medina etc. A isso, costuma-se dar o nome de “inspiração” na falta de uma palavra mais adequada. Talvez “iluminação” seja mais apropriada. Uma classe assaz interessante é a dos resgatadores das caixas de música de porcelana, nas quais um rouxinol também de porcelana, canta o seu cobiçado canto; os resgatadores desta classe são geralmente desprendidos da grande maioria dos interesses materiais. Chama também atenção a leveza dos resgatadores dos tocos dos lápis de colorir que, quando não podem mais ser segurados pelos dedinhos das meninas, não são jogados fora, mas guardados nos estojos e ali permanecem indefinidamente como soldadinhos de chumbo de um exército que jamais irá à guerra até serem resgatados dos sonhos dos adultos que não tiveram coragem de se desfazer dos seus tocos dos lápis de cor.

Há resgatadores dos mais abrangentes aos mais específicos, muito embora nunca saibam da existência uns dos outros, a não ser quando são admitidos nas assembleias. Ao homem desperto, os resgatadores muito pouco se dão a conhecer, a não ser que haja necessidade de que se manifestem no mundo material. Mesmo quando o resgatador se manifesta neste mundo, o ceticismo humano, na grande maioria das vezes, o repele, relegando-o ao mundo das quimeras. Nestas ocasiões, o homem desesperado diante daquilo que já não pode compreender, nega com veemência esse mundo tênue e impalpável dos resgatadores dos sonhos alheios, esse mundo silfídico. Então, o homem atemorizado, diante do insofismável, empreende suas campanhas belicosas, extremamente perigosas para o equilíbrio das águas pluviais. Essa pobre criatura, dita humana, é treinada, desde o berço, para a guerra entre os da própria espécie, seja na escola, no lar ou em sociedade, mas principalmente em seu trabalho e nas relações de afetividade. Há resgatadores tão peculiares que chegam a ser nomeados “sublimes”. Pertencem eles à classe dos Resgatadores das Crônicas sobre os Resgatadores, crônicas essas que poderão ser lidas somente pelo Resgatador-mor, o qual sabe de tudo e de todos, desde as mais ínfimas às mais grandiosas ações, embora não haja nenhuma graduação entre as ações, mas se assim não escrevesse como me daria a entender? Então, isso significa que essas crônicas sobre os resgatadores jamais serão lidas pelo Resgatador-mor; ele já sabe tudo sobre nós.

O mundo dos resgatadores não é feito só da poeticidade fugaz que habita no mundo dos homens enquanto crianças. Essa poeticidade precisa ser resgatada quando Lea, a eterna infante de todos nós, começa a interferir em seus afazeres cotidianos e passa a atrapalhar as ações cotidianas, é quando o adulto acha por bem descartar, transformar em sucata das sombras, aquilo que foi o ponto de equilíbrio durante toda a sua vida. Então, os resgatadores dos sonhos alheios entram em ação. Há também resgates dolorosos, os mais dolorosos, porém necessários, como o das bonecas de corpo de pano e cabeça de porcelana, incineradas nos campos de concentração de Auschwitz ou Treblinka ou Sobibór ou ... Esse resgate provoca dores horríveis nos resgatadores durante as suas horas de vigília, como se as dores dessas crianças fossem as suas próprias dores, dores essas que jamais serão atenuadas, dores para as quais ainda não há lenimento conhecido. Estes resgatadores geralmente morrem cedo, têm a vida abreviada, como recompensa. Devo ainda dizer que nenhum de nós conhece efetivamente o Resgatador-mor; temos dele uma percepção, ou melhor, concepção que acontece individualmente a cada 144 anos. Então, nessa ocasião, nos dedicamos a resgatar a nossa própria coleção de concepções sobre o Resgatador-mor, concepções essas que lhe dão plena vivência.

Um dos mais eminentes resgatadores com quem tive o privilégio de travar conhecimento, em uma das nossas assembleias, atendia pelo nome terreno de Willy Wake, ou coisa que o valha, o cunhador da máxima terrível “What can be created, can be destroyed”, que resgatou com pujança a existência do Resgatador-mor, num tempo em que alguns resgatadores sublevaram-se na intenção de ocupar o Trono de Cristal. Esse axioma de Wake é, como todo axioma, indemonstrável e, por isso mesmo, porque ocorre em um sonho, é muito mais terrível, quase exorbitante, chegando a exercer a capacidade de profanação.

Ainda sobre o resgate dos carrosséis dos sonhos alheios, deve-se esclarecer que resgata-se não os grandes carrosséis, como o do Tivoli, na Dinamarca, mas os pequenos dos pequenos parques de diversões das cidades do interior, que surgidos do nada, se instalam nos terrenos baldios, nas festas da padroeira, e que, como surgiram, vão embora, desaparecem num passe de mágica, deixando marcas indeléveis na memória das crianças que neles brincaram, mas mormente na memória da criança que ficou olhando de longe, com medo dos cavalinhos, ou da criança que, por não ter dinheiro para neles gozar, alimentava a sua alma com o brilho dos olhos das crianças outras que no carrossel gozavam. Embora, este carrossel volte no ano seguinte, já não será o mesmo porque a criança já não é a mesma; um ano é uma eternidade na vida das pequenas almas, tudo acontece muito rápido, em alta velocidade, e quando se percebe a inocência está irremediavelmente perdida, os interesses já são outros, as roupas estão curtas, as tranças já foram substituídas por outros penteados... e o tié-sangue já não pousa mais no galho da goiabeira no fundo do quintal.

terça-feira, 28 de abril de 2015

ACERTO DE CONTAS ou ESCUTE AQUI, JACK KEROUAC!


Edson Negromonte

Escute aqui, Jack Kerouac, a lata de Nescau está vazia, o leite em pó acabou e minha irmã foi abduzida por extraterrestres. Escute aqui, Jack Kerouac, eu sei que você cagando e andando pra tudo isso, mas você é quem estava mais próximo, mais à mão, você e essa mala fedida, parado na encruzilhada, em busca de um certo músico de blues. Escute aqui, Jack Kerouac, você é mesmo um panaca, um bola murcha! com raiva de você: depois de tudo, foi viver com a mamãe, na casa da mamãe, debaixo da saia da velha. em St. Petersburg, na Flórida, entornando latas e latas de cerveja nessa sua barriga grande, seu balofo! Escute aqui, Jack Kerouac, a donzela ficou com medo de se perder na América? Nossa, como você engordou, parece um porco de camisa xadrez. Escute aqui, Jack Kerouac, com quantos paus se faz um poeta beat? Não, não diga, por favor, tenha piedade, você só diria bobagens, asneiras, porque, Jack Kerouac, você aposentado, broxa. E só a sua literatura ofende agora o bom-mocismo da América. E as gurias ainda estão paradas na estrada de tijolos amarelos, à espera de ver Robert Johnson, de quatro, uivando para a lua, enfeitiçado pela amante abandonada. Escuta aqui, Jack Kerouac, não seria mais digno se você tivesse metido uma bala no coco, como fez Hemingway, com a carabina que herdara do pai? A mesma carabina com a qual o pai se matara. Não, você achou mais cômodo, né?, ir morrendo aos poucos, protegido pelas quatro paredes da TV. Escute aqui, Jack Kerouac, só não vou aí lhe dar umas boas porradas porque, pra mim, você morreu! Jack Kerouac, você fodeu com o sonho americano e isso basta! Sua literatura foi capaz de dinamitar toda a arquitetura da hipocrisia americana e isso é o bastante para um homem morrer feliz. Escuta aqui, velho, mil perdões, tenho coisa mais urgente pra resolver: um meteorito radioativo acaba de cair no meu quintal!

terça-feira, 21 de abril de 2015

EM BUSCA DO HOMEM INVISÍVEL


Edson Negromonte

Uma das mais saborosas e intrigantes histórias da minha família é a que envolve um tio-bisavô, que no longínquo ano de 1898 viajou para o vilarejo de Port Stowe, na Inglaterra, em companhia de Mr. Herbert George. Mr. Herbert o convenceu a acompanhá-lo, o que não foi muito difícil, já que meu tio era um desocupado. Assim, os dois partiram em busca dos cadernos de anotações do Dr. Hawley Griffin, um cientista (físico ou químico, não sei precisar) que morrera recentemente, questão de ano, ano e meio, e estava envolvido com experiências de invisibilidade, um tema em voga na época, basta consultar os jornais e revistas científicas de então.

O opúsculo, com data de um ano antes dessa viagem, dava conta que esses notebooks, em número de três, pudessem estar em poder de um estroina, conhecido em Port Stowe e cercanias como Marvel. Quando embarcou nessa aventura, no cargo de secretário informal do pesquisador inglês, de aproximadamente 30 anos, esse meu tio-bisavô, de nome Octaviano, tinha 19 anos, idade mais que apropriada para o alargamento dos horizontes, idade em que todo jovem deveria seguir em direção ao Velho Mundo ou ao Oriente, para aprimorar a educação.

Mr. Herbert tornara-se amigo da família quando, ao chegar em Hangares, litoral do Paraná, buscou um hotel ou uma pensão, uma hospedaria ou o que fosse, para descansar o corpo cansado da extenuante viagem em lombo de burro, serra abaixo, antes de dar prosseguimento às suas pesquisas sobre os mistérios antropológicos dos sambaquis, os quais abundavam em nosso litoral, principalmente na praia do Pinheirinho. Não havia na época, em Hangares, um local sequer para O pouso dos poucos que se dispunham a enfrentar as escabrosidades de tal aventura, a sinuosa e íngreme descida da capital, no topo da serra, ao litoral. Portanto, Mr. Herbert, levado pela solicitude de tio Octaviano e o bom coração de minha bisavó, teve que se contentar com um quarto em nossa casa, à rua dos Estivadores, o qual se encontrava vago, desde a morte de tia Norinha, irmã mais velha de minha bisavó, dona Honorina. Sequioso das novidades vindas de fora, tio Octaviano tornou-se de imediato amigo do inglês, acompanhando-o para cima e para baixo, em suas pesquisas.

Assim, ao final do ano, fizeram-se ao mar, rumo à Inglaterra, sob as bênçãos e recomendações de minha bisavó. Ao chegarem em Londres, num final de tarde, foi somente o tempo de Mr. Herbert George se desembaraçar de algumas caixas que continham ossos e utensílios do povo primitivo dos sambaquitas, anterior aos indígenas, que encontrara. Ou melhor, saqueara. Deixando-os aos cuidados da Royal Scientific Society, tomaram o trem noturno para Port Stowe. O livrete que alvoroçara o inglês dava conta, nas páginas finais, no epílogo, que o mendigo Thomas Marvel, um dos poucos que se dispunha a falar sobre as descobertas científicas acerca da invisibilidade do Dr. Griffin, tinha aberto uma taverna nos arredores de Port Stowe, chamada The Invisible Man. Esperançoso, ao saber que a língua de Marvel afrouxava fácil, tornando-o todo confidências, quando o álcool atingia o seu coração empedernido, apesar de alertado que o tal Marvel contava histórias fantásticas, invencionices, sobre o Dr. Griffin à simples visão de um misero guinéu, Mr. Herbert não cabia em si de ansiedade. Afinal, ele era um homem da ciência típico do século, disposto a crer em todas as possibilidades da imaginação humana, desde que servissem aos seus propósitos. O livrete sobre o homem invisível, que todos tinham como fantasiosa e espetacular criação literária, era para ele imensurável fonte de pesquisas, mascarado como obra de ficção, trazendo por subtítulo “A grotesque romance”: um artifício para afastar meros especuladores da ciência, os quais só demérito trariam às suas pesquisas.

Com os primeiros clarões da manhã, tio Octaviano e o inglês desciam na aprazível estaçãozinha de ferro do vilarejo. O inglês ergueu os braços acima da cabeça, esticando-os, ficou nas pontas dos pés e bocejou longamente, sendo imitado tim-tim por tim-tim por meu tio. Olhando para os lados, Mr. Herbert apanhou lentamente o cachimbo, encheu-o de fumo. Tirando longas baforadas, indagava silenciosamente que rumo tomar em busca da taverna The Invisible Man e de seu proprietário. Enquanto isso, tio Octaviano, não afeito ao hábito do cachimbo, enrolava um cigarro de palha. Ao acendê-lo, infestou o ar frio da manhã iniciante com o cheiro acre do fumo negro comprado na feira da agora distante Hangares. O rapaz nunca pusera os pés fora dos limites municipais, sequer conhecia a capital do Estado, e agora via-se ali, espreguiçando-se, feito uma raposa velha, na remota Inglaterra, da qual sabia da existência através somente do atlas escolar; tudo lhe parecia, então, muito romântico.

Subitamente, o inglês, como que impulsionado por uma mola invisível, pega a sua mala, fazendo sinal para que meu tio o acompanhasse. Com as malas no guarda-volumes, seguiram em direção às luzes tênues das casas, que começavam a acordar, em busca de informação sobre Thomas Marvel. Bateram à porta da primeira casa, uma mulher, ainda de touca e camisola, segurando um castiçal, olhou-os através da fresta da porta, apertando os olhos.

– Somos viajantes, precisamos de informação...
– Quem é, Mary?
– Viajantes, assim dizem, assim dizem!
– Faça-os entrar e sirva-lhes um bom café, para que não saiam por aí dizendo que o povo de Port Stowe é mal-educado.
– Humpf!

Os dois entraram na casa acanhada, porém aquecida, satisfeitos por não terem de ficar mais tempo expostos ao frio enregelante da manhã. O dono da casa, com um olhar, convidou-os à mesa.

– Buscam informação sobre o quê?
– A taverna The Invisible Man, conhece?
– É só seguir a estrada – disse, fazendo um gesto largo para a esquerda. – É só seguir em frente! O rapazinho aí não é inglês, é? – perguntou curioso o velho.
– Não mesmo, ele é brasileiro...
– Oh, da América do Sul? Vê, eu conheço Geografia... Tem um brasileiro que mora próximo daqui, em Iping, Mr. Monteiro, tradutor...
– Com licença, senhor, é que temos pressa – desculpou-se Mr. Herbert, levantando-se da mesa.

Satisfeitos, Mr. Herbert e tio Octaviano despediram-se, agradecidos, e enveredaram pela estrada de terra. Os primeiros raios de sol trouxeram o prazer da caminhada para os dois viandantes; Mr. Herbert cantarolava uma antiga canção folclórica:

When you hear a sound
That you just can’t place…..

Ao cabo de aproximadamente duas horas, os dois deram com uma construção de dois andares, mal conservada, cuja placa ostentava o desenho de um chapéu e um par de botas, com a inscrição The Invisible Man.

– É aqui! – exclamou tio Octaviano.

A porta encontrava-se entreaberta, mas isso não queria dizer que tivesse sido aberta pela manhã. O mais certo é que não tinha sido fechada à noite. Entraram cautelosamente. A uma mesa próxima ao balcão, avistaram três homens, envolvidos com um carteado que, pelo jeito, atravessara a madrugada. Como se tivessem ensaiado, os três viraram-se ao mesmo tempo em direção aos estrangeiros. Os olhos vermelhos dos jogadores denunciavam, além da falta de sono, os efeitos do álcool. O retrato da rainha Vitória, na parede, observava de esguelha os seus súditos.

– Precisamos de duas camas – foi dizendo Mr. Herbert.
– Sim, sim, cavalheiros, mas antes permitam que eu me apresente: Mr. Marvel, Thomas Marvel, o proprietário. Ao seu dispor. Estes são Mr. Rains e Mr. Whale, amigos da casa. Ali, naquela mesa próxima à janela, Mr. Moore, o barbudo, e Mr. Price. E, nesta mesa, Mr. Sutton; todos habitués da casa. E os senhores são...
– Herbert George e Octaviano de Oliveira Machado.

Apertaram-se as mãos. O dono do estabelecimento era tal e qual o autor do citado opúsculo o descrevia: gordo e atarracado, nariz de batata, cabelos arrepiados e faces coradas, de óculos, as calças seguras por tiras de pano, em vez de suspensórios.

– Nossas malas devem ser trazidas da estação.
– Sim, sim, hoje mesmo estarão aqui. Querem comer algo, beber...
– Preferimos descansar um pouco, antes de qualquer coisa.

No quarto, Mr. Herbert e tio Octaviano, sentindo-se em segurança, começaram a engendrar, em voz baixa, o plano para se apossarem das anotações de Griffin. Confiando nas informações contidas no livrete, já que a descrição de Marvel estava de acordo com a figura que encontraram na hospedaria – um tubérculo equilibrado em dois palitos –, decidiram que deveriam esperar a manhã de domingo, dali a três dias, quando Marvel se encerraria no seu parlour, munido de uma garrafa de gim, diluído em pouca água, “três pingos”, de acordo com as palavras do autor. Na segurança da sua solidão (os parceiros, em respeito aos hábitos “religiosos” do amigo, não o procuravam aos domingos. Somente na segunda, eles voltavam à taverna), Marvel abriria a gaveta do etagér e, dali, tiraria os três livros de Griffin, repletos das anotações acerca da teoria da invisibilidade. E, exatamente assim, aconteceu. Na manhã de domingo, o homenzinho, certo de que os hóspedes estariam fora durante todo o dia, conhecendo os arredores (Mr. Herbert e tio Octaviano, alegando interesse botânico pela vegetação do sul da Inglaterra, saíram cedo, pedindo que Marvel não se preocupasse com o seu almoço, pois retornariam somente ao anoitecer), fechou-se no salão, baixou os estores, sentou-se na poltrona e ficou a folhear os livros. Embevecido com a escrita criptográfica, da qual não conseguia entender patavina, lhufas ou bulhufas, certo de que, um dia, a decifraria. Então, poderia agir livremente, sob o manto invisível da impunidade, dando vazão aos seus instintos bestiais.

Mas tio Octaviano e Mr. Herbert ficaram nas imediações da taverna, à espera do melhor momento para agir, isto é, quando Marvel estivesse totalmente embriagado. Entraram os dois pela porta da cozinha, que cedeu facilmente a um encontrão seco, bem dado, pelo inglês. Ouvindo à porta do parlour, constataram que Marvel dormia, resmungando, sob efeito do gim. Arrombada a porta, tio Octaviano, com um pesado atiçador de lareira, arrebentou a cabeça do senhorio. Um, dois, três, quatro golpes...

– Por Jove, rapaz, chega! Já não é o bastante? O homem chega a estar com os olhos saltados, parece um cão pequinês!
– Desculpe, nunca tinha matado um homem antes... Que o Diabo o leve! Há´de se ter certeza que está bem morto, ora, se há!

O pobre taverneiro morreu como um injusto, gim barato até a tampa. Antes de deixar repentinamente este mundo, balbuciara, em meio à doçura de um sonho: “xis, um doizinho em cima, cruz, traço, B... Meu Deus, que homem! Que cabeça tinha aquele hom”...

Tio Octaviano e Mr. Herbert tomaram rapidamente a direção de Iping, cidade portuária, carregando consigo, além dos livros bolorentos, danificados pela umidade, e as suas malas, uma bolsa com uma pequena fortuna em moedas de ouro e prata que pertenciam ao estalajadeiro, a qual ele guardava junto com os livros.

– Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão! – exclamou tio Octaviano.
What?
– Nada, é um dito popular do Brasil!

Por um atalho que tinham descoberto no dia anterior, evitaram a estrada principal; em casos assim, todo cuidado é pouco. Em Iping, subornaram sem dificuldade o cúpido Monteiro, também despachante aduaneiro, que lhes arranjou embarque em uma chalupa de saída para o porto de Rouen, norte da França, onde seria fácil conseguir um vapor para a América do Sul. Dois meses depois, desceram no pequeno porto de Hangares, mais mortos que vivos, magros, doentes, trazidos por um barco de pescadores. Com o passar dos dias e boa alimentação, os dois foram se recuperando e, logo, saíram da cama, dispostos a desvendar os caracteres criptográficos daqueles livros que tanto trabalho lhes dera. Encerravam-se no antigo quarto de tia Norinha, definitivamente transformado em laboratório, em meio a tubos de ensaio e retortas e almofarizes e ácidos, tomados de empréstimo à Farmácia Internacional.

Mr. Herbert e meu tio-bisavô Octaviano passavam dias e noites encerrados na toxidez do pequeno laboratório, desvendando os segredos do Dr. Griffin, sem se alimentar, apesar das admoestações de minha bisavó Honorina.

– Saco vazio não para de pé!

Passaram-se três dias sem sinal dos dois, sequer abriam a porta para pegar a bandeja com o almoço. No quarto dia, minha bisavó tornou-se compreensivelmente apreensiva. No sexto dia, como espancasse a porta do quarto e nem um único sinal de vivalma se manifestasse, com o auxílio da mais forte das suas vizinhas, a gorda Darci, casada com seu Romão, fizeram saltar os ferrolhos da porta. Lá dentro, ninguém. Nem tio Octaviano, nem Mr. Herbert. A mulher correu às janelas! Lacradas todas duas, pregadas. Ao perceber a gravidade da situação, vó Honorina soltou um grito agudo e desmaiou. Alguns dias depois, voltou a si, trazida ao mundo dos vivos pela inalação de doses cavalares de amoníaco puro, embebidas em um lenço. Nunca mais foi a mesma, tomou-lhe a alma uma tristeza profunda e uma apatia de dar dó àqueles que a tinham conhecido como a encarnação da alegria, da disposição para a vida.

O fato é que esta história é a versão oficial da família, mas o que se escondeu por muito tempo é que tio Octaviano voltara muito estranho, esquisito, dessa viagem ao sul da Inglaterra, afetado por um mal exótico que o competente médico da família não conseguia diagnosticar. Devido aos rogos da irmã, tio Octaviano e Mr. Herbert concordaram em deixar por um tempo a faina do laboratório e participar da ceia de Natal, única data em que toda a família estaria reunida. E vó Honorina fazia questão de ver toda a família reunida, para celebrar o nascimento do menino Jesus. Então, sem mais nem porquê, em meio à comilança, tio Octaviano ergueu-se e pediu por um momento a atenção de todos. Fez-se o silêncio das situações graves, quando até as moscas intuitivamente deixam de zumbir. E tio Octaviano anunciou à família estarrecida que ele e Mr. Herbert estavam se mudando para Paris, onde iriam viver como um casal, marido e mulher. Um sorriso escarninho bailava nos lábios de meu tio-bisavô, satisfeito com o efeito das suas palavras. Neste exato momento, conta-se à boca miúda, a família começou a desmoronar, a degringolar; envergonhados, os irmãos não se visitavam mais, vó Honorina tornou-se monossilábica, parecia que se falasse uma frase completa, por menor que fosse, desataria em choro convulso até se finar. Como era comum no início do século 20, sumiram as fotografias em que tio Octaviano aparecia, mesmo em calças curtas. Assim se procedia com aqueles que desafiavam as convenções, a moral e os bons costumes: extinguiam-no do mundo real, o mundo da fotografia, essa arte capaz de eternizar a fugacidade da vida. (Neste tempo, a nossa devia ser uma família de posses, pois tinha várias fotografias, isso em um tempo em que a arte fotográfica era ainda incipiente. A grande maioria dos habitantes de Hangares esperava para ser fotografada na festa da padroeira, em 15 de agosto). Somente vó Honorina, desafiando a tudo e a todos, foi corajosa o bastante para guardar uma única foto, justamente a que tio Octaviano e Mr. Herbert aparecem felizes, abraçados, e que seguro agora em minhas mãos. Mas a natureza traquinas, sempre aprontando das suas, através de um bichinho, conhecido como silverfish (lepisma saccharina), tratou de roer justamente as caras certamente sorridentes de meu tio-bisavô Octaviano e de Mr. Herbert. Talvez assim, quem sabe, eles tenham conseguido a invisibilidade que tanto buscavam. Pelo menos, em relação aos parentes sim. E esta história, eu a soube pela boca de minha mãe, que a soube através da mãe dela, e que foi por muito tempo um dos esqueletos no armário da tradicional e decadente família Oliveira Machado.