sexta-feira, 12 de junho de 2015
GUARDADOR DE NINHARIAS
Edson Negromonte
Poderia dizer que sou um colecionador de ninharias, mas seria uma inverdade. Colecionar exige ordem, coisa que não faço questão nenhuma de ter. Colecionar exige álbuns, pinças, luvas etc., um aparato. O que faço poderia até ser chamado de amealhar, mas amealhar implica acúmulo, o simples acúmulo, juntar por juntar... E o pior, amealhar dá ideia de ganância. Não é bem esse o meu caso. Talvez guardador, sim, “guardador de ninharias” seja mais adequado àquilo que faço, além da expressão exalar um aroma suave de poesia, o que me agrada muitíssimo: fragrância de rosas, sim, de rosa musgosa da Índia. Não sou um guardador compulsivo, não guardo ninharia qualquer, assim como guardar por guardar, sem discernimento. A grande parte das minhas ninharias é literária, mas não só literárias, mas principalmente aquelas que os livros encerram em suas páginas (isto foi o que eu quis dizer com “ninharias literárias”), já que sou um leitor contumaz, mas essas ninharias também podem vir de histórias em quadrinhos, de letras de música e de diálogos de filmes, o que implica quase sempre literatura. As minhas ninharias são aquelas que, durante a “leitura”, fazem-me parar e pensar, encantado com a descoberta, assim como quem encontra uma gema preciosa no criado-mudo da velha tia, cuja descoberta e consequente apropriação indébita o leva a se alistar na Legião Estrangeira, onde ninguém jamais o encontrará, a não ser um outro leitor. Ou um certo tipo de ninharia que fica à espera, durante anos, escondida na esquina de um parágrafo, pronta a lhe pregar um susto. Não, não se ganha dinheiro, não se faz a América com isso; o único prêmio dos guardadores é que eles se mantêm conscientes disso. De quê? Ora, do equilíbrio do Universo. É justamente por causa deles, dos guardadores de ninharias, que os astros mantêm as rotas sem colidir uns com os outros, na nem tão imensa assim abóboda celeste. É justamente por isso que a Lua não cai na cabeça dos namorados, que trocam juras eternas de amor e, no momento seguinte, se hostilizam. Mas as juras, independentes dos casais, permanecerão para sempre eternas. E é justamente por isso, por causa desses guardadores de ninharias, que as crianças sabem que se apontarem para a Lua, crescerá uma verruga na ponta do dedo. E elas apontam mesmo assim, só pra se certificarem de que as verrugas, um dia ou outro, quando necessárias, brotarão compassivas quando elas estiverem se sentindo sozinhas com a separação dos pais. Esta é uma ninharia da infância, de grande magnitude.
Talvez seja melhor exemplificar para melhor compreensão porque exige um estado muito próximo da poesia. Durante a leitura de “Sobre Heróis e Tumbas”, de Ernesto Sábato, lá pela página 168, o autor descreve as impressões do personagem, talvez as suas próprias impressões, quem há de saber, sobre um encontro casual com o grande escritor argentino, seu conterrâneo, Jorge Luis Borges, o qual ele trata somente por Borges, mas que não deixa dúvida sobre a sua identidade: “... o cumprimentou. Martín deparou com uma mão pequena, quase sem ossos nem energia”. Isto é uma indubitável ninharia, já que Borges não faz mais nenhuma outra aparição em todo o restante do livro. Esta ninharia é o gatilho de uma pistola de raios laser, a qual dá origem a um devaneio, e o leitor passa, então, a divagar por galáxias jamais intuídas, sente-se apertando a mão pequena e flácida, e branca e mole como requeijão, do velho brujo. As mãos do leitor transformam-se imediatamente em gigantescas manoplas que encerram a mão já agora minúscula do seu amado Borges, uma espécie de comunhão cósmica. Então, o Guardador de Ninharias compreende que nada está morto, que nada mais estará morto e que, aliás, nada nunca esteve morto. E eu pensei em dizer isso para você há tanto tempo, mas não tinha tido coragem, pelo medo de soar ridiculamente sentimental: você é tão linda que os peixinhos do mar vêm até a beira só pra te ver passar.
Outro bom exemplo de uma preciosa ninharia: a série de TV favorita do grande pintor surrealista René Magritte era “Bonanza”. Como saber disso e não perceber uma espécie de revelação, um satori estético, o choque elétrico de uma enguia, que percorre a espinha e o leva a imaginar o grande inventor de situações impossíveis refestelado em uma poltrona, deliciando-se com as aventuras da família Cartwright, vibrando com a bela abertura que mostrava cada um dos quatro cavaleiros surgindo sobre o mapa da fazenda Ponderosa. Daí, o guardador é transportado pela máquina do tempo de volta à infância. Só que, desta vez, é acrescentado um dado novo às suas memórias: ele agora está irmanado, para sempre, com Magritte, através de uma prosaica série de faroeste. Este é um dado de suprema importância para mim, mas para você pode não dizer nada e, com certeza, não dirá mesmo. Não adianta forçar a barra. Não que sejam experiências egoísticas, mas são experiências solitárias, únicas, intransferíveis, mormente quando os dois, tanto Magritte quanto este guardador, descobrem que ambos têm uma verruga na ponta do dedo. Por isso, a estreita passagem para a sensibilização em relação às ninharias é e deve ser cultivada, como um jardim de dois dias de extensão.
”Quando Robert Louis Stevenson morreu, sua governanta escocesa, de espírito discretamente comercial, começou a vender cabelo, que alegava ter cortado da cabeça do escritor quarenta anos antes”. Esta insignificância está em “O Papagaio de Flaubert”, de Julian Barnes, e expressa muito bem o que pode vir a ser uma ninharia, muito embora o valor dessas pedrinhas preciosas varie de leitor para leitor. O que me transporta para paisagens as mais insuspeitadas pode não significar nada para você. A delícia desse jogo, no qual não há vencido nem vencedor e ao qual se dedica a vida toda, é que não há meio-termo, um guardador de ninharias nunca joga pela metade, ele está inteiro na quadra, embora não demonstre nem para si mesmo a expectativa de deparar com uma ninharia que o estremeça como, com certeza, o estremeceria, ou não?, ou seja, ver alguém em uma estação de metrô, na plataforma, sorrindo, acenando para você, com quem você sequer marcou um encontro, por mais fortuito que fosse. E você seguirá pela vida sem duvidar de que aquela pessoa na estação do metrô lhe ofereceria a última mecha existente do cabelo de Stevenson. Daí, então,dando sequência à brincadeira, virá à mente uma outra ninharia, uma das suas máximas prediletas, resgatada do filme “Motoqueiro Fantasma”: ”Sorte é o nome do meu cachorro, ele é caolho e não tem saco!”
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