sexta-feira, 18 de setembro de 2009

ANIMAIS

poema de Walt Whitman
tradução de Edson Negromonte


Eu acho que eu poderia voltar a viver entre os animais, eles são tão plácidos e independentes.
Fico a admirá-los horas e horas a fio;
Eles não choram nem lamentam a condição,
Não dormem de olhos abertos, não lamentam os seus pecados;
Eles não me deixam enojado quanto aos seus deveres para com Deus.
Nenhum deles é descontente – nenhum deles é demente, com mania de posse,
Não se ajoelham aos outros, nem mesmo para aquele que viveu milhares de anos antes.
Nenhum deles é respeitável ou laborioso sobre a vastidão da terra.

VI A CAPELA TODA EM OURO

poema de William Blake
tradução de Edson Negromonte


Vi a capela toda em ouro
E nada ali ousava entrar,
Muitos a chorar no átrio,
A murmurar, a adorar.

Vi a serpente surgir entre
Os pilares do portal,
A forçar, a forçar, a forçar:
Os gonzos de ouro ao chão.

Ao longo do doce santuário,
Pérolas, rubis a brilhar,
O corpo luzidio ela arrastou
Ao alto do alvo altar,

Vomitando a peçonha
Sobre o pão, sobre o vinho.
Então, voltei à pocilga
E chafurdei entre os porcos.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

LETRAS E TRELAS

poema de Emily Dickinson
tradução de Edson Negromonte


Eis o livro fragata
Por mares nunca dantes,
A página cavalgada
Do poema galante.

VOU TE CONTAR

poema de William Carlos Williams
tradução de Edson Negromonte


Comi as
ameixas
da
geladeira

que
provavelmente
guardavas
para o café

Desculpe
‘tavam deliciosas
tão doces
tão frias

RÉQUIEM

poema de Robert Louis Stevenson
tradução de Edson Negromonte


Sob o vasto e estrelado céu,
Cave a cova e deixa-me só.
Feliz vivi e feliz me vou.
Desço e deixo um pedido.

Eis o verso para lapidar:
Ele está onde sempre quis estar;
O marinheiro chegou do mar,
E o caçador, dos montes é vindo.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

GALERIA

por Edson Negromonte

No corredor da minha pequena casa,
pendurei, dando tamanha bandeira,
marcel duchamp, borges, debussy, françois villon,
os retratos daqueles que amei a vida inteira,
lewis carroll, pagu, knut hamsun, lautréamont,
em molduras de bambu, metal e madeira,
fante, whitman, drummond, vincent price,
para que aquela humilde casa criasse asas,
crumb, klee, kurt schwitters, ann rice,
e, na manhã do dia sétimo, sentei-me.
A admirar a obra, eis-me,
quando chegam as visitas de domingo,
com sobremesas e fumo para o cachimbo.
Ao atravessar aquela estranha galeria,
pergunta, para o meu pai, a minha tia:
quem são?, ao que ele responde, saindo-se bem:
devem ser da família mas não conheço ninguém.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

A SUSTENTÁVEL LEVEZA DOS BATRÁQUIOS

por Edson Negromonte

Quando menina, ela colecionava sapos. Dava-lhes nomes: Pintado, Bolinha, Tigresa, Néfer, Sapopemba, Dalva, Saponáceo, Rubem, Bufo, Hermeto... Este último fora sugerido pelo pai, enquanto admiravam, num dia de chuva, aquele sapo velho, de costas largas, rugosas, a coaxar sem parar, irreverente, aboletado na varanda da casa, em Visconde de Mauá. O pai incentivava o interesse da menina pelos batráquios, presenteando-a com os mais diversos livros sobre o assunto, de ficção, fábulas, alguns recortes de velhas enciclopédias e até uma obra técnica encontrada num sebo. A menina aproveitava qualquer ocasião, principalmente nas reuniões de família, para conversar sobre os sapos, invariavelmente. Desistira de contar sobre a sua paixão para as amiguinhas da escola; elas torciam o nariz, faziam cara de nojo. Como a menina não era de engolir sapos, aproveitava para encerrar a conversa com chave de ouro, contando-lhes como os meninos americanos brincam de esconder sapos dentro da boca.
Sabia que somente o pai era capaz de compreendê-la. Com ele, assistiu na TV à pajelança, promovida pelos índios Raoni e Sapaim, para curar o naturalista Augusto Ruschi, envenenado por um sapo, da espécie dendrobata. O pai, que se tornara aos poucos um expert no assunto, aproveitou mais essa ocasião para esclarecer a filha: o tal naturalista, desavisado, teria beijado uma sapa venenosa, na boca, em busca da sua princesa encantada. Assim, foi a menina crescendo, colecionando conhecimento sobre a vida desses seres aparentemente repulsivos. Descobriu, levada pelo pai, que a literatura e os homens são useiros e vezeiros em associar os pobres sapinhos, assim como outros bichos, principalmente os gatos, com a magia negra; e que nem mesmo os contos de fada têm muito apreço por eles. E que, não os tendo em boa conta, mostra-os invariavelmente como príncipes que precisam do beijo apaixonado de uma doce princesa para quebrar a maldição lançada por uma bruxa malvada. Em sua santa inocência, ela não entendia por que as princesas não podiam simplesmente casar com sapos.
A mais remota lembrança da menina, em relação aos sapos, estava associada à cadeira alta, o pai contando as mais fabulosas histórias do mundo dos batráquios para fazê-la comer a papinha. A mais apreciada de todas era uma história verídica, dos seus tempos de menino, quando ele mesmo fora transformado num sapo-boi por uma velha feiticeira, que morava na floresta próxima à sua casa. A cada vez que era contada, esta história ia se transformando, se desenvolvendo, burilada, tomando caminhos insuspeitados, aproveitando-se das passagens clássicas de outros contos, tiradas dos livros, e outras, corriqueiras, inspiradas no dia-a-dia. O ponto alto era quando o pai, então menino, retornava dias depois para casa, na forma de um, pode-se dizer, sem licença poética, descomunal sapo-boi. Era sempre assim, quando a menina, na cadeira alta, com a boca cheia, o prato quase vazio, estivesse então com lágrimas nos olhos, o pai, com a voz suave, dava início ao já conhecido desfecho, tantas vezes contado e recontado: de como a sua mãezinha, a doce vovozinha da menina, apiedada da sina do filho, curou-o com benzimento e orações, mais chazinhos de erva-doce pela manhã, losna à tarde e boldo-do-chile à noite, e de como ele prometera, dali para a frente, ser um bom menino, não passar mais nem perto da floresta encantada.
– Ah, mas aquela casinha era toda feita de doces, portas de chocolate, janelas de açúcar cândi e telhados de doce de abóbora, uma tentação para as crianças da região.
A menina enxugava os olhos, com o dorso das mãozinhas, a boca cheia, o prato vazio, raspado. O pai, então, arrematava a história, contando-lhe que, graças aos cuidados e simpatias da pobre mãezinha, ele fora aos poucos se curando, voltando ao normal, embora às vezes ainda coaxasse durante o sono e que, ainda hoje, mesmo adulto, a visão de um belo banhado ainda lhe dá certa nostalgia.
Descida da cadeira, a menina rodeia o pai, ergue a camiseta dele, passa levemente o dedinho frio pelas suas costas. Fica, por alguns segundos, intrigada, examinando a ponta do dedinho.
– É, papai, você ainda tem as costas meio verdes.