sábado, 31 de julho de 2010

AS PRISÕES


por Edson Negromonte

Alfred Hitchcock, o mestre do suspense, era traumatizado com as grades, explorando isso em seus filmes; o pai o mandara ainda menino, de pijama, à delegacia, com um bilhete, solicitando ao delegado que prendesse a criança. Tornou-se essa a mais longa e interminável noite do futuro cineasta. Também me sinto apreensivo todas as vezes em que sou obrigado a passar em frente a uma delegacia. Descer do metrô na Estação Carandiru, quando ali perto se encontrava ainda em plena efervescência o presídio, era para mim motivo de muita apreensão. Eu olhava para os lados, evitando os policiais fardados que, por desventura, encontrasse pelo caminho. Para a minha consciência culpada, apesar de há muito não fazer nada de errado, os homens da lei podiam plantar, ao bel-prazer, uma prova qualquer em nossos bolsos, como a bagana de um baseado que eles mesmos fumaram, certo de que mesmo um trêmulo sim pode soar aos seus treinados ouvidos musicais como um evidente desacato. Qualquer um que, à minha frente, surge fardado é motivo de desconfiança e, é claro, imediata preocupação, podendo a qualquer momento e sob qualquer alegação me deter. Sempre tive certeza disso: sou culpado até que se prove o contrário. E provar a inocência implica um processo tão moroso que não vale a pena porque eu já estaria morto quando se desse o veredicto. Assim, indistintamente, eu suspeito tanto de soldados quanto de cobradores de ônibus, com seus denunciadores uniformes. Sei que, com a idade, estou melhorando; os guardinhas mirins já não me metem tanto medo. Inclusive, com o passar dos anos e a sapiência da idade, aprendi também a detectar o policial civil, essa gente que surge disfarçada de cidadão comum: todos eles escondem os miúdos e acinzentados olhos de rato por detrás das lentes verdes dos indefectíveis óculos ray-ban.
A primeira vez em que fui preso, eu não tinha mais de quinze anos. Numa noite de sábado, fui convidado pelos zome a atravessar a rua, para uma palestra amigável com o representante da lei, o famigerado Ganso.
– O delegado quer falar com você... – segredaram-me dois meganhas.
– Ele quer falar comigo, por bem ou por mal?
– O delegado quer falar com você! – instaram.
– Ele quer falar por bem ou por mal? Porque estamos num país democrático, e se for por mal...
Incentivado pelo riso dos circunstantes, tentei dar continuidade ao meu improvisado discurso libertário, quando fui abruptamente interrompido pela súbita visão de dois ameaçadores e negros cassetetes de borracha. Que democracia era aquela à qual eu me referia? Agarrado pelos braços, fui diplomaticamente levado ao encontro do tal delegado, que se encontrava postado na esquina em frente, à minha espera, com as mãos às costas e a barriga inflada. Agarravam-se os dois praças tão denodadamente às carnes dos meus braços, sob a jaqueta Lee, erguendo-me do chão, que, movido pela dor, com um repuxão do braço direito,tentei me libertar daquelas tenazes. Então, no meio da rua, o soldado Belfare desferiu uma violenta cacetada em meu braço esquerdo. Mais calmo, ou melhor, acalmado, topei com os olhos fuzilantes do delegado, justamente quando o Cine Ópera abria as portas e despejava a multidão que estivera assistindo à última sessão. Curiosas, as pessoas foram se aglomerando para ver o improvisado espetáculo de um adolescente acuado pelas forças que supostamente deviam manter a ordem. Instintivamente, aproveitei para repetir, em alto e bom som, para que todos ouvissem, como oportunas testemunhas para uma espécie de salvo-conduto:
– Você quer falar comigo por bem ou por mal?
Evidente que não obtive resposta, mas assim fazendo evitei outra cacetada.
– Para a cadeia! – ordenou o barrigudo Ganso.
Ladeado pelos dois soldados, delegado à frente, seguimos o chefe pela Rua Dr. Carlos Gomes da Costa, dobrando à esquerda, na esquina da Igreja de São Benedito, entrando na Vicente Machado, para chegarmos finalmente à casa de detenção. No trajeto, retomei, agora aos gritos, o interrompido discurso, acrescentando um bordão desafiador, porque verdadeiro, mas ao mesmo tempo suicida, incentivado pelos aplausos da multidão que nos seguia e pelas janelas que se abriam à nossa passagem. Por uma questão de segurança, eu precisava tornar ainda mais pública a minha indevida prisão:
– Vocês são mesmo muito valentes! Só prendem bêbado, menor e mulher de zona!
Palmas.
Gritos e apupos.
Não há melhor combustível para o motor juvenil que o reconhecimento dos amigos, em primeiro lugar, depois os conhecidos e, por último, os curiosos. Agora, excitado, eu berrava:
– Vocês são mesmo muito valentes! Só prendem bêbado, menor e mulher de zona!
Mais palmas. Como dizia o Chacrinha: uma salva de palmas pra ele, que ele merece! Abriam-se janelas, olhos sonolentos e vermelhos espreitavam do escuro dos lares, tentando entender o que acontecia na noite sempre pacata e modorrenta da pequena cidade. A plateia, aumentando sensivelmente, obrigava-me a melhorar o discurso, tornando-o ainda mais contundente:
– Os valentões... só prendem menor, torrado e... puta!
Aí, então, o cortejo, que já tinha virado uma procissão de pândegos, sem andor, acompanhando um santo do pau oco, em coro, endossava:
– É isso aí, só de menor, torrado e puta!
Na delegacia, fui conduzido por um corredor escuro e fétido, onde minha imaginação fértil descobria, nas paredes, manchas de tortura, sangue e fezes. Após um tempo que me pareceu interminável, veio um soldado pedindo que eu fizesse o favor de acompanhá-lo. Nossa, quanta gentileza! Ao entrar na sala do delegado, lá encontrei meu pai. Tirado da cama, com cara de enfezado, sob o pijama ele deixava transparecer propositadamente a intimidadora coronha de um 38. O delegado, evitando me olhar, alegava que eu fora detido porque estava fazendo arruaça em frente ao cinema, após as dez horas da noite. Irritado, sem medir o tamanho da imprudência, dei de dedo na cara do homem, chamando-o de mentiroso. Meu pai pediu que me retirassem da sala. Sentei-me então solitário numa cadeira de fórmica vermelha, na saleta de espera.
Liberado, na porta da delegacia, fui ovacionado por tamanha multidão que se afigurava estar ali concentrada toda a população de Antonina, aglomerada na calçada do lado oposto, nas janelas, nos muros, à espera da minha saída triunfal. Tornei-me assunto das conversas da semana, nos bares, nos lares, na missa, quermesse, barbearias, praças e, gloriosamente, no Mercado Municipal, onde se dizia, à boca pequena, que o delegado era veado e tinha se dado mal na escolha do parceiro da noite. Pouco tempo depois, ele foi transferido para o norte do Paraná, onde morreu assassinado.
A segunda vez em que fui parar numa delegacia ocorreu em Curitiba, durante a comemoração do aniversário de um amigo, num restaurante de Santa Felicidade. Voltávamos em seis para a nossa república, no Edifício São Paulo, sob uma garoa fininha, e evidentemente mais alegres que de costume, devido à excessiva ingestão do dionisíaco vinho que acompanhava os deliciosos pedaços de frango e polenta frita. Exatamente na Rua Cruz Machado, abraçados, eu e Zé Gordo subimos no para-choque traseiro de um velho DKW estacionado. Surgida sabe-se lá de onde, uma veraneio amarela, com placa de Santos, encostou ao nosso lado. Saíram do veículo dois sujeitos truculentos, pedindo-nos documentos. Então, Xixo, lutador de ai-ki-dô e namorado de minha irmã, retrucou:
– Mostre os seus primeiro!
Um dos brucutus exibiu a característica carteira preta, de couro, com distintivo cromado, em tudo idêntica às anunciadas pelo curso por correspondência de detetive particular do Instituto Monitor. Aproveitando-se da distração de Xixo, que, sob a luz difusa do poste, tentava entender o que era aquilo à sua frente, o galalau virou-lhe uma violenta bofetada na cara. Percebendo que estávamos em maus lençóis, fomos rápidos e educadamente esticando as nossas identidades, mas os homens não queriam mais conversa. Estávamos detidos por desacato à autoridade. Fomos amontoados, como sacos de batata, no bagageiro do insuspeitado camburão. No trajeto, os policiais ainda abordaram dois rapazes em atitude suspeita, sob a marquise de uma loja: estavam fumando um baseadinho. Agora, estávamos em oito no bagageiro da Veraneio! Não parece, mas como cabe gente nesses carros da polícia. Ao chegar à Delegacia de Entorpecentes, fomos conduzidos a uma sala ampla, onde havia somente uma pequena mesa de madeira e um beliche, corroído pelos cupins, no qual encontrava-se algemado um batedor de carteiras.
– Todo mundo pelado! – ordenou o policial.
Para o homem civilizado é vergonhoso ficar nu na frente dos outros, ainda mais quando não se conhece a criatura. Mas ficar nu nas noites frias e chuvosas do inverno curitibano vai além da simples humilhação. Vimo-nos, então, como oito grotescos macacos pelados, de minúsculos pintos, tiritando de frio. Ajoelhados, obedecíamos a um círculo imaginário, desenhado no chão úmido, de cimento, pelo dedo indicador do mata-cachorro. Assim permanecemos durante um bom tempo, de braços cruzados, sem podermos sequer descansar sobre os calcanhares, sob os olhares irônicos, tanto dos policiais quanto do larápio, vestido. A porta abriu-se de sopetão, e um dos rapazes foi chamado. Foi-se, pelado, aterrorizado e constrangido. Ficamos olhando para o seu amigo, choroso, quando ouvimos um grito lancinante, vindo das catacumbas, onde homens morriam como porcos, assassinados pela ponta de uma baioneta no coração. Sim, aquela delegacia tinha muitos porões, onde presos mofavam, depois da ração diária de choques elétricos nos testículos. Logo em seguida, o outro rapaz foi também levado. Entreolhamo-nos, os corpos não queriam parar quietos, tremiam apesar do esforço em mantê-los quietos, dignos. Por causa disso, tremiam mais ainda. Já não éramos capazes de olhar uns para os outros. Rezávamos em silêncio.
Então, o nosso grupo começou a ser chamado, de um em um. Cambaio foi o primeiro. Não voltou. Seguiu-o Zé Gordo. Depois, Vostok, Xixo e Carlito. Nenhum deles voltou! Eu fiquei por último. Posso assegurar, sem sombra de exagero, que eu estava realmente apavorado, imaginando as piores atrocidades.
Numa chave de braço, fui conduzido à mesa do delegado, uma escrivaninha de tampo mais baixo que o normal, encimada por uma lâmpada de luz mortiça.
– De mãos abertas em cima da mesa! – gritou o policial. – Mais perto do delegado!
– Quantos você fumou hoje? – perguntou o chefe de polícia, melífero.
Não tive tempo de responder; uma ripada na bunda jogou-me esparramado por cima da mesa, dando uma cabeçada no peito do delegado. Recompus-me ligeiro; ao mesmo tempo, as minhas roupas eram arremessadas na minha cara.
– Se veste e desaparece, vagabundo!
Não precisou pedir duas vezes. Entre contente e dolorido, vesti-me mais rápido que o Flash e, desorientado, saí em busca da porta da rua, quando ouvi chamarem.
– Ei, aqui!
Eram meus companheiros de farra que, do lado de fora, acenavam pressurosos. Ao chegar à rua, nunca me senti tão bem ao levar na cara a golfada de ar gelado que só o bendito inverno curitibano é capaz de proporcionar àqueles que emergem do inferno da incerteza.
Em vez de irmos para casa, resolvemos terminar a noite no Guarda-Chuva, o bar onde o grande músico Pelicano Preto estava se apresentando. Ao chegarmos, ele cantava o seu conhecido hit "Nega, Neguinha". Sentamo-nos à mesa do camarada Bozó, já preocupado com a nossa demora; ele saíra um pouco antes do restaurante, de táxi, combinando nos esperar no bar. Ao ver-nos, os seis, incomodamente sentados de lado, para evitar a dor provocada pela ripada, perguntou intrigado o que acontecera. Suas gargalhadas inundaram o ambiente do Guarda-Chuva. O que sei é que, para evitar a dor (parecia que tínhamos quebrado a bacia), fomos obrigados a dormir de barriga para baixo durante uma semana, enquanto gargalhando Bozó fazia questão de contar a nossa desventura a todos que nos visitavam.
A última vez foi em Campinas, interior de São Paulo. Voltando da faculdade, quase meia-noite, resolvi comer um cachorro-quente e tomar uma Coca-Cola na carrocinha da esquina, a uma quadra de casa. Satisfeito, de barriga cheia, fui abordado por três camburões. Os bichos desceram enfurecidos, já gritando:
– Documento!
Prontamente, estendi a carteira de identidade, porque gato escaldado tem medo até de água benta. Ainda mais quando se está sozinho, numa cidade onde não se conhece ninguém.
– Documento de gente honesta é carteira de trabalho! – berrou o gafonha.
– Eu é que não vou andar com aquele calhamaço no bolso! – respondi, sem refletir e sem obviamente ainda ter aprendido definitivamente a lição: com os homens da lei não se deve retrucar, eles são os representantes de Deus na terra, fazendo e desfazendo das nossas míseras vidas quando bem entendem.
– Leva! – gritou o motorista de uma das viaturas.
– Não, por favor, eu tenho que trabalhar amanhã. Como é que eu vou explicar no banco que fui preso? Por favor!
– Some daqui, filho da puta!
Obedeci prontamente, sem ao menos olhar para trás, com medo de virar estátua de sal. Olha, hoje, pensando melhor, os caras podiam me xingar de tudo naquela hora, mas botar a honra da minha santa mãezinha em questão foi muita falta de consideração.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

O AMIGO MAIS VELHO


por Edson Negromonte

A minha conscientização política aconteceu de variadas maneiras, seja através de panfletos, surgidos sabe-se lá de onde, seja ouvindo as conversas veladas dos adultos ou através da leitura de alguns livros ainda permitidos, como "A República", de Platão, e "A Cidadela", de Tomaso Campanella, em edições surradas, mas principalmente através do amigo Wagner que, um dia, me emprestou sem como nem porquê, mas cheio de recomendações, o diário de guerrilha de Che Guevara. Talvez visse no amigo mais novo alguém digno de confiança. De uma geração anterior à minha, muito antes da minha chegada a Antonina, ele já se mudara para Santos; por aqui aportando somente nas férias. Antes do total obscurantismo, imposto pela censura dos generais, ele colecionara religiosamente as páginas do líder guerrilheiro, publicadas no jornal O Globo, colando-as cuidadosamente nas folhas de um prosaico caderno de desenho. Era um dos seus tesouros. Agora, isso dava prisão, tortura e até morte, que podiam se estender a outros membros da família. Então, todo cuidado era pouco. Portanto, isso era coisa que não se comentava com qualquer um. Para que se ficasse sabendo desses tesouros enterrados nos porões das casas, era preciso primeiro adquirir a confiança do outro. Eis que, uma dada noite, recebi o diário do Che das mãos de Wagner, como se recebesse um carregamento de droga, num tráfico de conhecimento, mocozeado numa encardida mochila de lona. Despedi-me dele e fui para casa, trêmulo, apreensivo, à espreita; a qualquer instante vultos saltariam da escuridão e me arrebatariam o volume. Consegui chegar incólume ao meu quarto, o qual ficava do lado de fora da casa. Com o abajur aceso até altas horas da madrugada, deliciei-me com os recortes, lendo-os gulosamente, deixando escapar palavras, adivinhando sentidos, mas comungando com a tão sonhada liberdade da América Latina, quase toda controlada por militares e pelo poderio econômico dos Estados Unidos. Com a chegada das primeiras luzes da manhã e do sono insistente, escondi o caderno sob o colchão, pois nem meus pais deviam saber o que eu andava lendo. Podia ser perigoso para eles; eu não queria ver minha mãe pendurada no pau de arara, levando choques na genitália. Ou as unhas de meu cachorro Toddy sendo arrancadas a frio, para que o coitado, sob coação, confessasse que o meu quarto era um aparelho. Hoje, isso pode parecer paranoia, mas contava-se nos bares sobre um bebê ameaçado pelos torturadores, os quais lhe faziam perguntas sobre atividades comunistas. A mãe, presente na sala, a tudo assistia, aos prantos, enquanto os policiais interrogavam o pequeno. Evidente que a mãe é que respondia pela criança, mas os policiais nem sequer olhavam para ela, ignorando-a, fazendo de conta que as respostas desesperadas e convenientes vinham da boca do bebê, que aterrorizado só sabia chorar. Então, estava decidido: no dia seguinte, eu iria também dar a vida pela causa, pela libertação do país, pegar em armas, combater o poder dominante. Depois da limpeza doméstica, como o Che, combateria em outras terras e não descansaria enquanto houvesse um foco de totalitarismo no planeta. Sim, eu iria embora, sem avisar pai nem mãe. Não podendo expor meus entes queridos ao perigo, adotaria outro nome, um codinome. Adormeci, cheio de convicções revolucionárias.
Por volta do meio-dia, radiante o sol atravessava a vidraça do quarto, sem cortinas. Agora, pensando melhor, como eu faria para participar da luta armada? A quem me dirigir? Era melhor deixar a partida para a noite. Ou, quem sabe, para o dia seguinte. É isso mesmo, precisava antes fazer os contatos, não podia sair assim sem mais nem menos. Precisava contar os meus planos para o amigo mais velho. Somente para ele. Quem sabe, e se ele me acompanhasse na luta pela libertação dos oprimidos? Andei pela cidade e não o encontrei. Talvez estivesse em reuniões importantes, engendrando novos planos para a tomada do poder. Encontrei outros amigos, da minha idade, a conversar despreocupadamente sobre futebol, as meninas, o mar, o tempo... Com eles fiquei; sim, a revolução podia esperar.
Na tarde do dia seguinte, finalmente encontrei o amigo mais velho. Entusiasmado, contei-lhe meus planos. Desconversou, perguntando-me se eu já ouvira com atenção os sambistas da velha guarda. Sentados na escadaria em frente à casa do avô, falou-me de gente como Zé Kéti, Cartola e Nelson Cavaquinho, enaltecendo as letras, de aparente simplicidade, mas, ao mesmo tempo, de insuspeitada herança parnasiana. As letras de música eram, para ele, de grande interesse, relacionando Caetano Veloso com Fernando Pessoa, principalmente no fado "Os Argonautas", alertando-me, em voz baixa, sobre um trecho da letra de "Soy Loco por Ti, América", quando o compositor diz el nombre del hombre muerto, ya no se puede decirlo. Surpreendentemente, revelou-me que isso era uma alusão ao Che. Eu, por minha vez, mais jovem, retribuía as lições de música popular brasileira com informações sobre rock, a minha paixão, contando-lhe sobre bandas como Blood, Sweat & Tears, Sugarloaf e Argent, entre tantas outras. (Alguns anos mais tarde, assombrou-me a sua paixão por Pink Floyd. Ele comprara dois exemplares de "The Dark Side of the Moon". Um para ouvir até gastar e o outro para guardar no fundo do baú, como se guarda uma relíquia, acrescentando que era coisa digna de se mostrar aos filhos, os quais ele ainda não tinha. Contei-lhe, então, indignado que o crítico Tárik de Souza escrevera na revista "Rock – História e Glória" que, neste LP, a banda tinha se transformado no Ray Conniff do rock. Plácida e sabiamente, retrucou: – E que problema há em ser o Ray Conniff do rock?)
A nossa agradável conversa sobre música foi interrompida por um bêbado, cantarolando:

Com a marvada pinga que eu me atrapaio
Eu entro na venda, já dou meu taio...

Era a famosa "Moda da Pinga", o imorredouro sucesso de Inezita Barroso ecoando no morno final de tarde antoninense. Despedimo-nos em meio a risos; era hora de jantar.
À noite, saboreando uma Choco-milk, eu assistia ao Fantástico, encostado no balcão da lanchonete do Oswaldo quando, num dos quadros musicais do programa televisivo, surge um jovem tocando uma craviola, instrumento de belíssima sonoridade, mas de difícil execução, inventado por Paulinho Nogueira. Extasiado com a técnica de Stênio Mendes (este era o nome do virtuose), ouvi uma voz conhecida ao meu lado.
– Esse cara é demais!
Era Wagner, também encantado com a execução de "Algazarra dos Monges". Ao final do quadro, tecemos comentários sobre os grandes músicos do país, esquecidos, marginalizados, sem acesso aos meios de comunicação. E continuamos conversando sobre música, muita música, todo o tipo de música, trocando ideias, muitas ideias, e voltando à nossa mais recente descoberta, Stênio Mendes, o qual ainda não tinha nenhum disco lançado; falamos também sobre o disco ao vivo de Alceu Valença, com "Papagaio do Futuro", música que o amigo considerava um primor, sobre a guitarra infernal de Lanny Gordin, no disco da Gal; o tão comentado e jamais ouvido "Não Fale com Paredes", do Módulo Mil, sobre A Bolha, o Terço, Novos Baianos, as letras estranhas e cheias de toques de Galvão, a voz de Baby Consuelo, que Wagner dizia remeter à Ademilde Fonseca (de quem eu nunca ouvira falar), sobre Wally Sailormoon, que lançara o livro "Me Segura que Eu Vou Dar um Troço", sobre bolero (outra coisa que eu detestava, mas que o professor fez questão de mostrar a beleza do ritmo na voz de Roberto Luna. Puxa, outro desconhecido!), sobre Drummond, o "Orlando", de Virginia Woolf, João Cabral, Silvia Plath, a poesia engajada de Ernesto Cardenal, Neruda, Cesar Vallejo, Mao Tsé Tung, a capa de "Some Time in New York Ciry", a nudez de John e Yoko, os contos de Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, Mario Vargas Llosa, enfim, a emergente literatura latino-americana, a entrevista de Sidney Magal para o Folhetim, a cigana Sandra Rosa Madalena, sobre o carnaval que se aproximava, Nenê Chaminé, o carnavalesco que abria a festa carregando um urinol cheio de cerveja, onde boiava uma prosaica linguiça, sobre o Bloco das Escandalosas, com insuspeitos chefes de família travestidos com as roupas das esposas...
Porque a ocasião exigia, pedimos então mais uma rodada dos deliciosos sonhos do Oswaldo, recheados de creme.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

O GRANDE EVENTO


por Edson Negromonte

Naquela manhã chuvosa de 24 de abril de 1933, a segunda-feira prometia ser como sempre são os inícios de semana nas cidadezinhas do interior. Apesar do intenso movimento portuário, a modorra era quebrada somente pelos apitos estridentes dos navios e as ocasionais badaladas do sino da Matriz. Mas os mais velhos, aqueles que beiram hoje os oitenta ou noventa anos, ainda lembram com entusiasmo da chegada do Almirante Jaceguay, uma embarcação mista, pertencente ao Lloyd Brasileiro, com destino à Argentina. Esse navio, construído em 1912, era um dos mais suntuosos da companhia, com capacidade para 270 passageiros, fazendo a rota de Manaus a Buenos Aires. Não que fosse novidade embarcações desse porte em nosso porto, mas a lista de passageiros era das mais seletas, contando com nomes que se pronunciados a qualquer momento, seja nos lares, seja nos bares, suscitavam suspiros apaixonados e a conversa derivava inevitavelmente para a vida romanesca dessas personalidades, evocando seus últimos namoros, os penteados, o corte dos ternos, os mais recentes sucessos. Eram artistas do teatro e do rádio, gente que víamos somente em revistas de fofoca, jornais e alguns filmes. Gente de um lugar longínquo, o Rio de Janeiro, tão distante da nossa realidade comezinha.
Apesar da garoa, quem, desavisado, pelo porto passasse pensaria que toda a população antoninense estava ali presente. Doce ilusão! Em 1933, segundo o recente recenseamento, a cidade já contava orgulhosamente com treze mil habitantes. Os meninos, alvoroçados, seguidos dos mais velhos, vinham curiosos para ver de perto aquela gente glamorosa, brilhante, feita especialmente das ondas sublimes do rádio, gente que vivia e atuava na então capital federal, um lugar inatingível a meros mortais. Eram os artistas do Teatro Alhambra, a nata da arte popular de todos os tempos, para pasmo de alguns céticos que, nas gares do Mercado Municipal, encorajados por uns goles a mais de aguardente, afirmavam que esses seres tão sublimes, quase diáfanos, dos quais conhecía-se sobretudo as vozes, não existiam de verdade, e, diziam mais, que as fisionomias, entrevistas em revistas, eram, sim, o fruto de uma imaginação fértil, semeada e adubada por espertinhos, gente entendida em criar necessidades na mente simples de um povo ingênuo.
A bem da verdade, o porto estava mesmo apinhado de gente, a plateia de um grande auditório a céu aberto. Eram eles, sim, eram eles! Os grandes artistas do famoso Alhambra, em carne e osso! E voz! E, da amurada do navio, dando com a mão para o público! Isso, por si só, já era um grande espetáculo, digno de se guardar na memória. Como o Jaceguay estava fadado a permanecer em nossas águas até as onze horas da noite, a fim de proceder ao carregamento de gêneros alimentícios, os ilustres passageiros desceram à terra firme para conhecer e desfrutar da agradável cidadezinha colonial. Nessa ocasião, enquanto exploravam o comércio local, os artistas foram abordados por Álvaro Paciência, o provedor do Hospital de Caridade, entidade mantida pela população, além de se valer também de concertos beneficentes para angariar fundos e dar continuidade, assim, à obra benemérita de amparar os desvalidos. Então, o bondoso Paciência, nascido Álvaro Rodrigues da Costa, conseguiu que a trupe se apresentasse de graça no Theatro Municipal, cuja renda reverteria única e exclusivamente para as obras caridosas do hospital. Em seguida, o maestro Urquiza e a Lyra Antoninense, banda local formada por crianças e adolescentes, foram acionados para recepcionar condignamente o público, à porta da casa de espetáculos, com marchinhas e foxtrotes. Até hoje, esse teatro é um dos orgulhos da população, principalmente após a restauração nos anos 80, que lhe devolveu a antiga imponência. Apesar de constar da fachada a data de 1906, pode-se recuar mais alguns anos no tempo e atribuir-lhe, como data de edificação, o ano de 1875, pois o prédio atual é remanescente de um teatro mais antigo, fundado pela Sociedade Teatral Aurora Antoninense.
Os moradores precisavam desse refrigério para aliviar os espíritos, pois no mês de fevereiro tinham sido barbaramente surpreendidos com aquilo que a imprensa local chamou de "O Crime do Mercado", quando o jovem comerciante Christiano Hacker desferira, em legítima defesa, uma facada fatal no coração de Cyrillo Pin, um marinheiro arruaceiro que tentava esbofeteá-lo pela segunda vez. Ou, no mês seguinte, do tiroteio descabido nas ruas centrais da cidade, pondo em risco a segurança dos transeuntes, quando o soldado Joaquim perseguia esbaforido o facínora José Ferreira, oriundo de Santa Catarina e morador no bairro do Itapema. Não bastassem tantas ocorrências escabrosas em tão pouco tempo, os cidadãos viviam também sob a ameaça de um terror maior, pois o Almanaque de Antonina, na edição de 1933, na página 9, trazia as profecias de Cagliostro II, um afamado e confiável ocultista da capital. Assegurava ele que a soma dos números deste ano davam origem ao arcano responsável principalmente pela destruição do porvir e que, no fim do ano, um vulcão entraria em erupção, trazendo moléstias piores que a devastadora gripe espanhola. Temia-se por tudo isso, mas principalmente pelo vulcão, embora não se tivesse conhecimento de nenhuma dessas montanhas irritadiças no município. Por isso, no domingo imediatamente anterior a essa segunda-feira, a gente da cidade acorrera em massa para prestigiar o magnífico elenco do Grande Circo Show, o qual contava com uma maravilhosa coleção de feras amestradas, da qual se sobressaía o temível leão Prince, imponente animal dourado vindo diretamente das brenhas africanas e que, até aquela data, já devorara pelo menos três domadores. Assim, na segunda-feira, enquanto os meninos sonhavam, de olhos abertos, com o que podia haver entre as coxas da trapezista, a elite antoninense pode apreciar os grandes nomes da época. Apresentaram-se, então, no Theatro Municipal, Jayme Costa, Ítala Ferreira e Procópio Ferreira, os expoentes nacionais das artes cênicas, recitando e fazendo pequenos esquetes teatrais, mais os principais nomes da era de ouro do rádio brasileiro. Perto de completar 25 anos, Sílvio Caldas deleitou o público com "Faceira", seu grande sucesso de três anos atrás, Mesquitinha, que mais tarde se tornaria diretor de cinema, cantou a impagável "Não Tenho um Tostão no Bolso" e Luís Barbosa, usando o chapéu palheta como instrumento musical, também arrancou risos com "A Mulher é Veneno", enquanto o jovem Almirante emendava com "Na Gruta do Feiticeiro". Com incompletos dezoito anos, ainda inédita em disco, Aracy de Almeida brindou a plateia com sua linda voz, a qual só seria conhecida do grande público no ano seguinte, com a gravação da marchinha de carnaval "Em Plena Folia". Aplausos. Quando parecia que nada mais superaria a apresentação das irmãs Linda e Dircinha Batista, com apenas 14 e 11 anos, respectivamente, cantando juntas "A Órfã", eis que surge em cena Aurora Miranda, no frescor dos 18 anos, cantando a ainda inédita "Cai, Cai, Balão", a canção junina que viria a ser o seu disco de estreia, no qual ela faz par com Francisco Alves, o eterno Rei da Voz. Mais aplausos. Para delírio de todos, sai de trás das cortinas, apoteótica, cantando "Pra Você Gostar de Mim (Taí)", a esfuziante Carmen Miranda. Sim, ela, a então Ditadora Risonha do Samba, dois anos antes de se tornar conhecida como a Pequena Notável e seis antes de embarcar para os Estados Unidos e lá alcançar a fama internacional, como the brazilian bombshell. Palmas, assovios, ovação geral. Então, a plateia pediu, entre gritos, que ela cantasse "Moleque Indigesto", a composição de Lamartine Babo que fora um dos sucessos do carnaval daquele ano. Aproveitando o ensejo, o conterrâneo Izidoro Costa Pinto subiu ao palco e pediu a palavra, para agradecer em nome de toda a população a excelente apresentação daquela gente de sonho. De um único pulo, comicamente, um irrequieto pianista passa por cima do instrumento e cai direto no centro do palco, retribuindo as lisonjeiras e eloquentes palavras do grande orador antoninense. O tal pianista era, ninguém mais, ninguém menos, que o maestro Ary Barroso, o compositor de "Aquarela do Brasil", entre tantas outras joias do nosso imortal cancioneiro popular.
Apesar da constelação reunida no pequeno palco, também brilhavam na plateia as estrelas locais, como Joubert; um jovem declamador, cantor e ator, que se destacava nos grêmios recreativos da cidade, principalmente no Lyrial, do Clube dos Operários, em dupla com Peixotinho. Alguns olhares apaixonados recaíam sobre a poetisa Mary Camargo. Mas o que chamava mesmo a atenção era a beleza estonteante de Stellinha Egg, recém-saída da adolescência, professora do Grupo Escolar Ermelindo Matarazzo, de voz maviosa e presença constante nos concorridos saraus da cidade. Além de cantora, Stellinha causara furor entre a juventude quando, dois meses antes, encabeçou um abaixo-assinado para a libertação do ativista político Obdulio Barthe, encarcerado no Paraguai. Talvez movida pelo inesquecível espetáculo proporcionado pela trupe do Alhambra, a professorinha tenha decidido se dedicar profissionalmente à carreira artística, deixando assim a pequena cidade para gravar, em 1944, o seu primeiro 78rpm, com a romântica "Uma Lua no Céu, Outra Lua no Mar", do lado A, e, no outro lado, a brejeira "Tapioquinha de Coco".