sexta-feira, 9 de julho de 2010
O GRANDE EVENTO
por Edson Negromonte
Naquela manhã chuvosa de 24 de abril de 1933, a segunda-feira prometia ser como sempre são os inícios de semana nas cidadezinhas do interior. Apesar do intenso movimento portuário, a modorra era quebrada somente pelos apitos estridentes dos navios e as ocasionais badaladas do sino da Matriz. Mas os mais velhos, aqueles que beiram hoje os oitenta ou noventa anos, ainda lembram com entusiasmo da chegada do Almirante Jaceguay, uma embarcação mista, pertencente ao Lloyd Brasileiro, com destino à Argentina. Esse navio, construído em 1912, era um dos mais suntuosos da companhia, com capacidade para 270 passageiros, fazendo a rota de Manaus a Buenos Aires. Não que fosse novidade embarcações desse porte em nosso porto, mas a lista de passageiros era das mais seletas, contando com nomes que se pronunciados a qualquer momento, seja nos lares, seja nos bares, suscitavam suspiros apaixonados e a conversa derivava inevitavelmente para a vida romanesca dessas personalidades, evocando seus últimos namoros, os penteados, o corte dos ternos, os mais recentes sucessos. Eram artistas do teatro e do rádio, gente que víamos somente em revistas de fofoca, jornais e alguns filmes. Gente de um lugar longínquo, o Rio de Janeiro, tão distante da nossa realidade comezinha.
Apesar da garoa, quem, desavisado, pelo porto passasse pensaria que toda a população antoninense estava ali presente. Doce ilusão! Em 1933, segundo o recente recenseamento, a cidade já contava orgulhosamente com treze mil habitantes. Os meninos, alvoroçados, seguidos dos mais velhos, vinham curiosos para ver de perto aquela gente glamorosa, brilhante, feita especialmente das ondas sublimes do rádio, gente que vivia e atuava na então capital federal, um lugar inatingível a meros mortais. Eram os artistas do Teatro Alhambra, a nata da arte popular de todos os tempos, para pasmo de alguns céticos que, nas gares do Mercado Municipal, encorajados por uns goles a mais de aguardente, afirmavam que esses seres tão sublimes, quase diáfanos, dos quais conhecía-se sobretudo as vozes, não existiam de verdade, e, diziam mais, que as fisionomias, entrevistas em revistas, eram, sim, o fruto de uma imaginação fértil, semeada e adubada por espertinhos, gente entendida em criar necessidades na mente simples de um povo ingênuo.
A bem da verdade, o porto estava mesmo apinhado de gente, a plateia de um grande auditório a céu aberto. Eram eles, sim, eram eles! Os grandes artistas do famoso Alhambra, em carne e osso! E voz! E, da amurada do navio, dando com a mão para o público! Isso, por si só, já era um grande espetáculo, digno de se guardar na memória. Como o Jaceguay estava fadado a permanecer em nossas águas até as onze horas da noite, a fim de proceder ao carregamento de gêneros alimentícios, os ilustres passageiros desceram à terra firme para conhecer e desfrutar da agradável cidadezinha colonial. Nessa ocasião, enquanto exploravam o comércio local, os artistas foram abordados por Álvaro Paciência, o provedor do Hospital de Caridade, entidade mantida pela população, além de se valer também de concertos beneficentes para angariar fundos e dar continuidade, assim, à obra benemérita de amparar os desvalidos. Então, o bondoso Paciência, nascido Álvaro Rodrigues da Costa, conseguiu que a trupe se apresentasse de graça no Theatro Municipal, cuja renda reverteria única e exclusivamente para as obras caridosas do hospital. Em seguida, o maestro Urquiza e a Lyra Antoninense, banda local formada por crianças e adolescentes, foram acionados para recepcionar condignamente o público, à porta da casa de espetáculos, com marchinhas e foxtrotes. Até hoje, esse teatro é um dos orgulhos da população, principalmente após a restauração nos anos 80, que lhe devolveu a antiga imponência. Apesar de constar da fachada a data de 1906, pode-se recuar mais alguns anos no tempo e atribuir-lhe, como data de edificação, o ano de 1875, pois o prédio atual é remanescente de um teatro mais antigo, fundado pela Sociedade Teatral Aurora Antoninense.
Os moradores precisavam desse refrigério para aliviar os espíritos, pois no mês de fevereiro tinham sido barbaramente surpreendidos com aquilo que a imprensa local chamou de "O Crime do Mercado", quando o jovem comerciante Christiano Hacker desferira, em legítima defesa, uma facada fatal no coração de Cyrillo Pin, um marinheiro arruaceiro que tentava esbofeteá-lo pela segunda vez. Ou, no mês seguinte, do tiroteio descabido nas ruas centrais da cidade, pondo em risco a segurança dos transeuntes, quando o soldado Joaquim perseguia esbaforido o facínora José Ferreira, oriundo de Santa Catarina e morador no bairro do Itapema. Não bastassem tantas ocorrências escabrosas em tão pouco tempo, os cidadãos viviam também sob a ameaça de um terror maior, pois o Almanaque de Antonina, na edição de 1933, na página 9, trazia as profecias de Cagliostro II, um afamado e confiável ocultista da capital. Assegurava ele que a soma dos números deste ano davam origem ao arcano responsável principalmente pela destruição do porvir e que, no fim do ano, um vulcão entraria em erupção, trazendo moléstias piores que a devastadora gripe espanhola. Temia-se por tudo isso, mas principalmente pelo vulcão, embora não se tivesse conhecimento de nenhuma dessas montanhas irritadiças no município. Por isso, no domingo imediatamente anterior a essa segunda-feira, a gente da cidade acorrera em massa para prestigiar o magnífico elenco do Grande Circo Show, o qual contava com uma maravilhosa coleção de feras amestradas, da qual se sobressaía o temível leão Prince, imponente animal dourado vindo diretamente das brenhas africanas e que, até aquela data, já devorara pelo menos três domadores. Assim, na segunda-feira, enquanto os meninos sonhavam, de olhos abertos, com o que podia haver entre as coxas da trapezista, a elite antoninense pode apreciar os grandes nomes da época. Apresentaram-se, então, no Theatro Municipal, Jayme Costa, Ítala Ferreira e Procópio Ferreira, os expoentes nacionais das artes cênicas, recitando e fazendo pequenos esquetes teatrais, mais os principais nomes da era de ouro do rádio brasileiro. Perto de completar 25 anos, Sílvio Caldas deleitou o público com "Faceira", seu grande sucesso de três anos atrás, Mesquitinha, que mais tarde se tornaria diretor de cinema, cantou a impagável "Não Tenho um Tostão no Bolso" e Luís Barbosa, usando o chapéu palheta como instrumento musical, também arrancou risos com "A Mulher é Veneno", enquanto o jovem Almirante emendava com "Na Gruta do Feiticeiro". Com incompletos dezoito anos, ainda inédita em disco, Aracy de Almeida brindou a plateia com sua linda voz, a qual só seria conhecida do grande público no ano seguinte, com a gravação da marchinha de carnaval "Em Plena Folia". Aplausos. Quando parecia que nada mais superaria a apresentação das irmãs Linda e Dircinha Batista, com apenas 14 e 11 anos, respectivamente, cantando juntas "A Órfã", eis que surge em cena Aurora Miranda, no frescor dos 18 anos, cantando a ainda inédita "Cai, Cai, Balão", a canção junina que viria a ser o seu disco de estreia, no qual ela faz par com Francisco Alves, o eterno Rei da Voz. Mais aplausos. Para delírio de todos, sai de trás das cortinas, apoteótica, cantando "Pra Você Gostar de Mim (Taí)", a esfuziante Carmen Miranda. Sim, ela, a então Ditadora Risonha do Samba, dois anos antes de se tornar conhecida como a Pequena Notável e seis antes de embarcar para os Estados Unidos e lá alcançar a fama internacional, como the brazilian bombshell. Palmas, assovios, ovação geral. Então, a plateia pediu, entre gritos, que ela cantasse "Moleque Indigesto", a composição de Lamartine Babo que fora um dos sucessos do carnaval daquele ano. Aproveitando o ensejo, o conterrâneo Izidoro Costa Pinto subiu ao palco e pediu a palavra, para agradecer em nome de toda a população a excelente apresentação daquela gente de sonho. De um único pulo, comicamente, um irrequieto pianista passa por cima do instrumento e cai direto no centro do palco, retribuindo as lisonjeiras e eloquentes palavras do grande orador antoninense. O tal pianista era, ninguém mais, ninguém menos, que o maestro Ary Barroso, o compositor de "Aquarela do Brasil", entre tantas outras joias do nosso imortal cancioneiro popular.
Apesar da constelação reunida no pequeno palco, também brilhavam na plateia as estrelas locais, como Joubert; um jovem declamador, cantor e ator, que se destacava nos grêmios recreativos da cidade, principalmente no Lyrial, do Clube dos Operários, em dupla com Peixotinho. Alguns olhares apaixonados recaíam sobre a poetisa Mary Camargo. Mas o que chamava mesmo a atenção era a beleza estonteante de Stellinha Egg, recém-saída da adolescência, professora do Grupo Escolar Ermelindo Matarazzo, de voz maviosa e presença constante nos concorridos saraus da cidade. Além de cantora, Stellinha causara furor entre a juventude quando, dois meses antes, encabeçou um abaixo-assinado para a libertação do ativista político Obdulio Barthe, encarcerado no Paraguai. Talvez movida pelo inesquecível espetáculo proporcionado pela trupe do Alhambra, a professorinha tenha decidido se dedicar profissionalmente à carreira artística, deixando assim a pequena cidade para gravar, em 1944, o seu primeiro 78rpm, com a romântica "Uma Lua no Céu, Outra Lua no Mar", do lado A, e, no outro lado, a brejeira "Tapioquinha de Coco".
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Mais uma que voce me apronta...que delicia de cronica,Edson...fiquei imaginando os nossos avós se deliciando com um tempo - eles não sabiam - que seria o apogeu da cidade...alem do texto, bela pesquisa de época...mas me conta: Stelinha Egg deu aulas no Ermelindo Matarazzo? jura?
ResponderExcluirabraços
Jeff Picanço
Novamente obrigado pelas palavras, Jeff. Sim, Stellinha Egg foi professora do Ermelindo Matarazzo, os seus diários de classe estão arquivados no Valle Porto. Antonina tem tantas histórias... de riqueza ímpar, que uma vida é insuficiente para contá-las. Abraços!
ResponderExcluirEm tempo, Jeff; acabei de corrigir o nome do grupo escolar. Novamente obrigado. Abraço!
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