quarta-feira, 21 de junho de 2017

AUTO DA FUGA PARA O EGITO




Edson Negromonte
ilustração: Candido Portinari


Na fuga para o Egito, José e Maria viram-se, então, na pequenina aldeia de Antonina, aos pés da Serra do Mar, banhada pelas águas do oceano Atlântico. De repente, o céu mostrou-se excessivamente escuro àquela hora do dia, prenunciando um aguaceiro daqueles. Ao entrarem na praça principal, as altivas palmeiras imperiais, seguidas pelos súditos tamarindeiros, se curvaram à sua passagem. Em frente ao coreto, José avistou uma bica. Matou a sede e, com as mãos em concha, levou um pouco de água para Maria; a travessia do deserto tinha sido árdua, expostos à sanha dos ladrões e ás feras.

– Que água boa, José! Com água tão boa e refrescante, o povo daqui há de ser hospitaleiro.

E Maria pediu um pouco mais de água para José. E José, sempre solícito com sua amada esposa, levou-lhe mais um pouco de água, em suas mãos em concha.

– Agora, vamos, mulher, em busca de abrigo para a noite que já está aí. Tens de dormir sob um teto hoje, para não põr a tua saúde e a do pequeno em risco, que ainda temos chão pela frente.

Assim foi que seguiram, José puxando o burro, e Maria montada no burro. E bateram à porta de um suntuoso palacete, situado na esquina da praça principal, no qual morava, nessa época, um poderoso conde.

A pesada porta foi prontamente aberta por um corcunda muito feio. O fâmulo, de aparência terrível, e que era uma corcova só, olhou os viajantes de lado, com o único olho são e remelento que lhe restava, e indagou:

– O que querem vocês à porta do meu amo?
– Pedimos abrigo somente para esta noite, pois eis que se aproxima um terrível temporal – respondeu José.

Antes que o grotesco serviçal destratasse novamente o casal, ouviu-se uma tosse cavernosa e a figura esguia e sinistra do conde surgiu à imensa porta do palacete. Ao avistar Maria, montada no burro, o conde, que não era bobo nem nada, respeitosamente lhe perguntou:

– O que levas aí, neste embrulho que trazes tão junto ao seio? E com tanto zelo?
– É o meu menino – ela respondeu.

O conde, então, disfarçou um leve enternecimento, aliás, estremecimento.

Ao ouvir tal resposta, o conde, que não era bobo nem nada, disse melífluo a Maria;

– Mil desculpas, mas não posso lhes dar abrigo. Sei que bem sabeis que me conhecem e conhecerão como Drácula, o conde Drácula, assim como bem sabeis que meu coração não é dos piores, mil perdões, mas o que alegaria eu ao meu mestre, o Senhor das Profundas, se vos desse acolhimento? Por certo que bem me compreendeis.

E José e Maria seguiram caminho, em busca de pouso para aquela noite, o cheiro de terra molhada já se fazia presente no ar.

Assim foi que bateram à porta da casa paroquial, a qual ficava em uma outra esquina da praça principal, ao lado da igreja matriz.

Foram atendidos pelo coroinha, que chamou o sacristão, que chamou o padre, que chamou o bispo, que chamou o Papa.

– O que querem vocês à porta do nosso Amo? – inquiriu impaciente o chefe supremo da Santa Madre Igreja.
– Pedimos abrigo somente para esta noite, pois se aproxima um baita temporal, e minha esposa... – ia respondendo José, quando foi bruscamente interrompido pelo Santo Padre.

– Não, não e não, chega de caridade por hoje, nossa cota já se esgotou. Quem sabe, talvez amanhã!

E José e Maria seguiram caminho, em busca de pouso para aquela noite.

Assim foi que bateram à porta de uma residência muito elegante, feericamente iluminada.

Foram atendidos por um mordomo elegantemente trajado.

– Quem sois vós, tão maltrapilhos, que vindes empanar o brilho de tão bela festa em comemoração à independência do País?
– Eu sou... – ia dizendo José, quando um soldado raso botou a cabeça à porta, fazendo-lhe a mesma pergunta.
– Quem sois vós, tão maltrapilhos, que vindes empanar o brilho de tão bela festa em comemoração à independência do País?

Ao que José começava a dar resposta, iam surgindo à porta, cada uma à sua vez, as cabeças do cabo, do sargento, do tenente, e assim por diante, conforme a patente mais alta, até que finalmente surgiu a cabeça imponente da esposa de um general de cinco estrelas, a qual, por sua vez, os interpelou:

– Quem sois vós, tão maltrapilhos, que vindes empanar o brilho de tão bela festa em comemoração à independência do País?
– Pedimos abrigo somente para esta noite, pois se aproxima um violento temporal... – respondeu José.
– Será possível que não vês que a casa está toda ocupada e não tem lugar para mais ninguém? Quem sabe, talvez amanhã!

E José e Maria seguiram caminho, em busca de pouso para aquela noite.

Assim foi que bateram à porta do banqueiro, do prefeito, do vereador, do funcionário público, mas estes não se encontravam em casa, pois estavam na festa em comemoração à independência do País, na qual estavam também os deputados, tanto estaduais quanto federais, os senadores, o vice-presidente, menos o presidente, porque não havia mesmo presidente, o País era governado por generais de cinco estrelas, os quais se revezavam e raramente apareciam em público, eles tinham horror mortal a cheiro de povo.

E José e Maria foram seguindo caminho, em busca de pouso para aquela noite, José puxando o burrico, e Maria montada no burrico, até que, no final de uma estrada que beirava o mangue, deram com uma humilde choupana.

José, então, bateu à porta da choupana.

Um homem atendeu à porta. Era moreno, atarracado e visivelmente embriagado. Sob efeito do álcool, para ver melhor, o homem apertou os olhinhos vermelhos. E, antes que José abrisse a boca, o pinguço foi logo dizendo:

– Entrem, entrem, que um chuvaréu se aproxima, e ninguém deve ficar exposto a um tempo desses. Muito menos o Menino!

O Menino? Ele disse o “Menino”. Foi isso mesmo que eu entendi?

E, assim, José, Maria e o antes menino, mas agora e para sempre Menino, e também o burrinho, entraram e encontraram pouso e abrigo na choupana do torrado. E, antes que José perguntasse, o bom homem foi logo se apresentando.

– Me chamam Tube e digo que minha casa seja a sua casa. Não é muito, mas é o que tenho.

Comovidos, José e Maria agradeceram calados, com uma inclinação de cabeça, que dizia muito mais que mil palavras. E Tube, que sóbrio já era falante, sob efeito da mardita, ficava loquaz e facundo.

– Como eu ia dizendo, a casa é humilde, mas que meu chateau seja o vosso chateau. A cama estreita é muito mais um catre que uma cama, e esse colchão velho é já uma enxerga, mas vocês podem nele repousar, que não há pior deserto na terra que o deserto dos corações humanos. E que o Menino durma sossegado nesse cocho de madeira, o seu bercinho improvisado. E que o burro procure também descansar, que é cansativa e fatigante a jornada ao Egito, pois, como bom e inveterado pudim de cana que tudo adivinha, sei também que vocês estão a fazer o caminho mais longo...

José mostrou-se, então, apreensivo com a língua solta de Tube; a viagem à cidade de Heliópolis, no Egito, era secreta, conforme ordenara o anjo Uriel, o encarregado do orbe do Sol. Mas nem o olhar de José para Maria e, em seguida, novamente para Tube, foi capaz de deter a verbosidade do pequeno hospedeiro.

– ... que passa por Hebrom e Bersabé, atravessa o deserto de Idumesa e entra no Sinai, passando por Antonina, em vez de margear o Mediterrâneo e atravessar a cidade de Gaza, a rota mais fácil, porém a mais perigosa, tomada pelos espiões de Herodes, o Grande.

José olhou incrédulo para Maria, em seguida para o burro e, novamente, para Tube.

– Eu tudo isso compreendi quando, ontem, borracho, como de costume, avistei pros lados do Faisqueira a estrela do Oriente. Agora, meus queridos, durmam em paz que eu vou ficar aqui guardando o fogo, para ficar quentinho para o Menino e para a mãe do Menino.

Vencido pelo cansaço, José deitou-se naquela cama pobre de dar dó, aconchegando-se em Maria, confiante de que estavam, sim, bem guardados pelo torto guardião. Então, pôde a chuva cair, como realmente caiu, sem dó nem piedade.

Depois da madrugada encharcada e enxaguada, o dia amanheceu radiante, de um sol esplendoroso. Mas ainda, nessa mesma noite, aproveitando que o burro acordara (como vocês devem saber, os burros dormem muito pouco, precisam de umas poucas horas de sono para aliviar o cansaço de um dia estafante de trabalho), Tube pediu-lhe que tomasse conta do fogo, que ele ia resolver um assunto e já voltava. Foi assim, então, que Tube roubou, pela segunda vez, o galo de Acrísio, o seu vizinho, e o preparou ensopado para que José e Maria tivessem o que comer durante a penosa viagem ao Egito.

– E tu sabes cozinhar, Tube?
– Tanto e tão bem que, no tempo em que morei em Santos, eu tinha a fama de ser o melhor confeiteiro da cidade!

Quando todos estavam se despedindo, um cachorro e um gato gaiatos apontaram na estrada. Chegando perto, os dois se apresentaram, com mesuras e salamaleques, como “a mais famosa dupla sertaneja da atualidade”.

– Gato e Cão, ao seu dispor! – ronronou o bichano.
– Cão e Gato, ao vosso dispor! - rosnou o cachorro.

Para comprovar os dotes musicais, sem que ninguém pedisse ou deles duvidasse, mais por exibicionismo, os dois foram logo entoando uma velha balada caipira. Entusiasmado, o burro entrou na melodia e fez um belo vocal que deu novo colorido à canção. Nesse mesmo instante, arrebatados pelas palmas de Maria, José e Tube, os três animais resolveram formar um trio. Mas o burro impôs uma condição somente: antes teria que levar José, Maria e o Menino, sãos e salvos, ao seu destino. O cachorro e o gato concordaram prontamente.

– Vamos juntos, todos juntos cantando, que é cantando que se leva a vida, e a viagem, assim, parecerá mais curta e menos árdua. Tudo que gente precisa é amor, e amor é tudo que a gente precisa!
– Assim é, se lhes parece! – disse um besourinho que estava pousado no chapéu de Tube e, calado, como testemunha dessa história, a tudo assistia, para poder contá-la às novas gerações.
– Posso dar um nome um tanto sugestivo, original e curioso ao grupo? Os Músicos de Bremen! Que tal? – disse Tube, com um sorriso.
– Ué, os Músicos de Bremen não eram em quatro? – perguntou-se, então, o leitor atento e perspicaz.
– E você ainda vai querer coerência nessa história? – respondeu o autor, perplexo.

Só mais uma coisinha, à guisa de explicação, para finalizar esse auto: o galo que Tube roubou do Acrísio, pela segunda vez, e cozinhou para a viagem de José e Maria ao Egito, era um galo mágico que, ao final da jornada, ressuscita pela segunda vez. Missão cumprida, o cachorro, o gato, o galo e o burro se reúnem e formam, afinal, o quarteto Os Músicos de Bremen e passam à história com os nomes definitivos de John, Paul, George e Ringo, que, muitos anos depois, passariam à tradição como o fabuloso quarteto de Liverpool. E a letra, prenhe de saudosismo, de sua música de maior sucesso, e que até hoje toca na Rádio Antoninense, diz assim: “When I find myself in times of trouble / Mother Mary comes to me / Speaking words of wisdom, let it be”.

E para arrematar de verdade essa tramoia toda, corroborando a sabedoria popular de que os anjos cuidam das crianças e dos bêbados, o arcanjo Uriel mandou gravar a fogo na porta da humilde choupana, na pequenina aldeia aos pés da Serra do Mar, banhada pelo oceano Atlântico, a estrela de Davi. E tendo dito como disse, afirmo, testifico e dou fé.