sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O POETA DO SÉCULO XIX E A MUSA


por Edson Negromonte
a partir da antologia Grandes Poetas da Língua Inglesa do Século XIX, de José Lino Grünewald

– Cinco verões estiveste em silêncio...
– A sonolência selou meu espírito, fui-me para os montes em busca do palácio do prazer insuspeitado, lutei com nada e nada valeu a lida – sussurrou a musa.
– Ó, alma enferma!
– Não existe mais a filha da beleza, a posteridade não mais há de rever a dama esguia e lívida.
– Por ti, as fontes mesclaram-se à música dos rios, por ti...
– Ó espírito frágil, ó ser mortal, tive eu também temores em cessar de ser.
– Negros vapores oprimem já as planícies.
– Que te pode ainda doer?
– A dor propalada por todos os clarins do céu, a prole do tempo, de lábios hesitantes e som mutilado, eis o que me faz ainda sofrer.
– Bem sabes que eu te vi uma vez, só uma, anos atrás, nos salões de baile da mente, sem teres ainda o aspecto do espectro da falsa manhã.
– Lágrimas, as inúteis lágrimas imergirão no futuro.
– Ora dorme, carmim, a pétala.
– Ó, Inglaterra, de mar cinzento, e longa terra escura.
– Por muito tempo ainda, os caranguejos rastejarão frios nas colinas.
– Murmúrios da morte celestial.
– A ti, acorrerão apressadas as correntes humanas, príncipe dos comedores de lótus.
– Serei, então, o artífice do continente indissolúvel? – perguntou o poeta.
– Pobre diabo, o mar está calmo esta noite. Para mim, que nunca vi o urzal, a palavra está morta.

Porque não pode parar a morte no longo declínio das rosas, acordou e sentiu, no abismo de si mesmo, a inevitável queda escura.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

O TAPETE


texto de Edson Negromonte
foto de Luiz Henrique Ribeiro da Fonseca

e como varreria tudo para baixo do tapete se nem tapete eu tenho? Houve um tempo que acreditei que a poeira vinha dos desertos, que o pó depositado nos cantos da casa avoenga, ora avultante e arenosa, era apenas resquício, resíduo de um deserto particular, interior, intransferível, destinado. Isso, ah, isso foi há muitos, muitos anos atrás quando eu ainda acreditava em tuaregues à espreita, acampados no quintal das gordas goiabas vermelhas, vermes maduros, tempo em que o povo do deserto, montado em grandes, enormes, gigantescos camelos amarelos, assaltava os meus olhos através da tela estelar do Cine Ópera, escondido na avenida central de uma minúscula cidade à beira do mar. Um dia, o povo do deserto, de salteadores, de assalto, seccionou-me os olhinegros. Na mesma sessão, a decisiva sessão de cinema, o povo do deserto desapareceu entre as nuanças do nunca mais. Aos poucos, capítulo a capítulo, a miraculosa luz do sol foi devolvendo-me a visão, uma visão a mim estranha, estrangeira, à qual eu não estava acostumado, que não me pertencia, mas que tornou-se minha, à qual ainda não me acostumei completamente, embora me permita ver as gravuras do povo do deserto, muito embora eu não o reconheça nas gravuras falseadas de um povo nômade e arisco que não mais existe, se é que um dia existiu, desde que levou os meus olhos: o prêmio de uma cegueira cinéfila, cultivada. Dias quentes, inclementes, noites intransigentes, não pude mais ver, sequer perceber por trás do diáfano véu das dançarinas, sentindo somente o odor terrível das cabras do povo do deserto. Hoje, a visão recuperada, não a anterior, mas a adquirida, o que resta de tudo o que intuí é o sentimento da lâmina aguda a cortar a córnea, da lâmina gélida, o aço da cimitarra a cortar a córnea. O que me consola é a consciência de que um menino cego, da mesma idade que eu, a mesma idade que eu tinha àquela época, também abandonado pelos deuses, dará com os meus olhos num dos muitos cantos empoeirados do antigo Cine Ópera, o qual atende agora pelo pomposo nome de Theatro Municipal. Como eu poderia varrer isso tudo para baixo de um, mesmo que fictício, tapete?

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A ILHA DE SÃO BRAVO

por Edson Negromonte

Viver na menor ilha do Arquipélago dos Atobás, após ter se cansado dos grandes centros, agitados, populosos, asfixiantes, tinha certamente outras vantagens além da tão propalada, nos dias de hoje, vida saudável, próxima da natureza, ou seja, para o intelectual de índole selvagem que ele era, o ócio criativo... uma sopa de bagre fresco, o cultivo doméstico do manjericão e uma noção mais elástica do tempo, tempo para morrer como bem entendesse, morte que ele sentia mais próxima do que desejava, um câncer lhe corroía lenta e obstinadamente as entranhas. Em contrapartida, havia o inevitável distanciamento dos produtos culturais, como se isso fosse possível para alguém amamentado pelo tubo de imagem da TV. A anedota preferida, nas rodas de amigos, era contar pela milésima vez que sua ama-de-leite tinha sido Lucille Ball. Não que isso fosse de todo mentira, ele era fanático pela cultura televisiva, as séries americanas, principalmente “I Love Lucy”, sobre a qual chegou a ser considerado, nos meios editoriais, um expert. Em seus planos, havia a decisão de finalmente revisar e enfeixar num único volume todos os artigos escritos sobre a série, espalhados pela imprensa do país. A insatisfação levou-o não a uma ilha totalmente deserta (coisa que ele mesmo não suportaria, apesar da proclamada dificuldade de convivência com os semelhantes), mas à ilha de São Bravo, de poucos habitantes, na grande maioria pescadores. E não há, então, como não trazer à tona o famoso verso de John Donne: “nenhum homem é uma ilha”, o qual conecta-se rapidamente a Ernest Hemingway, que usou-o como epígrafe do romance “Por Quem os Sinos Dobram”, de 1940, o que causou certa celeuma. A crítica o acusou de mentiroso ao atribuí-lo a Donne, assegurando que Hemingway pretendia mostrar uma erudição que, na realidade, não possuía e que, além do mais, o citado verso nem existia na obra do cultuado poeta inglês; a crítica da época, rancorosa, não conseguia engolir o sucesso popular de Hemingway. Invejosos, acusavam o autor de “O Sol Também Se Levanta” de ignorante. Mas, como sempre, pregadora de peças, a história tratou de colocar Hemingway no devido lugar. E, sem vasculhar revistas e jornais antigos, alguém é capaz de sequer lembrar o nome de algum crítico que espinafrou Papá Hemingway? Sem perda de tempo, o melhor é ler ou reler “O Velho e o Mar” ou “Paris é uma Festa”, ou outro que lhe aprouver. Será sempre um grande prazer a leitura de qualquer texto de Hemingway, um conto considerado menor e mesmo o romance inacabado “Ilhas da Corrente”. Nem a poesia, faceta pouco conhecida de Hemingway, praticada esporadicamente desde a juventude, pode passar hoje desapercebida.
Gregório, de apelido Grego, não se insularia em Cuba, como Papá, nem nas Marquesas, como Paul Gauguin, mas em São Bravo, incipiente colônia de pescadores do litoral paranaense, o seu “mares do Sul” particular, bem como Jorge Luis Borges refugiou-se na cegueira cultivada no apartamento de Buenos Aires. Pena que Hemingway, depois de tudo, tenha morrido em Ketchum, no Idaho, e Borges em Genebra. Somente Gauguin, coerente, morreria em Hiva Oa, nas Marquesas, legando aos nativos a herança da sífilis. No início, logo ao mudar, Grego ia quase todos os dias ao trapiche em busca das histórias dos velhos pescadores, somente para descobrir que isso não passava de romantismo juvenil; não há mais os intrépidos trabalhadores do mar, tão bem descritos por Victor Hugo, e nem o mar era ou seria mais o mesmo, os grandes cardumes tornam-se cada vez mais escassos, devido à pesca predatória, tanto por parte dos pequenos quanto dos grandes barcos pesqueiros, de redes assassinas, de malhas estreitas. Talvez por falta de tato, a conversa mais longa que Grego conseguiu entabular com a gente do mar foi sobre a série de TV “Bonanza”, o mesmo nome de uma escuna oriunda de Cananeia. Evidentemente bêbado, com cara de poucos amigos, o capitão engrolara algumas palavras sobre os Cartwright, o velho Ben, Little Joe, Adam e o grandalhão Hoss. Além da casmurrice, algo em comum havia entre ele e o capitão. Lembrou-se imediatamente de uma noite longínqua quando, ao atravessar uma praça de São Paulo, descortinara o elo perdido entre ele e o mendigo que lhe pedia um troco, ao responder que estava “durango”. O mendigo, alcoolizado, fez sinal de positivo e, ao longe, com uma gargalhada, completou: - Durango Kid!; o caubói de preto era o herói preferido da infância de Grego. Talvez fosse também uma boa lembrança da infância do mendigo. Raro momento, num lampejo, os dois estavam irmanados para sempre, assim como ele e o capitão da escuna, apesar de isso ser irrelevante na vida prática. Também o aviador e navegador Alain Gerbault não se sentiu unido aos meninos taitianos nas sessões de faroeste, do cinema local, conforme relatado em “O Evangelho do Sol”?
No mês de março, a filha mais moça de Grego, sempre preocupada com o bem-estar do pai, enviou-lhe alguns filmes: “Eraserhead”, “A Árvore dos Tamancos”, “Sidarta” e “Cría Cuervos”, mas principalmente “Robinson Crusoé”, de Buñuel, piada mais que evidente, porém oportuna. A visão do diretor espanhol para a clássica história do náufrago sempre foi, para Grego, admirador da obra de Daniel Defoe, uma incômoda lacuna. Há pouco mais de um mês, na surrada bicicleta amarela, o carteiro trazia outra encomenda, também recheada de filmes, presente do desenhista Leonardi, responsável pela quadrinização das peripécias de Toninho do Diabo. Neste novo pacote, títulos preciosos, como “The Notorious Bettie Page”, “Rio de Jano”, “Diabolik”, a animação do Corto Maltese, entre outros, os quais Grego assistiu com a voracidade daqueles que sentem a dama de negro cada vez mais próxima. Agradável surpresa foi “Anti-herói Americano”, a cinebiografia de Harvey Pekar, morto recentemente, que o transportou a uma tarde chuvosa em que ele e Leonardi foram assistir a um documentário sobre o cartunista Robert Crumb, um dos seus ídolos. Claro que, como todos os garotos, eles tinham tido Batman e Super-homem, mas nenhum deles era carregado na garupa por uma mulher grandalhona. Para coroar a sessão, ao saírem do cinema, depararam com uma morena muito bem fornida, idêntica a Angel Food McSpade, a popular personagem crumbiana.
Na quarta-feira passada, de barco, Grego foi buscar quatro caixotes de livros, no correio da ilha principal, despachados por Viriato. Neles, uma parte preciosa da sua vida: “O Homem no Teto”, de Jules Feiffer; “Pinocchio: Aventuras Maravilhosas de um Boneco de Pau”, publicado pela Livraria Francisco Alves, em 1925, com as ilustrações originais, bem diversas da versão disneyana; o álbum “El Corazón Delator”, adaptação noir do conto de Poe, pelo pincel de Alberto Breccia, edição serigráfica, numerada e assinada; “A Metamorfose”, de Kafka, ilustrada por Walter Lewy; “Fome”, de Knut Hamsun, em tradução de Carlos Drummond de Andrade; “Um e Dois”, do poeta José Lino Grünewald; “O Mez da Grippe”, de Valêncio Xavier; “Deus da Chuva e da Morte”, de Jorge Mautner, autografada; a coleção completa das tirinhas da Mafalda, e tantos outros que enumerá-los linha a linha, com os caracteres originais, poderia bem se transformar num longo poema dadaísta, à moda de Picabia. Era-lhe agradável imaginar a escritura de tal poema, a disponibilidade de tempo, o ócio levava-o a exercitar uma poesia de invenção. Esses livros estiveram bem guardados, sob os cuidados do amigo, desde a mudança de Grego para a ilha de São Bravo. Com a vinda do bebê, Viriato precisou desocupar espaço no pequeno apartamento em que morava com a namorada.
Como alguém tão afeito a uma cultura adquirida, de segunda, terceira mão, pode ter a pretensão de se irmanar ao homem rude que tira o sustento das profundezas do mar? Enquanto Grego folheia distraído o enfadonho, cultuado e tantas vezes protelado “Ulisses”, de James Joyce, no silêncio da madrugada, os pingos da chuva principiam a dedilhar no telhado “A Little Help from My Friends”.