terça-feira, 15 de dezembro de 2009

O POETA DE PROVÍNCIA

Edson Negromonte

- Olhe quem chegou!
- Então, ele frequenta mesmo o bar!
Nas mesas, as pessoas viravam-se para assistir a chegada do velho poeta, a glória da cidade, o único que conseguira ultrapassar as fronteiras do Estado. Cochichavam que ele estava ficando cada dia mais taciturno, mais arredio, mais boçal. Uns atribuíam isso à fama, a qual chegara repentinamente, quase sem merecimento, somente por causa da política recente das editoras, de buscar novos valores fora do eixo Rio-São Paulo. Outros, com uma ponta de inveja, diziam que os seus poemas nem eram tão bons assim, que fulano era muito melhor, que sicrano já fazia aquele tipo de poemas, semióticos, muito antes dele. Evidentemente, não citavam os próprios nomes, mas isso estava subentendido, é claro.
Não precisou que chamasse o garçom, a primeira dose de vodca foi levada à mesa. Era um habitué do lugar.
- Veja como está acabado, anda usando fralda geriátrica.
- Dizem também que não dá mais no couro, que a bebida levou-lhe as forças...
- Quem mandou não se cuidar. Eu bebo a minha cervejinha todos os dias, com moderação. Não quero acabar desse jeito não, brocha.
Os amigos não conseguiram conter a risada. Fazendo de conta que nem era com ele, o velho poeta, com ares de poeta oficial, sorveu deliciosamente mais um gole da vodca. Cansara de aceitar provocações, ele agora era respeitado, apesar de ter perdido tudo o que tinha de mais caro, justamente na época em que o tão almejado reconhecimento chegara. Pretendendo ser humilde, sem pose, gostava de ir ao sujinho em busca de inspiração. As musas chegavam-lhe depois da terceira dose; infalíveis. Podiam lhe soprar uns versinhos sarcásticos ou, se estavam de veneta, um poema visual, feito a partir de rótulos de embalagens, como se passeassem de braços dados por um grande supermercado. Era consciente de que a bebida tinha lhe levado a família, a mulher, as filhas, mas sabia-se impotente diante da deusa transparente. Quantas vezes jurara para si mesmo que aquela seria a última dose, depois a penúltima, a antepenúltima, para tudo terminar na construção de um belo poema de rimas proparoxítonas, aplaudido pela crítica, evidentemente.
A solidão lhe era doce, inspiradora. Um haicai sobre essa condição estava se formando, vindo à tona, nos rabiscos que fazia no guardanapo de papel, branco, quando percebeu uma sombra aproximando-se da mesa, crescendo insinuante, ondulante. Quem ousava chegar assim, sem ser convidado, à mesa do grande poeta? – pensou, disposto a mostrar toda a sua indignação. Ergueu os olhos e deparou com a adolescente, agora estendendo um dos seus livros em sua direção, quase tocando os seus cultivados bigodes de Pancho Villa. Como recusar um autógrafo para aquela belezinha?
- Qual o seu nome? - pergunta melífluo o poeta.
- Não precisa se preocupar com isso não. Só quero o meu dinheiro de volta. Vim devolver essa porcaria, comprei enganada pela crítica, essa gentinha que pulula nos cadernos de cultura dos grandes jornais.

domingo, 25 de outubro de 2009

PREFÁCIO À CARTA ABERTA A CRISTOVÃO TEZZA

por Edson Negromonte

A publicação desse documento, neste blog, tem o intuito de esclarecer os eventuais leitores do livro “O Filho Eterno”, de autoria de Cristovão Tezza, pela Editora Record, sobre os “personagens” Pablo, Dolores e Virginia, da página 203 à 216. A palavra personagens está entre aspas porque essas personalidades pertencem à vida real e o uso indevido dos seus nomes verdadeiros causa problemas aos seus descendentes. E, não só os nomes, mas o autor refere-se também aos locais reais onde essas personalidades viveram, como Paranaguá e a ilha da Cotinga. Virginia, a filha de Pablo e Dolores, sentindo-se agredida, vem a público com a única e genuína intenção de limpar os nomes de seus familiares das calúnias perpetradas pelo autor Cristovão Tezza, quando espertamente não cita em momento algum o sobrenome Denis, tentando evitar assim um processo judicial em um país em que a máxima é “levar vantagem em tudo”. Deixe um comentário para que o autor e a editora tomem conhecimento das barbaridades publicadas em nome de uma pretensa literatura confessional.

sábado, 10 de outubro de 2009

CARTA ABERTA AO ESCRITOR CRISTOVAO TEZZA, A RESPEITO DO LIVRO "O FILHO ETERNO"

por Virginia Denis

DE QUE ADIANTARIA QUESTIONAR sobre o conceito que se tem do coração de uma família, se para alguns essa percepção está interligada com pensamentos muitas vezes hipócritas, quando a frieza é exercida de forma sutil e impiedosa, alimentando-se da crítica fundamentada em espelhos retorcidos encontrados nos circos? Seria quimera buscar um coração realmente amoroso em alguém que, num golpe de mestre, usa um ser que não pode optar pela exposição? Então, que validade teria falar sobre a questão do ser enquadrado universalmente, como um todo e não como um protótipo das frustrações e da indisposição com o próximo, em que muitas vezes este próximo é o ser amado? E do desrespeito, do desleixo, da falta de compaixão e misericórdia, se alguns estão tão obcecados pela corrida ao cume, ao mais alto posto ditado pelo ego que goza esparramado, espaçoso, dando a ilusão, ao homem comum, de que isso é crescimento?

Penso que alguns seres recebem algumas bênçãos para fazer algo pela humanidade, mas estão se perdendo na megalomania, vivendo uma falsa sensação de poder, eliminando, assim, toda a oportunidade de gozar o sabor genuíno do amor entregue ao seu semelhante, consequentemente ao Céu, atraindo para si um obstáculo que só será removido pelo sofrimento.

O QUE DIZER A ESTE ESCRITOR que, sem respeito algum aos mortos e aos vivos, enxovalha uma família, talvez para se mostrar alguém com alguma vivência num mundo subterrâneo, pérfido ou místico, pelo que se entende por perfídia ou misticismo? Talvez o recôndito desejo mórbido causado pela falta de vivências reais de abandono e repúdio?

ENTÃO, VAMOS FALAR DE DOLORES, ser iluminado que, em seu tempo, foi guerreira ao buscar a essência do amor em si mesma e em seus semelhantes, acalentando o melhor em cada alma que por ela passou. Dolores, um ser que transbordou a coragem de viver de acordo com os mandamentos do seu coração, pulsante nas artes, assim como a águia que não tem medo de renascer. Dolores, mulher libertária, de fibra, que semeou beleza em seres assustados pela ignorância, pela arrogância e pelo autoritarismo que imperavam em sua época. Descrita por este autor de modo tão irresponsável, Dolores seria defendida ontem e hoje de forma assustadora pelos seus filhos mais passionais, já falecidos, pelo simples fato de carregarem em si as sementes fortes e únicas por ela plantadas. Então, a pergunta também é simples: qual é a noção de família deste autor? E como pode ele se sentir no direito de emporcalhar os sentimentos, a admiração de filhos, netos e bisnetos desta mulher?
Será que este autor, no intuito talvez de elevar-se às alturas de seu castelo, em seu tão “aparente, correto e aceito” mundo das fotocromáticas, camaleônicas máfias, em sua sede pelo pódio, na cegueira do ouro pendurado no pescoço, pode cometer este tipo de engano?

MAS QUEM É DOLORES NESTE MUNDO subordinado a egos histéricos? Ninguém?! Ela foi alguém que tentou deixar um legado um pouco mais bonito em quem por ela passou. Alguém que, assim como muitos da sua época, experimentou algumas drogas, como álcool, cigarro, maconha, mas que morreu de derrame cerebral e não de overdose, como este autor conta, em seu livro, de forma mentirosa, medíocre e irresponsável. Mas, mesmo que fosse verdade, o mínimo que este autor deveria ter feito seria consultar a família.

É realmente triste ver alguém que, talvez, por medo de vivenciar a própria essência, esconde-se por detrás de histórias mal construídas, pois, penso eu, que o tempo de se falar em drogas, drogados, gurus, como sinônimo de experiências místicas, é arcaico há algumas décadas. Este autor não percebe que, hoje, tais histórias sobre drogados e gurus são extremamente perigosas para uma geração que se debate com princípios, na eterna corrida ao número um, na gama de informações fragmentadas que o mundo globalizado lhe oferece.

NÃO, PABLO NÃO ERA URUGUAIO, mas argentino, nascido em Mar del Plata: ser de muita grandeza em relação aos seus semelhantes. Por ocasião de seu enterro, a cidade de Paranaguá sentiu muito a sua partida, todos os amigos estavam lá para lhe dar o último adeus. Pablo, homem honesto e digno, que buscou ajudar a todos que encontrou durante o seu tempo conosco, aqui na Terra. Homem de cultura deslumbrante, diplomata, desapegado da matéria, crédulo, idealista, que lutava por causas nobres, que plantou em seus filhos a dignidade, o respeito e a benevolência. O autor descreve a casa de Pablo como um antro de bebedeiras e jogatina só porque nela tomou umas caipirinhas ou porque viu amigos de Pablo jogando uma prosaica partida de canastra?

VIRGINIA, UMA CRIANÇA LIVRE em seu lindo mundo esvoaçante. Um ser idealista, corajoso que sempre pagou o seu preço. Alguém que encontrou lá no fundo da alma a força, a gratidão, a graça para continuar sorrindo nas asas da criação do seu Criador, alguém que está só de passagem pelo universo teatral. Alguém que clama pelo coração de uma família, pois caminha em direção ao conjunto de fatores que englobam o sentido de ser de uma família, em virtude de conhecer seus pés andarilhos e suas mãos macias envoltas nas cinzas do seu enterro, onde ela sabe que a humanidade cresce nas mortes vividas em lampejos e ensejos, onde se encontra a paz dos labirintos silenciosos. Virginia, alma presa ao corpo terrestre, disposta, de prontidão, para buscar e doar o talismã oferecido por incumbência, pois joga seu barco mar adentro pela inspiração e complacência de seu Criador. Virginia, que vive o feminino encontrado somente nos trapiches do seu coração, onde a alma flutua dançarina, graciosa, absoluta, encoberta pelo manto da vastidão dos pergaminhos encontrados em sinais luminosos que coexistem com a primazia do etéreo e, nunca mortificado ou ejaculado pelo ser em desordem. Virginia, longa caminhada por desertos de egos escorregadios e camuflados, onde a resposta só virá depois da abertura do passaporte para o hemisfério em cruz. Virginia, alguém que já chorou toda a sua desmedida paixão pelo terno, pela doce dança dos ventos refrescantes em noites de verão, pelo desapego que encerra sua viagem pelos carnavais, pela utopia de seus gestos e palavras que confundem e se fundem ao oco do ser em órbita transversal, pela dor que nem a viu passar, pelo desperdício das palavras que foi buscar em sua essência cabocla das ilhas pardas do segundo império mais veloz do ancoradouro espinhal. Quem dançaria nos ritmos africanos que descobrem a única e eterna visão do seu Criador? Quem descortinaria o além-mar, só para ver o seu sorriso maroto, saboroso em seu habitat natural, o seu secreto quintal, deixando para trás seus esqueletos empoeirados para desabrochar no riso secundário que eleva ao sete e não à libido?

Virginia, alguém que ama a arte pelo que se descobre através dela, e não a entende sem o sentimento de gratidão, pois só assim se faz possível a existência de um verdadeiro artista, e que escolheu estar mais no caminho dos sentimentos, como os seus guias, para uma percepção mais apurada das reações e buscas humanas. Virginia, que fala das suas emoções sem medo dos marqueiros, dos atributos, adjetivos etc., que estejam em alta nas rodas dos papagaios intelectuais, pois sabe que muitas vezes precisam propagar erudição para se manter em seus poleiros, disputados com “rostos de um lugar ao sol”, sendo que o sol aquece e, em momento algum, nos traz a frieza e o cinismo dos vampiros nos quais nos transformamos.

COMO A VIRGINIA IRIA ENTRAR COM UMA AÇÃO de CALÚNIA E DIFAMAÇÃO e requerer RETRATAÇÃO PÚBLICA, como algumas pessoas amigas sugeriram, criando assim situações constrangedoras e retrógradas, se tudo o que ela quer é poder estar com suas asas soltas, pescando ou vendo um filme? Seria muito estúpido travar esse tipo de batalha com quem quer que seja, a não ser que isso traga alimento saudável para a alma.

Então, esta carta aberta ao autor é somente um meio de poder, tentar, chegar ao seu coração para que ele, se quiser, repense e não cometa mais esses enganos, pois, mesmo se tivesse trocado os nomes dos personagens, todos os que estavam lá, no contexto da época, saberiam de quem se estava falando e, mesmo assim, afetaria a família. Esta carta foi escrita também para os filhos, netos, bisnetos e amigos de Dolores e Pablo, para que eles saibam que alguém gritou por eles, não se curvando ao descompassado ritmo das dores causadas pela ignorância dos que não percebem que o próximo merece respeito e consideração. E, por mais que os sentimentos dos legatários de Dolores e Pablo sejam vistos com parcimônia, eu peço para que eles nunca esqueçam do vital legado, amorosamente deixado e simplesmente continuem, continuem, continuem: “O voo está exclusivamente na alma que se atira em busca da melodia única, voz tamanha, cantiga de ninar, dança, alquimia entranhada e vivificada a cada metralhadora que não se engatilha”.

Só quem teve a coragem de vivenciar o que realmente brilha dentro do peito, o que dignifica uma estrada, o que transpassa toda regra covardemente acomodada, encoberta pelo manto da boa convivência, o que ultrapassa a conveniência abarrotada de prepotência, só quem teve um pedaço do coração enterrado junto com o ser amado, assistindo-o morrer à míngua, virar trapo de chão, corroído pelas dores que a solidão humana lhe causava, poderia pensar em descrever o mundo que este autor, pretensiosamente, quis mostrar.

Eu, Virginia, gostaria muito de ter me sentido lisonjeada por ter sido o primeiro amor na vida de alguém, até porque Cristovão era um amigo lembrado com carinho, mas a dor que meu peito sentiu ao ver como este autor espremeu o coração dos descendentes de Dolores e Pablo (tão poucos no Brasil e, por isso, tão carentes de família), foi algo que me fez sentir, só por alguns momentos, a ira do escorpião. Por isso, não aceitei o convite tão convicto dos que realmente acreditam que eu deveria processá-lo. O lúdico que talvez existisse em ter sido um primeiro amor, a dor nem me deixou perceber, o que dirá sentir. Que pena! .

Fica, também, a pergunta: como um descendente de Dolores e Pablo pode recomendar este livro, por melhor que ele seja?
Mas eu creio que este tipo humano não interessa ao autor, não é seu público alvo, seus livros não são para essas pessoas. Então, talvez, realmente não importe. Alguns dizem que estou fazendo propaganda do livro do Cristovão e que ele nem vai tomar conhecimento, mas eu discordo, pois primeiro ele não precisa de mim para divulgá-lo, assim como não precisou quando escreveu o livro. Segundo, Cristovão Tezza sabe que estou sendo honesta, sincera, verdadeira em minhas atitudes, ele sabe quem eu sou, o seu coração sabe.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

ANIMAIS

poema de Walt Whitman
tradução de Edson Negromonte


Eu acho que eu poderia voltar a viver entre os animais, eles são tão plácidos e independentes.
Fico a admirá-los horas e horas a fio;
Eles não choram nem lamentam a condição,
Não dormem de olhos abertos, não lamentam os seus pecados;
Eles não me deixam enojado quanto aos seus deveres para com Deus.
Nenhum deles é descontente – nenhum deles é demente, com mania de posse,
Não se ajoelham aos outros, nem mesmo para aquele que viveu milhares de anos antes.
Nenhum deles é respeitável ou laborioso sobre a vastidão da terra.

VI A CAPELA TODA EM OURO

poema de William Blake
tradução de Edson Negromonte


Vi a capela toda em ouro
E nada ali ousava entrar,
Muitos a chorar no átrio,
A murmurar, a adorar.

Vi a serpente surgir entre
Os pilares do portal,
A forçar, a forçar, a forçar:
Os gonzos de ouro ao chão.

Ao longo do doce santuário,
Pérolas, rubis a brilhar,
O corpo luzidio ela arrastou
Ao alto do alvo altar,

Vomitando a peçonha
Sobre o pão, sobre o vinho.
Então, voltei à pocilga
E chafurdei entre os porcos.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

LETRAS E TRELAS

poema de Emily Dickinson
tradução de Edson Negromonte


Eis o livro fragata
Por mares nunca dantes,
A página cavalgada
Do poema galante.

VOU TE CONTAR

poema de William Carlos Williams
tradução de Edson Negromonte


Comi as
ameixas
da
geladeira

que
provavelmente
guardavas
para o café

Desculpe
‘tavam deliciosas
tão doces
tão frias

RÉQUIEM

poema de Robert Louis Stevenson
tradução de Edson Negromonte


Sob o vasto e estrelado céu,
Cave a cova e deixa-me só.
Feliz vivi e feliz me vou.
Desço e deixo um pedido.

Eis o verso para lapidar:
Ele está onde sempre quis estar;
O marinheiro chegou do mar,
E o caçador, dos montes é vindo.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

GALERIA

por Edson Negromonte

No corredor da minha pequena casa,
pendurei, dando tamanha bandeira,
marcel duchamp, borges, debussy, françois villon,
os retratos daqueles que amei a vida inteira,
lewis carroll, pagu, knut hamsun, lautréamont,
em molduras de bambu, metal e madeira,
fante, whitman, drummond, vincent price,
para que aquela humilde casa criasse asas,
crumb, klee, kurt schwitters, ann rice,
e, na manhã do dia sétimo, sentei-me.
A admirar a obra, eis-me,
quando chegam as visitas de domingo,
com sobremesas e fumo para o cachimbo.
Ao atravessar aquela estranha galeria,
pergunta, para o meu pai, a minha tia:
quem são?, ao que ele responde, saindo-se bem:
devem ser da família mas não conheço ninguém.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

A SUSTENTÁVEL LEVEZA DOS BATRÁQUIOS

por Edson Negromonte

Quando menina, ela colecionava sapos. Dava-lhes nomes: Pintado, Bolinha, Tigresa, Néfer, Sapopemba, Dalva, Saponáceo, Rubem, Bufo, Hermeto... Este último fora sugerido pelo pai, enquanto admiravam, num dia de chuva, aquele sapo velho, de costas largas, rugosas, a coaxar sem parar, irreverente, aboletado na varanda da casa, em Visconde de Mauá. O pai incentivava o interesse da menina pelos batráquios, presenteando-a com os mais diversos livros sobre o assunto, de ficção, fábulas, alguns recortes de velhas enciclopédias e até uma obra técnica encontrada num sebo. A menina aproveitava qualquer ocasião, principalmente nas reuniões de família, para conversar sobre os sapos, invariavelmente. Desistira de contar sobre a sua paixão para as amiguinhas da escola; elas torciam o nariz, faziam cara de nojo. Como a menina não era de engolir sapos, aproveitava para encerrar a conversa com chave de ouro, contando-lhes como os meninos americanos brincam de esconder sapos dentro da boca.
Sabia que somente o pai era capaz de compreendê-la. Com ele, assistiu na TV à pajelança, promovida pelos índios Raoni e Sapaim, para curar o naturalista Augusto Ruschi, envenenado por um sapo, da espécie dendrobata. O pai, que se tornara aos poucos um expert no assunto, aproveitou mais essa ocasião para esclarecer a filha: o tal naturalista, desavisado, teria beijado uma sapa venenosa, na boca, em busca da sua princesa encantada. Assim, foi a menina crescendo, colecionando conhecimento sobre a vida desses seres aparentemente repulsivos. Descobriu, levada pelo pai, que a literatura e os homens são useiros e vezeiros em associar os pobres sapinhos, assim como outros bichos, principalmente os gatos, com a magia negra; e que nem mesmo os contos de fada têm muito apreço por eles. E que, não os tendo em boa conta, mostra-os invariavelmente como príncipes que precisam do beijo apaixonado de uma doce princesa para quebrar a maldição lançada por uma bruxa malvada. Em sua santa inocência, ela não entendia por que as princesas não podiam simplesmente casar com sapos.
A mais remota lembrança da menina, em relação aos sapos, estava associada à cadeira alta, o pai contando as mais fabulosas histórias do mundo dos batráquios para fazê-la comer a papinha. A mais apreciada de todas era uma história verídica, dos seus tempos de menino, quando ele mesmo fora transformado num sapo-boi por uma velha feiticeira, que morava na floresta próxima à sua casa. A cada vez que era contada, esta história ia se transformando, se desenvolvendo, burilada, tomando caminhos insuspeitados, aproveitando-se das passagens clássicas de outros contos, tiradas dos livros, e outras, corriqueiras, inspiradas no dia-a-dia. O ponto alto era quando o pai, então menino, retornava dias depois para casa, na forma de um, pode-se dizer, sem licença poética, descomunal sapo-boi. Era sempre assim, quando a menina, na cadeira alta, com a boca cheia, o prato quase vazio, estivesse então com lágrimas nos olhos, o pai, com a voz suave, dava início ao já conhecido desfecho, tantas vezes contado e recontado: de como a sua mãezinha, a doce vovozinha da menina, apiedada da sina do filho, curou-o com benzimento e orações, mais chazinhos de erva-doce pela manhã, losna à tarde e boldo-do-chile à noite, e de como ele prometera, dali para a frente, ser um bom menino, não passar mais nem perto da floresta encantada.
– Ah, mas aquela casinha era toda feita de doces, portas de chocolate, janelas de açúcar cândi e telhados de doce de abóbora, uma tentação para as crianças da região.
A menina enxugava os olhos, com o dorso das mãozinhas, a boca cheia, o prato vazio, raspado. O pai, então, arrematava a história, contando-lhe que, graças aos cuidados e simpatias da pobre mãezinha, ele fora aos poucos se curando, voltando ao normal, embora às vezes ainda coaxasse durante o sono e que, ainda hoje, mesmo adulto, a visão de um belo banhado ainda lhe dá certa nostalgia.
Descida da cadeira, a menina rodeia o pai, ergue a camiseta dele, passa levemente o dedinho frio pelas suas costas. Fica, por alguns segundos, intrigada, examinando a ponta do dedinho.
– É, papai, você ainda tem as costas meio verdes.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

A MALDIÇÃO DE IXIÃO

por Edson Negromonte
Euritião nascera centauro. Não que isso fosse novidade em sua família ou, melhor, em sua árvore genealógica, onde constam centauros que passaram para a história, como Abby, que pertenceu à trupe de comediantes de Eduardo, o Príncipe Negro, de Gales, no século XIV. Na verdade, Abby era mais que um centauro de estimação, funcionava como uma espécie de conselheiro. E Volon; seu esqueleto é exibido, como uma fraude, na Universidade do Tennessee. Também digna de nota é a cortesã Veronique Vertz, cuja poesia está hoje completamente perdida. Os pais de Euritião eram aparentemente seres comuns, normais, humanos, se assim se pode dizer. Tiveram o filho metade homem e metade cavalo, mas não se alarmaram com isso, já era previsível. Segundo o oráculo, Euritião seria o último dos centauros, mesmo porque a vida hodierna não comporta mais esses seres fantásticos; a imaginação do homem moderno está se tornando, a cada dia, mais árida, solo nada propício ao nascimento de centauros, os quais tiveram a origem terrível na conjunção carnal de Ixião com uma nuvem, enganado por mais uma das artimanhas de Zeus.
Os pais de Euritião, ajudados por uma psicóloga, sempre trataram o filho como uma criança normal, como se outros iguais a ele andassem por aí impunemente, pelo playground, na escolinha, quem sabe, até no mesmo prédio onde moravam. Mas isso não era verdade, Euritião era mesmo o último de uma antiquíssima raça de monstros mitológicos. Durante a infância, brincava com as outras crianças, levando-as na garupa, trotando, galopando, sob os olhares preocupados dos outros pais. Na adolescência, com o despertar do desejo sexual, as coisas se complicariam, mas a psicóloga, que já se tornara amiga da família, ajudou-o a superar as crises. O que importa saber é que Euritião, até onde isso é possível, levou uma vida normal: cursara Direito na PUC, era querido pelos colegas, apesar das piadinhas que faziam às suas costas, mas, assim pensava ele, tudo isso era normal, muito normal; afinal de contas, ele era um centauro, o último dessa espécie de seres, segundo a lenda, imaginários. De posse do diploma, conseguira um emprego no banco onde o pai era gerente; começou como escriturário, foi galgando degraus, um após outro, sem concessões, até chegar a uma chefia de serviço, em outra agência, para evitar falatórios de favorecimento. Depois que o pai morrera, Euritião foi se tornando, a cada dia, mais e mais recolhido. Sem o carinho, a compreensão, as reconfortantes palavras paternas, achou melhor pedir as contas no banco. Com a pensão deixada pelo velho, podia se dedicar em tempo integral às pesquisas sobre a importância do byronismo no Brasil, sempre postergadas. Com o advento do comércio eletrônico, dispunha de uma boa biblioteca sobre o assunto, abarrotada de volumes raros, amealhados pelos sebos do mundo todo. Precisava de todo o tempo disponível para levar a termo a tese. E, muito mais agora, que a sua mãe, Néfele, devido à perda repentina do marido, não saía mais da cama, necessitando de cuidados constantes. Assim, deixando de sair de casa, Euritião abandonara o convívio social, penoso após a morte do pai. No espaçoso apartamento de cobertura, na Avenida Paulista, Euritião podia trotar à vontade, pela manhã e à tarde (exercício necessário para que não se atrofiasse a sua bela musculatura equina), enquanto os vizinhos do andar de baixo estavam fora.
Quis o destino que, naquele início de madrugada, levado por uma insuspeitada insônia, Euritião deixasse a TV ligada, após terminar o jornal da meia-noite. Foi quando, no Programa do Jô, o entrevistador anunciou, com um estardalhaço inusual, a entrevista com uma grande atriz, criatura fabulosa no meio, um monstro do teatro, mas até então um nome desconhecido do centauro.
Tomado de curiosidade, Euritião puxou a cadeira para mais perto da TV. Sem entender bem o porquê, as propagandas, a vinheta, as piadinhas do apresentador lhe pareceram uma eternidade. Finalmente, ela foi chamada ao palco. Atravessou a plateia, desceu a escada, subiu ao palco, as ancas (que ancas!), para lá e para cá, num movimento harmonioso, os adivinhados seios, cobertos por uma faixa quase transparente de seda verde, os olhos negros, profundamente negros, os lábios, vermelhos, carnudos, um belo sorriso, a cabeleira negra, farta, descendo pelas costas desnudas, a pele de pêssego, em flagrante contraste com a pelagem avermelhada, as pernas, principalmente as traseiras, magníficas. Sim, era isso mesmo, seus olhos não o estavam enganando, ele não estava sonhando. Uma centaura, uma fêmea da sua espécie. Pela primeira vez, o auditório não soube como reagir; primeiro, um silêncio constrangedor, para, logo em seguida, explodir em palmas, à imitação do apresentador.
– Que mulher! – exclamou Euritião.
Sem despregar os olhos da tela, buscou na lista telefônica o número da emissora, pediu para entrar em contato com a produção do programa, no dia seguinte solicitou o telefone da centaura, educadamente lhe responderam que não podiam fornecer, ele disse que era também um centauro, que precisava conhecê-la, amor à primeira vista, começou a contar a sua história pessoal, que ele era também um centauro... Do outro lado, a atendente deu uma risada e desligou, achando que era trote.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

POE E O CORVO - Através dos Tempos

Numa madrugada sombria de 1845, o americano Edgar Allan Poe (1809-1849), um homem cansado de tantos problemas financeiros e familiares terminou o poema The Raven, marco da poesia moderna, publicado em janeiro do mesmo ano no jornal Evening Mirror. A partir dessa noite, poetas e escritores do mundo todo jamais seriam os mesmos, estendendo-se a sua influência também às artes futuras, como o cinema e os quadrinhos. No mesmo ano, Poe experimentaria o reconhecimento, por tanto tempo almejado, com leituras e palestras sobre a sua obra, principalmente este poema, tão estranho aos padrões da época. No ano seguinte, em 1846, a poetisa inglesa Elizabeth Barrett Browning, mulher do também poeta Robert Browning, muito famosa na época, escreveria uma carta para Poe, descrevendo-lhe a sensação que o poema causara entre seus amigos literatos: uma mulher, que tinha um busto de Palas, igual ao do poema, sobre a porta, não podia mais olhá-lo, ao entardecer, sem sentir calafrios. O quarto que Poe ocupava, com sua doentia prima e esposa Virginia, de 13 anos, numa casa de cômodos da rua Bloomingdale, fora realmente decorado pelo antigo inquilino como descrito no poema: janelas barulhentas, cortinas sussurrantes, pelo açoite do vento e, além de tudo, um busto de Palas nos umbrais. Ao cenário, Poe acrescentaria apenas a ave agourenta. Talvez o corvo fosse o seu alter ego, o seu duplo, o seu próprio espelho, verso e reverso, recurso tão caro à toda a poética poeana.
Originalmente, o corvo falante era um papagaio, ou talvez uma coruja. São flagrantes os resquícios da idéia inicial, quando Poe pergunta à ave pelo seu antigo dono, concluindo, devido à resposta nuncamais, que este bordão é somente a conversa de mestre infeliz em desesperada desgraça. Talvez, a ave de estimação de um náufrago. Logo, um papagaio, mas há controvérsias. Outros estudiosos vão mais longe e supõem a gênese do inusitado bordão em antigas brincadeiras de roda, que Poe ouvira, durante suas andanças pelos bosques próximos de onde morava. Durante, pelo menos, quatro anos, o poema foi rascunhado, rasurado, refeito, rarefeito, até que o poeta se resolvesse a publicá-lo. A origem de O Corvo encontra-se em outro poema anterior, Lenore, datado de 1831, cujo título remete à amada perdida, incluindo também o bordão never more. Curiosamente, uma vampiresca Lenora já aparecera, em 1773, no livro Lenore, de Bürger, autor alemão hoje esquecido, traduzido para o inglês por Sir Walter Scott, o autor de Ivanhoé. Publicado em 1796, um exemplar pode muito bem ter ido parar nas mãos do antenado Poe, assim como serviu de fonte inspiradora para os ingleses Byron, Polidori, Shelley e Mary Shelley. O merecido reconhecimento de Edgar Allan Poe, como um grande autor, ocorreu justamente entre os europeus. Além de Baudelaire, seu primeiro tradutor, dois outros grandes poetas franceses também se debruçaram sobre a obra de Poe: Stéphane Mallarmé, de Um Lance de Dados, e Paul Valéry, o autor de Cemitério Marinho.
Poe era tido pelos contemporâneos como um autor inspirado, o favorito das musas, coisa que muito o incomodava já que as pessoas não percebiam a matemática que havia por trás daqueles versos soturnos. Daí, escreveu uma obra prima da análise literária, A Filosofia da Composição (The Philosophy of Composition), para calar a boca dos críticos, incapazes de perceber o quanto há de transpiração na inspiração. A poesia de Poe é uma grande armadilha para os tradutores, com o excesso de aliterações e anagramas, além da grande incidência da letra "L", do duplo "L". O ”L” duplo também está presente no sobrenome Allan, herdado do padrasto que ele tanto odiava e que Poe transformava numa aberração dentro da própria assinatura. Além da importância poética, seus contos inauguram o romance policial moderno, sendo referência obrigatória para qualquer autor contemporâneo que se preze. Até Conan Doyle tem o seu débito com Poe, através do personagem Monsieur Dupin, de Os Crimes da Rua Morgue, mais que evidente fonte de inspiração para o detetive Sherlock Holmes.
Em 1912, aconteceu a primeira adaptação de O Corvo para o cinema, com Muriel Ostriche. Três anos depois, o cinema mudo fez outra adaptação do poema para as telas, sob a direção de Charles Brabin, com Henry B. Walthall, no papel de Edgar Allan Poe, e Wanda Howard, em quatro papéis: a prima Virginia, a amada Helen Whitman, a perdida Lenora e um espírito. Esta adaptação do poema é, na verdade, uma biografia de Poe, baseada no romance The Raven - The Love Story of Edgar Allan Poe, de George Cochran. No ano de 1935, o poema seria novamente adaptado para o cinema, com direção de Lew Landers (Louis Friedlander): no elenco de O Corvo (The Raven), o eterno vampiro Bela Lugosi, no papel do médico obsessivo e a eterna múmia Boris Karloff como a sua vítima. Há ainda, nesta adaptação cinematográfica, elementos do conto O Poço e o Pêndulo, também de Edgar Allan Poe. Curiosamente, no ano anterior, Lugosi e Karloff tinham feito O Gato Preto (The Black Cat), baseado em outra história de Poe, que ainda tem no elenco outro grande nome dos filmes de horror, John Carradine, como um organista. Anteriormente, em 1932, Lugosi fizera Os Assassinatos da Rua Morgue (Murders in the Rue Morgue).
Roger Corman, diretor apaixonado pela obra poeana, também adaptou O Corvo, com roteiro de Richard Matheson, em 1963, apresentando Vincent Price (Dr. Erasmus Craven), Peter Lorre (Dr. Adolphus Bedlo) e Jack Nicholson (Rexford Bedloe), além de Karloff, como o Dr. Scarabus, e Hazel Court como Lenora. Antes, Corman dirigira O Solar Maldito (House of Usher/Fall of the House of Usher, 60) e A Mansão do Terror (The Pit and the Pendulum, 61), adaptação de contos do volume Histórias Extraordinárias (Tales of the Grotesque and Arabesque). Ainda no cinema, o filme maldito O Corvo (The Crow, 94), de Alex Proyas, que levou Brandon Lee à morte, durante as filmagens, em que tiros de festim se transformaram em balaços de verdade. O músico de rock Eric Draven, que volta do mundo dos mortos para vingar a morte da sua namorada, é inspirado na ave de mau agouro do poema. Para não deixar dúvidas quanto à sua origem, Eric recita o trecho inicial do poema quando vai buscar as alianças roubadas numa loja de penhores. Outra adaptação cinematográfica, digna de nota, da obra de Poe é A Queda da Casa de Usher (La Chute de la Maison Usher), de 1928, sob a direção de John Epstein, cujo assistente é Luis Buñuel. Um primor é Annabel Lee, de George Higham, inspirado no poema homônimo de Poe, todo em stop-motion.
Na televisão, uma grande sacada é o corvo do relógio da série Os Monstros (The Munsters, 64-66) que só crocita: Nunca mais, nunca mais! Na série Galeria do Terror (Night Gallery, 70-73), uma criação de Rod Serling, um dos episódios tem o sugestivo título Disse o Corvo, Mais ou Menos (Quoth the Raven), com o ator Marty Allen no papel de um Edgar Allan Poe gordinho, que atira a pena contra o corvo gozador quando este lhe dá a rima correta para o final de um verso. Até S.O.S. Malibu (Baywatch) tem um episódio com o título Nunca Mais (Nevermore), em que uma figura estranhíssima, misto de múmia egípcia e Darkman, rapta C.J. (Pamela Anderson), chamando-a de Lenora, e fica recitando para ela os versos de Edgar Allan Poe. A boate da série Maldição Eterna (Forever Knight), com o policial vampiro Nick Knight, tem o sugestivo nome de The Raven.
Mesmo o desenho animado têm o seu débito com o intrigante poema de Poe. Começando pelo clássico da Biblioteca de Desenhos Animados, O Corvo Atrás do Médico e o Monstro (The Bookworm Turns), onde ocorre a junção de Poe com Robert Louis Stevenson, autor do romance Dr. Jekyll and Mr. Hyde, que, no Brasil, recebeu o título de O Médico e o Monstro. As séries animadas Os Fantasmas se Divertem (Beetlejuice) e Tiny Toon têm Edgar Allan Poe e seu pássaro de estimação, como personagens, em episódios adaptados do poema. E Os Simpsons dramatizam o poema no seu primeiro episódio de halloween, Dia das Bruxas, com James Earl Jones, a voz de Darth Vader, narrando o poema, em off. Recentemente, surgiu na telinha Lenore, the Cute Little Dead Girl, estrelando uma apaixonante menininha de 10 anos, cercada de seres estranhos e apavorantes, uma criação de Roman Dirge, repleta de humor negro e baseada evidentemente no poema Lenore.
A música popular brasileira também se apropria desse poema ícone. A dupla Conde e Drácula transformou os versos de O Corvo na letra de uma pândega moda de viola, em meio aos arrulhos de uma singela pombinha. Seria a impossibilidade de se encontrar um urubu falante? Elis Regina, na década de 70, pelas ondas do rádio, cantava os versos da canção Como Nossos Pais, uma composição de Belchior: Como Poe, poeta louco americano, eu pergunto ao passarinho preto blackbird, o que se faz?/Blackbird me responde: o passado nunca mais.

POE E O CORVO - Uma Introdução

Miserável, o poeta americano Edgar Allan Poe finalizou o poema The Raven, fruto de quatro anos de trabalho, em 1844, pelo qual receberia a bagatela de dez dólares. Com certeza, nem ele, nem o editor sabiam a revolução que causariam aqueles 108 versos, em dezoito estâncias, número ínfimo para a poesia laudatória praticada na época. Já no ano da sua publicação, 1845, a repercussão foi tal que Poe, o quase mendigo que mal podia pagar o aluguel e sustentar a prima e esposa, e a tia, ao mesmo tempo, sogra, era chamado para palestras e recitais nos salões grãfinos do seu tempo, onde o ponto máximo era o momento em que ele recitava, com voz cava, fisionomia encovada, The Raven. Poe, contou, em vida, com admiradores de quilate, como o poeta inglês Robert Browning, além de Charles Baudelaire, o qual traduziu o poema para o francês. Tinha início, então, a saga das transposições do poema para as mais diversas línguas e linguagens. Stéphane Mallarmé também traduziria, em prosa, o soberbo poema para a língua francesa. Tanto Baudelaire como Mallarmé perceberam a importância das aliterações, dos contrários, dos anagramas, na poesia de Poe, buscando as devidas correspondências em sua língua, assim como ecos na língua original, quando never, espelho perfeito de raven, encontra o seu correspondente francês mais apropriado, na estrutura do poema, em rêve: sonho, delírio, devaneio. Outros tantos estudiosos se debruçaram e se debruçam sobre o poema enigma.
No Brasil, o romancista e poeta Machado de Assis, apesar dos parcos conhecimentos da língua inglesa, dedicou-se apaixonadamente a traduzi-lo, ciente da necessidade da sombra corvina no corpo poético nacional. Oscar Mendes e Milton Amado traduziram O Corvo; a grande sacada destes dois tradutores é a substituição da deusa grega Palas por sua correspondente romana Minerva, dando ao leitor brasileiro um anagrama quase perfeito para o nevermore original. O poeta concreto Haroldo de Campos traduziu somente a estância final, de alta voltagem, utilizando-se dos estudos do linguista russo, naturalizado americano, Roman Jacobson sobre o poema espelho, levando em consideração a grande incidência de dissílabos no texto original. No capítulo O Texto-Espelho (Poe, Engenheiro de Avessos), do livro A Operação do Texto, Haroldo expõe a problemática tradutória deste poema emblemático. Em dezembro de 1985, O Corvo ganhou uma tradução iconoclasta em Curitiba, por Antonio Thadeu Wojciechowski, Roberto Prado, Marcos Prado e Edilson Del Grossi, ilustrada pelo artista gráfico Miran, publicada no jornal Raposa. O poeta português Fernando Pessoa é o mais hábil tradutor dos sentimentos poeanos para a língua pátria, ele mesmo a sombra da sua própria sombra. Julio Cortázar, o maior representante do realismo fantástico e tradutor de Poe na Argentina, em Valise de Cronópio, no capítulo Poe: O Poeta, o Narrador e o Crítico, dá um enfoque esclarecedor para a sobrevivência não só da poesia, mas da obra de Poe, quando muitos dos seus contemporâneos já estão esquecidos: é tão profundamente temporal a ponto de viver num contínuo presente, tanto nas vitrinas das livrarias como nas imagens dos pesadelos, na maldade humana e também na busca de certos ideais e de certos sonhos. Na música, entre tantas adaptações, há a óperas inacabadas de Claude Debussy, La Chute de la Maison Usher e Le Diable dans le Belfroi, inspiradas nos contos The Fall of the House Usher e The Devil in tne Belfry. Como um reconhecido ícone pop (está na capa do disco Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, de 1967, Paul McCartney e John Lennon também o citam na letra de I Am the Walrus, de Magical Mystery Tour, também de 1967, enquanto Lou Reed lhe dedicou, em 2003, o álbum duplo The Raven), Edgar Allan Poe é, hoje, mais que qualquer outro poeta americano, assíduo frequentador da Internet, com vários sites e blogs sobre a sua obra, vida e fofocas. É comercializada em Baltimore, cidade onde o bardo veio a falecer, uma cerveja chamada The Raven. Ave, Poe!

terça-feira, 11 de agosto de 2009

O CORVO

poema de Edgar Allan Poe
tradução de Edson Negromonte


Monotonia da meia-noite; meditava, cansado, a ler
No caro e curioso Volume de Arcana Sabedoria -
Cochilando, quase sono; súbito, de leve batendo,
Alguém gentilmente chamando, chamando à minha porta,
“É visita,” resmunguei, “batendo à minha porta:
Somente isso e nada mais.”

Ah, nitidamente me lembro daquele gélido Dezembro
E as brasas em agonia forjavam fantasmas no assoalho.
Ansioso pela manhã, foi em vão o consolo do canto
Dos livros pra parar o pranto - pranto por lembrar Lenora,
Rara e radiante mulher que os anjos nomeiam Lenora:
Inominável mais e mais.

E o surdo incerto sussurro de seda da cortina púrpura
Estremeceu-me - encheu-me de fantásticos terrores;
Fiz a frase para acalmar as batidas do coração
E repeti: “É um visitante pedindo entrada à minha porta:
Sim, é isso e nada mais.”

Logo minha alma fez-se forte; sem hesitar por muito tempo,
“Senhor,” disse, “ou Senhora, suplico seu perdão, imploro;
Mas, de fato, estava dormindo, você gentilmente batendo,
E assim fracamente chamando, chamando à minha porta,
Difícil, incerto ter ouvido” - aqui, escancarei a porta -
Escuridão, nada mais.

Âmago da escuridão perscrutando, ali sondando,
Sonhando sonhos que nenhum mortal ousou jamais sonhar;
Na quietude que tudo toca, silêncio contínuo inquebrável,
E o único som que se ouviu foi num sussurro “Lenora!”,
Sussurrei, e ecoou num murmúrio e retornou sem cor “Lenora”:
Mera lei e nada mais.

De volta ao quarto retornando, por dentro a alma queimando,
Logo ouvi de novo chamando, pouco mais alto, deve ser.
“Com certeza,” falei, “por certo, há alguma coisa na janela;
Vou ver de que se trata então e o mistério esclarecer -
Deixo o coração sossegar e o mistério esclarecer:
É só o vento e nada mais.”

Com grande tranco destranquei a janela, e, filho da fúria,
Embarafustou-se altivo o Corvo dos dias de outrora.
Nem a menor mesura fez; nem um minuto se deteve;
Porte de senhor ou senhora, empoleirou-se na porta,
Empoleirou-se no busto de Palas no alto da porta:
Justo ali e nada mais.

Um bardo de ébano burlando-me da doce fantasia, e sorrindo
Ante o grave e austero decoro e compostura -
“Apesar da crista raspada rente, tu és seguro e crente,
Horrível, venerável Corvo errante nos ermos da noite:
Diga, então, teu nobre nome é dos ermos de Plutão?”
Grave o Corvo, “Nuncamais.”

Espantou-me a deselegante ave, ao ouvir-lhe replicante,
Apesar de reticente - resposta pouco pertinente;
E há de concordar conivente, nunca nenhum ser vivente
Jamais foi abençoado com pássaro vidente sobre sua porta,
Bardo ou besta sobre o busto esculpido sobre a porta,
Com tal nome “Nuncamais.”

Cavo corvo encravado justo ali no plácido busto,
Toda sua alma nesta palavra, era uma forma de florão.
E nada além disso ele disse, doloroso dorso do riso;
E não mais que num murmúrio - “Amigos, todos se foram;
À aurora ele também irá, assim como todos se foram.”
O bardo bradou, “Nuncamais.”

Assalto ao silêncio por réplica, resposta, de pronta ciência,
“Sem dúvida, o que repete é só a refração de um refrão,
Conversa de mestre infeliz em desesperada desgraça
A vociferar feroz sua breve e brusca canção:
Endecha a irromper em bruna e breve e brusca canção
Nesse ‘Nunca - nuncamais.’”

Foi o corvo burlando-me de toda triste fantasia;
Sorrindo trouxe um coxim e sentei ali em frente ao bardo,
Ao busto, à porta; no veludo afundando, fui religando
Fatos, fantasia, buscando se o ominoso bardo de outrora,
Se o deselegante, lúgubre e ominoso bardo de outrora
Só crocita “Nuncamais.”

Ocupado conjeturando, nenhuma sílaba exprimindo
À ave dos olhos de fogo; no meu peito ainda a queimar;
Assim sentado adivinhando, a cabeça logo reclinando
Na almofada de veludo, à luz do lampião a volutear,
De veludo violeta, à luz do lampião a volutear,
Era ela, ah, nunca mais!

Tocou-me, então, um ar frio e denso, e, um intraduzível incenso,
E um frágil e fresco serafim, acima do assoalho, revoa.
“Desgraçado,” gritei, “por fim, Deus deu-te alento - recebes
Repouso - repouso e nepente às tuas lembranças de Lenora!
Prova, oh prova o doce nepente, e olvida a lívida Lenora!”
Aprovou o Corvo, “Nuncamais.”

“Profeta!”, falei, “ser odiado - ainda profeta, bardo ou diabo!
Que tentador ou tempestade lançaram-te a este lodo,
Desolação que tudo dana, terra deserta de encantos -
Retiro onde ruínas rondam - diga a verdade, imploro:
Há o bálsamo de Galaade? Há? - diga - diga, eu imploro!”
Cortou o Corvo, “Nuncamais.”

“Profeta!” falei, “ser odiado - ainda profeta, bardo ou diabo!
Pelos céus suspensos ao longe, pelo Deus que ambos adoramos,
Fala à minha alma que, sem calma, reclama, lá no distante Éden
Aplacar a saudade daquela que anjos nomeiam Lenora:
Rara e radiante mulher que anjos nomeiam Lenora!”
Cortou o Corvo, “Nuncamais.”

“É uma ordem, signo, vai-te!, vate das profundas!,” estridente,
“Volta à tempestade,” entre dentes, “aos ermos noturnos de Plutão!
Leva os truques que me distraíram, leva o azar de tua asa, só farsa!
Deixa-me à solidão que enlaça! Deixa o busto sobre a porta!”
Cortou o Corvo, “Nuncamais.”

E o Corvo, curvado, nem aflito, está sentado, está sentado
No pálido busto de Palas justo sobre minha porta;
E seus olhos semelhantes aos de um demônio a dormir,
E a luz do lampião tremulando, traduz sua sombra no assoalho:
E minha alma já sem flama, da sombra flutuando no assoalho
Livrar-se-á - nuncamais!

CHAPOLIM COLORADO

Mais ágil que uma tartaruga! Mais forte que um rato! Mais inteligente que um asno! Ele é Chapolim!

Assim começam invariavelmente todos os episódios da série de TV mexicana CHAPOLIM (no original, El Chapulin Colorado), imitando a abertura da série do Super-Homem, dos anos 50, estrelada por George Reeves: Mais rápido que uma bala! Mais poderoso que uma locomotiva! Capaz de transpor altos prédios num pulo só! Olhe lá no céu! É um pássaro? É um avião? É o Super-Homem! Só para os nostálgicos, a abertura da série do Homem de Aço continuava assim: Sim, é o Super-Homem, um estranho visitante de um outro planeta que veio à Terra, com poderes e habilidades muito além das conhecidas pelo homem! O Super-Homem, que pode mudar o curso dos rios caudalosos, vergar o aço com as próprias mãos e que se disfarça em Clark Kent, o melhor repórter de um grande jornal da cidade, enfrenta uma luta infindável pela verdade, justiça e bem-estar de todos.

Chapulin significa gafanhoto, em espanhol; na melhor tradição dos insetos com mania de herói, assim como o Besouro Verde e a Formiga Atômica. Não adianta ninguém espernear, o Chapolim é referência obrigatória no imaginário de várias gerações. Não há ninguém que eu conheça que não tenha assistido, mesmo “sem querer”, a um ou a vários episódios, para não dizer a todos, deste herói de roupa vermelha e amarela (até nas cores, ele imita o Homem de Aço), com um coração estampado no peito, com as iniciais CH. E para completar a indumentária, um par de anteninhas. Vale-se, como arma, de uma marreta biônica, a qual acerta não somente na cabeça dos bandidos, mas na de quem estiver por perto e, muitas vezes, na dele mesmo. Faz uso também das providenciais pílulas de Nanicolina, denominadas, em alguns episódios, de Polegarina, quando é preciso enfrentar malfeitores muito perigosos e em maior número.

Os seus bordões preferidos, lembrados por vários aficionados, depois de umas cervejas, são: Não contavam com minha astúcia!, Eu sempre chego a tempo!, Sigam-me os bons!, Suspeitei desde o princípio!, Meus movimentos são friamente calculados! e Se aproveitam da minha nobreza! E o melhor de todos: Palma, palma, não priemos cânico! Chapolim Colorado está aqui para ajudar no que for necessário!, enquanto se esborracha no chão ou em alguma parede ou em cima daqueles que estão em apuros, que, sem refletir, pronunciaram a senha para o surgimento do herói: E agora, quem poderá nos defender?

A série do Polegar Vermelho, como o Chapolim é conhecido pelos mais íntimos, teve início junto com outra, também famosa, a do CHAVES (El Chavo), em 1969. Ambas foram criadas pelo ator e produtor Chespirito, apelido de Roberto Gomez Bolaños, que interpretou tanto o Chapolim como o Chaves. As duas séries têm o mesmo elenco principal. Na série do Chapolim, ele é o único personagem fixo, em aventuras no faroeste, às voltas com piratas e tesouros, fantasmas, cientistas malucos que inventam o Extrato de Energia Volátil, criminosos empedernidos como o Tripa Seca. Na série do Chaves, além do personagem principal, um órfão que apareceu na vila e vive dentro de um barril, tal e qual um filósofo grego, em quem todos descontam suas frustrações, há a dona Florinda (a atriz Florinda Meza, mulher de Bolaños na vida real), mãe do bochechudo Quico (Carlos Villagran) e apaixonada pelo professor Girafales (Ruben Aguirre). Ela é especialista em deliciosos churros, que fazem a perdição do seu Madruga (Ramon Valdez). Todas as vezes em que dona Florinda e Girafales se encontram, ouve-se o clássico tema musical de “...E o Vento Levou”. Há, ainda, os atores Maria Antonieta de las Nieves (a personagem Chiquinha, filha do seu Madruga) e Edgar Vivar (o seu Barriga, proprietário da vila e o saco de pancadas do Chaves). Em tempo, Quico teve uma série de curta duração, devido à sua morte prematura. O sucesso das séries é tão grande que, aqui, no Brasil, gerou vários objetos de desejo, hoje disputados a tapa pelos colecionadores de tranqueiras, como um álbum de figurinhas, os gibis Chaves & Chapolim, e, Chapolim & Chaves, fantoches, disco, bonequinhos de plástico, sendo o do Chapolim o mais cobiçado de todos.