Numa madrugada sombria de 1845, o americano Edgar Allan Poe (1809-1849), um homem cansado de tantos problemas financeiros e familiares terminou o poema The Raven, marco da poesia moderna, publicado em janeiro do mesmo ano no jornal Evening Mirror. A partir dessa noite, poetas e escritores do mundo todo jamais seriam os mesmos, estendendo-se a sua influência também às artes futuras, como o cinema e os quadrinhos. No mesmo ano, Poe experimentaria o reconhecimento, por tanto tempo almejado, com leituras e palestras sobre a sua obra, principalmente este poema, tão estranho aos padrões da época. No ano seguinte, em 1846, a poetisa inglesa Elizabeth Barrett Browning, mulher do também poeta Robert Browning, muito famosa na época, escreveria uma carta para Poe, descrevendo-lhe a sensação que o poema causara entre seus amigos literatos: uma mulher, que tinha um busto de Palas, igual ao do poema, sobre a porta, não podia mais olhá-lo, ao entardecer, sem sentir calafrios. O quarto que Poe ocupava, com sua doentia prima e esposa Virginia, de 13 anos, numa casa de cômodos da rua Bloomingdale, fora realmente decorado pelo antigo inquilino como descrito no poema: janelas barulhentas, cortinas sussurrantes, pelo açoite do vento e, além de tudo, um busto de Palas nos umbrais. Ao cenário, Poe acrescentaria apenas a ave agourenta. Talvez o corvo fosse o seu alter ego, o seu duplo, o seu próprio espelho, verso e reverso, recurso tão caro à toda a poética poeana.
Originalmente, o corvo falante era um papagaio, ou talvez uma coruja. São flagrantes os resquícios da idéia inicial, quando Poe pergunta à ave pelo seu antigo dono, concluindo, devido à resposta nuncamais, que este bordão é somente a conversa de mestre infeliz em desesperada desgraça. Talvez, a ave de estimação de um náufrago. Logo, um papagaio, mas há controvérsias. Outros estudiosos vão mais longe e supõem a gênese do inusitado bordão em antigas brincadeiras de roda, que Poe ouvira, durante suas andanças pelos bosques próximos de onde morava. Durante, pelo menos, quatro anos, o poema foi rascunhado, rasurado, refeito, rarefeito, até que o poeta se resolvesse a publicá-lo. A origem de O Corvo encontra-se em outro poema anterior, Lenore, datado de 1831, cujo título remete à amada perdida, incluindo também o bordão never more. Curiosamente, uma vampiresca Lenora já aparecera, em 1773, no livro Lenore, de Bürger, autor alemão hoje esquecido, traduzido para o inglês por Sir Walter Scott, o autor de Ivanhoé. Publicado em 1796, um exemplar pode muito bem ter ido parar nas mãos do antenado Poe, assim como serviu de fonte inspiradora para os ingleses Byron, Polidori, Shelley e Mary Shelley. O merecido reconhecimento de Edgar Allan Poe, como um grande autor, ocorreu justamente entre os europeus. Além de Baudelaire, seu primeiro tradutor, dois outros grandes poetas franceses também se debruçaram sobre a obra de Poe: Stéphane Mallarmé, de Um Lance de Dados, e Paul Valéry, o autor de Cemitério Marinho.
Poe era tido pelos contemporâneos como um autor inspirado, o favorito das musas, coisa que muito o incomodava já que as pessoas não percebiam a matemática que havia por trás daqueles versos soturnos. Daí, escreveu uma obra prima da análise literária, A Filosofia da Composição (The Philosophy of Composition), para calar a boca dos críticos, incapazes de perceber o quanto há de transpiração na inspiração. A poesia de Poe é uma grande armadilha para os tradutores, com o excesso de aliterações e anagramas, além da grande incidência da letra "L", do duplo "L". O ”L” duplo também está presente no sobrenome Allan, herdado do padrasto que ele tanto odiava e que Poe transformava numa aberração dentro da própria assinatura. Além da importância poética, seus contos inauguram o romance policial moderno, sendo referência obrigatória para qualquer autor contemporâneo que se preze. Até Conan Doyle tem o seu débito com Poe, através do personagem Monsieur Dupin, de Os Crimes da Rua Morgue, mais que evidente fonte de inspiração para o detetive Sherlock Holmes.
Em 1912, aconteceu a primeira adaptação de O Corvo para o cinema, com Muriel Ostriche. Três anos depois, o cinema mudo fez outra adaptação do poema para as telas, sob a direção de Charles Brabin, com Henry B. Walthall, no papel de Edgar Allan Poe, e Wanda Howard, em quatro papéis: a prima Virginia, a amada Helen Whitman, a perdida Lenora e um espírito. Esta adaptação do poema é, na verdade, uma biografia de Poe, baseada no romance The Raven - The Love Story of Edgar Allan Poe, de George Cochran. No ano de 1935, o poema seria novamente adaptado para o cinema, com direção de Lew Landers (Louis Friedlander): no elenco de O Corvo (The Raven), o eterno vampiro Bela Lugosi, no papel do médico obsessivo e a eterna múmia Boris Karloff como a sua vítima. Há ainda, nesta adaptação cinematográfica, elementos do conto O Poço e o Pêndulo, também de Edgar Allan Poe. Curiosamente, no ano anterior, Lugosi e Karloff tinham feito O Gato Preto (The Black Cat), baseado em outra história de Poe, que ainda tem no elenco outro grande nome dos filmes de horror, John Carradine, como um organista. Anteriormente, em 1932, Lugosi fizera Os Assassinatos da Rua Morgue (Murders in the Rue Morgue).
Roger Corman, diretor apaixonado pela obra poeana, também adaptou O Corvo, com roteiro de Richard Matheson, em 1963, apresentando Vincent Price (Dr. Erasmus Craven), Peter Lorre (Dr. Adolphus Bedlo) e Jack Nicholson (Rexford Bedloe), além de Karloff, como o Dr. Scarabus, e Hazel Court como Lenora. Antes, Corman dirigira O Solar Maldito (House of Usher/Fall of the House of Usher, 60) e A Mansão do Terror (The Pit and the Pendulum, 61), adaptação de contos do volume Histórias Extraordinárias (Tales of the Grotesque and Arabesque). Ainda no cinema, o filme maldito O Corvo (The Crow, 94), de Alex Proyas, que levou Brandon Lee à morte, durante as filmagens, em que tiros de festim se transformaram em balaços de verdade. O músico de rock Eric Draven, que volta do mundo dos mortos para vingar a morte da sua namorada, é inspirado na ave de mau agouro do poema. Para não deixar dúvidas quanto à sua origem, Eric recita o trecho inicial do poema quando vai buscar as alianças roubadas numa loja de penhores. Outra adaptação cinematográfica, digna de nota, da obra de Poe é A Queda da Casa de Usher (La Chute de la Maison Usher), de 1928, sob a direção de John Epstein, cujo assistente é Luis Buñuel. Um primor é Annabel Lee, de George Higham, inspirado no poema homônimo de Poe, todo em stop-motion.
Na televisão, uma grande sacada é o corvo do relógio da série Os Monstros (The Munsters, 64-66) que só crocita: Nunca mais, nunca mais! Na série Galeria do Terror (Night Gallery, 70-73), uma criação de Rod Serling, um dos episódios tem o sugestivo título Disse o Corvo, Mais ou Menos (Quoth the Raven), com o ator Marty Allen no papel de um Edgar Allan Poe gordinho, que atira a pena contra o corvo gozador quando este lhe dá a rima correta para o final de um verso. Até S.O.S. Malibu (Baywatch) tem um episódio com o título Nunca Mais (Nevermore), em que uma figura estranhíssima, misto de múmia egípcia e Darkman, rapta C.J. (Pamela Anderson), chamando-a de Lenora, e fica recitando para ela os versos de Edgar Allan Poe. A boate da série Maldição Eterna (Forever Knight), com o policial vampiro Nick Knight, tem o sugestivo nome de The Raven.
Mesmo o desenho animado têm o seu débito com o intrigante poema de Poe. Começando pelo clássico da Biblioteca de Desenhos Animados, O Corvo Atrás do Médico e o Monstro (The Bookworm Turns), onde ocorre a junção de Poe com Robert Louis Stevenson, autor do romance Dr. Jekyll and Mr. Hyde, que, no Brasil, recebeu o título de O Médico e o Monstro. As séries animadas Os Fantasmas se Divertem (Beetlejuice) e Tiny Toon têm Edgar Allan Poe e seu pássaro de estimação, como personagens, em episódios adaptados do poema. E Os Simpsons dramatizam o poema no seu primeiro episódio de halloween, Dia das Bruxas, com James Earl Jones, a voz de Darth Vader, narrando o poema, em off. Recentemente, surgiu na telinha Lenore, the Cute Little Dead Girl, estrelando uma apaixonante menininha de 10 anos, cercada de seres estranhos e apavorantes, uma criação de Roman Dirge, repleta de humor negro e baseada evidentemente no poema Lenore.
A música popular brasileira também se apropria desse poema ícone. A dupla Conde e Drácula transformou os versos de O Corvo na letra de uma pândega moda de viola, em meio aos arrulhos de uma singela pombinha. Seria a impossibilidade de se encontrar um urubu falante? Elis Regina, na década de 70, pelas ondas do rádio, cantava os versos da canção Como Nossos Pais, uma composição de Belchior: Como Poe, poeta louco americano, eu pergunto ao passarinho preto blackbird, o que se faz?/Blackbird me responde: o passado nunca mais.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Adorei! Vc falou de todos os meus tios no seu texto, gostei! haha! E faltou uma coisinha: antes de "Lenore - The Cute Little Dead Girl" surgir nas telas já era HQ (e continua até hoje -www.spookyland.com).
ResponderExcluirBeijo