quarta-feira, 30 de março de 2016

A MENINA DA ILHA DE SÃO BRAVO - final



por Edson Negromonte

Hoje, passados mais de 30 anos, é véspera de Natal. Estou em minha casa, ansioso, após receber um e-mail, avisando-me da sua chegada repentina, mas não inesperada. À mesa da cozinha, minha mãe aperta carinhosamente minha mão inquieta e diz-me para ter calma, cantarolando com sua voz doce e pequena:

O que tiver de ser, será, será; o que tiver de vir, virá, virá...

quarta-feira, 16 de março de 2016

A MENINA DA ILHA DE SÃO BRAVO - parte 5



por Edson Negromonte

Eu e ela passeávamos pela cidade, pela mata ao redor, pelos céus de diamante, de mãos dadas, sempre juntos, dedos entrelaçados. Sob a garoa, cantávamos alto. Sob a chuva, bem mais alto. Nas tempestades, gritávamos em uníssono com a trovoada. Daí, então, nos calávamos; eram tempos de perseguição política, gente desaparecendo sem mas nem porquê, casas invadidas à luz do dia. E, mesmo assim cantávamos despreocupados, inocentes, aparentemente indiferentes (a felicidade é a mais subversiva das armas). A amantes irresponsáveis, nada aflige, quase nada lhes pode afligir. E como não ser irresponsável na adolescência?

– Sejam felizes, por favor, sejam felizes! – pedia, suplicava, implorava o sol às folhas da relva.

Ela era a minha parceira, cúmplice, amiga, era ao mesmo tempo pai, mãe, irmã. Decidimos que voltaríamos à ilha, lecionar para os filhos dos pescadores, numa escola que construiríamos com as próprias mãos, o suor misturado à massa. A paga do nosso trabalho viria em peixe, arroz, farinha, banana. Não precisávamos mais! As famílias, assustadas com a súbita resolução, uniram-se para nos dissuadir da brincadeira que estávamos levando demais a sério.

Naquela manhã, acordei e fui à sua casa, como de costume. A sua mãe e os irmãos olharam-me apreensivos e deram a entender, em meias-palavras, que ela tinha fugido. Eu não quis acreditar, procurei em todos os cômodos da casa, como se fosse uma brincadeira, uma brincadeira de mau gosto, até que um choro convulsivo acabou por tomar conta da minha alma e, finalmente, do meu corpo. Fôra abandonado! Disseram-me que ela tinha se ido, escondida no bagageiro de uma caminhonete. Como eu poderia viver sem a razão da minha existência? Na terra, são poucos os privilegiados que privam da convivência com um anjo, mais eu quis mais do que me fora oferecido e o Céu achou por bem tomá-la de mim. Levou-a durante a madrugada, enquanto eu dormia, tal e qual um desafortunado Rip Van Winkle. Ela sofria dentro de seu invólucro carnal; pois aos anjos é permitido voar e, como sempre dizia, ela queria voltar a ser somente uma luzinha lilás a saracotear entre as estrelas brilhantes. Passado já um mês, ouvi às minhas costas o familiar tilintar dos guizos. Era ela! Abraçou-me. Nesse momento exato, senti que o anjo tinha horrivelmente se transformado em um ser comum, de carne, sangue e ossos. Não retribuí, não pude retribuir o abraço; eu era feito da argila que, um dia, transformou-se também em carne, sangue e ossos. Ali, justamente ali nos separamos para sempre, embora eu soubesse, através de conhecidos, de quase todos os seus passos, que se mudara para a capital, casara, engravidara, que cantava numa banda de rock, descasara, que tinha uma escola de música... até que a vida, veloz como sempre, foi empurrando-me aos trambolhões em outras direções, afastando-me para sempre da sua presença.

quarta-feira, 9 de março de 2016

A MENINA DA ILHA DE SÃO BRAVO - parte 4


por Edson Negromonte

No domingo, enquanto todos levantavam acampamento, eu só pensava em ficar vivendo naquela ilha, na ilha de São Bravo, no Arquipélago dos Atobás, com aquela família, para poder então ouvir todas as suas histórias, à beira do fogo, à beira da água, na areia noturna da praia enluarada. Roguei a Deus que os barcos naufragassem e que só eu sobrevivesse, que a maré me levasse de volta àquela praia, mas infelizmente a viagem de volta à realidade transcorreu com ventos favoráveis, velas infladas, a todo pano, enfunada a bujarrona. Sem o ser amado, eu não encontrei mais sentido, nem os livros conseguiam mais aplacar a minha ansiedade. Cheguei a imaginar que houvera sonhado, pois anjos não andam assim por aí, de cabelos ao vento e pés descalços. Mas a vida insiste em nos jogar de encontro aos rochedos da realidade. Confortou-me ler o poema de Goethe sobre o arco-íris branco, que o deixara quase cego. Assim, reconfortou-me saber que um anjo me dera a mão, conversara comigo e isso era uma das maneiras de Deus mostrar-me que a vida não é só aqui. Anjos não podem ser vistos quando bem entendemos; quando surgem à nossa frente, querem significar algo. E humanos não podem namorar anjos impunemente. Em seguida, alguém soprou-me ao ouvido sobre as visões angelicais de William Blake na infância, as quais sua mãe curou com uma boa sova. “É melhor que deixes os anjos em paz”. O medo do desconhecido afasta-nos da felicidade; há várias pontes a serem transpostas, mas a aparente precariedade faz que permaneçamos do lado que conhecemos e não cheguemos jamais ao outro lado do abismo.

Passaram-se os dias, as noites, semanas, o mês... mas a imagem diáfana não se despregava das paredes brancas do meu cérebro. Eu, pecador, quis aquele anjo para mim, para abraçá-lo, beijá-lo, mas tinha comigo a certeza dos malditos de que se voltasse a São Bravo não o reencontraria. A alegria foi voltando aos poucos, de quando em quando a imagem querubínica vinha-me à mente. Uma noite, sem esperar, deparei com ela sob uma frondosa mangueira que havia no fundo do quintal. O coração aos pulos estava pregando-me uma peça? Em dúvida, fui caminhando lentamente em sua direção e, num sorriso, seus braços abriram-se para me receber em seu seio. Beijei-a inicialmente na face, para em seguida colar meus lábios aos seus, sem a preocupação de que fosse uma entidade de mundos outros. Palavras quiseram vir à boca, mas nossos lábios uniram-se novamente. Contou-me, então, que a família estava se mudando para a cidade, a mãe decidira que os meninos voltariam a estudar.

Alguns dias depois, a família instalou-se numa casa próxima à minha, com um quintal em frente onde a menina cantava, a plenos pulmões, para as flores brancas da laranjeira, para os pardais, às formigas, para as lagartixas, canções como "Rita Jeep" e "Eleanor Rigby". De vez em quando erguia a cabeça para o céu e entregava a sua dança, ao tilintar de guizos, amarrados nos pulsos e tornozelos, às nuvens, ao azul, às sílfides, às fadas e duendes, a Deus, ao plano de onde ela emigrara. Era perceptível toda a banda do Sargento Pimenta, completa, acompanhando-a com guitarras, cornetas, bumbos e tambores. Um dia, até o flautista de Hamelin veio acompanhar a parada. De outra vez, o Chapeleiro Louco promoveu um chá das cinco especialmente para ela. Ou seria um chá das seis? (Era horário de verão!) Todos riram à larga quando o Ratão do Banhado saiu de dentro da chaleira. Éramos inseparáveis, passávamos juntos toda a possibilidade das horas. Ela levava-me pela mão para ver um pequeno cogumelo que crescera num tronco podre, após uma chuva torrencial. Com um sorriso maroto, mostrava a joaninha no dorso da mão, segredando-me que dela ouvira uma história, a qual só me contaria se lhe desse um beijo. Os dias passavam rápidos; do tempo, tínhamos noção somente quando o Coelho Branco atravessava o nosso caminho, esbaforido, a gritar:

– É tarde, é tarde!

quarta-feira, 2 de março de 2016

A MENINA DA ILHA DE SÃO BRAVO - parte 3


por Edson Negromonte

Ela tomou-me, então, com naturalidade pela mão e foi conduzindo-me à casa, pela estrada de terra, de cascas de ostra, de mariscos, de esqueletos de peixes ancestrais. Deixei-me levar pela menina dos meus sonhos, como se há muito tempo aguardasse esse momento de pura epifania. A cabeça girando, os galhos das árvores me recebiam de braços abertos; minha alma estava tranquila, como nunca antes estivera. Ela era tudo o que a vida inteira eu ideara. Nesse momento sublime, febril, opiáceo, quinceyano, lembro-me perfeitamente, eu tive certeza de que aquele era o ser que eu buscava, o ser que eu aflito buscara, de que não era mais a prosa da literatura, era tão somente a arte da poesia, em sua forma pura e ainda não grafada. Sei que tudo isso pode parecer estranho, por contar tão pouca idade, mas não há nada que possa contradizer um coração apaixonado a vida inteira pela metade perdida da sua catedral, sem a qual vaga-se pelas ruas com a via-sacra exposta, sangrando a cada passo, o corredor da nave sem tapete vermelho e a abóbada destelhada.

O chão da sala da casa era de pequenos seixos, com uma grande mesa central. Um tronco de embaúba vinha do teto, atravessava o tampo e terminava num pequeno fosso, mais baixo que o nível do chão. À guisa de banco, quatro troncos laterais com os lugares escavados. Meus olhos perscrutadores não perderam um único detalhe, apesar de inebriado com a doce fragrância que aquele ser exalava a cada leve movimento do corpo. Havia ainda, no térreo, dois quartos laterais e uma pequena cozinha, de onde vinha o cheiro do café recém-coado em fogão a lenha. Uma escada de degraus de costaneira levava ao andar de cima, onde ela sentou-se na cama, a qual fazia a vez de sofá, em posição de flor de lótus, dando um sorriso tão terno que dois sóis acendiam-se em seus olhos, comprovando as palavras do poeta, “são os olhos as janelas da alma”. Neste segundo pavimento, além da grande sala circular, havia quatro quartos; os da frente, as janelas abriam para o mar, os de trás, para a mata. Nas paredes, as estantes exibiam, com volúpia, livros em profusão, com todos os tipos de encadernação, de couro, industriais, brochuras.

Embevecido com a beleza da menina, eu a ouvia falar sobre leituras à luz de vela, durante as madrugadas, sobre as brincadeiras com os irmãos, as pescarias com o pai, o qual ia vê-los em alguns finais de semana, sobre o trabalho das aranhas, a tessitura das teias, pássaros azuis que vinham em sonho para resgatá-la, para levá-la a passear em suas asas enormes, sobre as longas conversas com os pescadores, o aprendizado com os guaiamuns, as casas de bambu que Arael construía, a cobertura de folhas de bananeira, as músicas que ela ouvia no rádio, as tempestades, o vento que soprava do mar para a terra, da terra para o mar, da falação noturna das almas nas pedras... Eu, muito mais ouvindo do que falando, a tudo assentia com a cabeça, com medo de que ela se calasse. Sua fala perfeitamente incompreensível levava-me de imediato aos mares do Sul, onde um nativo sopra, desde tempos imemoriais, conchas de vários tamanhos e formatos para entrar em contato com os deuses de seus avós, bisavós. Era, ao mesmo tempo, a algaravia do rouxinol do imperador, rios a correr livres nos leitos de pedra, cachoeiras despencando do alto das rochas, banhando o primeiro homem, astros em rotas determinadas desde a Criação e o descanso dos dias sétimos.

De lábios carnudos, pele alva de cetim, ela era feita da matéria das nuvens, onde os anjos do Senhor sentam-se e entoam canções que nós, humanos, traduzimos como orvalho, essas partículas da natureza tão caras aos alquimistas. Por favor, leitor, não estou delirando; se você assim pensa é porque nunca deparou com um ser enviado à terra para ser aquilo que o livro sagrado chama de maná, alimento espiritual que consola a alma, nunca saboreou o vinho das eras cantado e decantado por Omar Khayyam. Ouso dizer que deparar com alguém assim é sentir-se, num lampejo, o guerreiro Arjuna, cujo carro de guerra está suspenso entre os dois exércitos inimigos. Assim como Shelley, os poetas buscam esse ser iluminado a vida toda e, quando o encontram, querem tocá-lo, possuí-lo, insatisfeitos em somente admirá-lo.