quinta-feira, 29 de abril de 2010

O VIOLEIRO


por Edson Negromonte

Minhas erráticas pesquisas sobre a viola caipira e as diferentes afinações, instrumento caro à real compreensão da alma brasileira, levaram-me à Ilha do Cardoso, em busca do único descendente vivo do afamado violeiro Bento Cego. Conta-se que, seguidor dos passos do bisavô, Setembrino tornou-se também mestre na arte de tanger as cordas desse artefato de origem ibérica tão bem aclimatado às nossas plagas. Os eruditos são unânimes em afirmar que, assim como a boiúna, este violeiro existe somente nas mentes infantis dos caboclos do litoral paranaense. Como sói acontecer com os navios piratas naufragados em nossa costa, muitos se aventuraram em rastrear as pegadas de Setembrino, em busca da fama, mas todos indistintamente fracassaram. O pouco apreço pelas verdades cristalizadas concedeu-me, assim, a liberdade de sair a campo na busca quixotesca de mais um moinho de vento abandonado na paisagem das páginas empoeiradas das universidades, pelas quais nutro o mais sincero desprezo. Durante muito tempo, tentei aprender o ponteado da viola, mas meus dedos entrelaçavam-se entre os cinco pares de cordas duplas, lembrando-me de uma impraticável simpatia: deve-se apanhar, à meia-noite, um filhote de cobra coral, de coloração vermelha e preta, e segurando-o pelo pescoço, com o polegar e o indicador da mão direita, deixá-lo se entrelaçar entre os outros dedos. Depois, proceder da mesma forma com os dedos da mão esquerda, evitando-se somente de deixar a cobra se enroscar nos polegares. Assim, desculpando-me a um possível leitor, posso atribuir a minha incapacidade de dedilhar o instrumento à aversão que sinto pelas serpentes. Decidi, destarte, devido à minha já citada incapacidade, tornar-me um dedicado estudioso da história da música, mormente das raízes musicais brasileiras, mas principalmente da cultura caipira, coisa que levou-me a rastrear a origem desse instrumento, indo para além das terras lusitanas e adentrando os pagos ignotos da influência árabe na cultura de Espanha e Portugal, e conseqüentemente do Brasil. Com o passar dos anos, movido pela paixão, fui sem critério acadêmico algum coletando biografias de violeiros, de fabricantes do instrumento, famosos e desconhecidos, causos e lendas, as mais diversas afinações, chegando finalmente ao Santo Graal dos estudiosos da viola, o quimérico Setembrino, sobre o qual conta-se ter cabeça de leão, corpo de cabra e rabo de serpente, além de lançar fogo pelas ventas. Evidente que essa fantasiosa descrição não passa de invencionice da mente criativa do nosso caiçara, à beira do fogo, quando uma garrafa de aguardente passa de mão em mão. A verdade é que nem o venerável Mário de Andrade e muito menos o saudoso Marcus Pereira, em seus insuspeitados mapeamentos musicais, tocaram sequer de raspão no legendário nome desse violeiro, talvez por excesso de zelo ou até acovardamento perante o impalpável.
Ao desembarcar na ilha, ao entardecer, fui recebido por pescadores que estavam na praia, consertando a malha de uma rede que tinha sido destroçada por um grande peixe, o qual um deles, aparentemente versado na Bíblia, afirmava ser o colossal Leviatã, do caos primitivo. Olhavam-me, entre curiosos e desconfiados. Surpreendentemente, hospitaleiros, ofereceram-me uma cabana desocupada, para o pernoite, assegurando que pela manhã o menino me levaria ao encontro do violeiro, como se há muito esperassem a minha chegada e tivessem prontas de antemão as respostas para as minhas ainda não formuladas questões. Mesmo receoso ante a inusitada situação, mal pude conter a satisfação. Onde tantos fracassaram, seria eu o predestinado a andar sobre o terreno movediço do manguezal das lendas? Imediatamente, desculpei-me comigo mesmo por tamanha arrogância.
Mal preguei os olhos a noite toda, adormecendo somente quando os primeiros e tímidos raios da manhã adentravam as frestas das telhas, algumas rachadas, outras quebradas. Despertei sobressaltado, olhei o relógio; duas da tarde! Desesperado, fui à porta, em busca de alguém. Encontrei somente a imensidão azul do mar à frente. Bati nas casas, sem obter resposta. Pareciam todas recentemente desocupadas, as cortinas de chita ao sabor do vento. Silêncio absoluto dentro das casas. Espiei dentro de algumas: tudo deserto, nem sombra de alma vivente.
- E o menino, cadê o menino? – perguntei em voz baixa, para mim mesmo.
Sentia-me um personagem de ficção científica ou, pior, de um filme de terror, à espera de uma catástrofe iminente (confesso, cheguei a pressentir um macabro mantra marinho, como se numa ficção científica japonesa), quando um vira-latas foi se aproximando lentamente. Enquanto o pequeno animal de cor parda cheirava despreocupado as minhas pernas, fui devagar esticando a mão em sua direção, sinal de coração limpo, em busca de confiança. Após um breve tempo, que para mim pareceu uma eternidade, ele lambeu-a, abanou o rabo e deu um latido, olhando-me amigavelmente nos olhos. Em seguida, deu uma pequena corrida à frente e voltou-se, latindo e novamente abanando o rabo, como se quisesse dizer algo. Não sei por que cargas d’água o segui; instintivamente talvez. Ele embarafustou mato adentro e, de quando em quando, parava e olhava para trás. Continuei em seu encalço; a floresta ia tornando-se mais e mais densa. No início de uma elevação, ofegante sentei-me para descansar. O cão postou-se ao meu lado, silencioso, à espera de que eu recuperasse o fôlego. Manteve-se em tão rígida postura que lembrei-me instantaneamente de Anúbis, o cão sagrado dos egípcios. Retomamos, então, o caminho. No alto de uma elevação, divisei lá embaixo uma choupana, perdida em meio ao matagal, de onde se elevava um penacho de fumaça. O coração aos pulos, tomei uma respiração profunda, busquei o vira-latas, mas o danado desaparecera. Desci a encosta em direção à humilde habitação, certo de que aquela era a morada de Setembrino.
O inconfundível som de uma viola de arame foi tornando-se cada vez mais nítido. Minhas mãos suavam, latejavam as veias da fronte, meu corpo tremia, mas tudo isso é muito pouco para descrever o estado em que me encontrava. Febril, cada pequena célula de meu corpo vibrava, como se eu estivesse na antecâmara da grande pirâmide asteca, prestes a ser iniciado nos mistérios arcanos da vida. E a viola ponteando, indiferente à minha aproximação, quando, apesar da vista toldada, em meio a pontos de luz que brilhavam e apagavam, e novamente brilhavam para em seguida se apagar, percebi, sentado na soleira da porta, um homem magro, de pele clara, ressequida do sol, e roupas de aspecto terroso. Sem se perturbar com a minha inopinada presença, ele continuou o ponteado. De olhos fechados, o corpo balançando para frente e para trás, os dedos caíam certeiros, como pequenos martelos, nas cordas de aço, tal e qual um místico indiano em transe. Findou a execução com um acorde maior, no qual a viola pareceu dizer, de dentro da caixa de ressonância:
- Vieste!
Quem falara?! O homem ou a viola? Sobressaltou-me essa dúvida momentânea, tal e qual quando nos aproximamos de algo que desejamos fervorosamente a vida inteira e, nesse exato momento, resolvemos duvidar da sua veracidade. Nessas ocasiões, nosso velho e conhecido parceiro, o ceticismo, faz a sua parte, senhor das artimanhas da dúvida, para que permaneçamos no lodaçal onde chafurdamos, desde tempos imemoriais. Estariam os habitantes da ilha pregando-me uma peça, como porventura fizeram com todos os outros buscadores que aqui aportaram? Ou meus devaneios teriam me arrebatado para o bojo de um conto de fadas? Covardemente, desejei que toda a cena se transformasse de um momento para outro em nada, o palpável nada, quando a viola insistiu:
- Espero-te há tanto tempo...
Isso tudo fugia agora à minha estreita compreensão. Eu estava, com certeza, sendo alvo de uma muito bem urdida trama daqueles pescadores. Matreiros, eles tinham arquitetado essa brincadeira para dar boas risadas às minhas custas, assim como fizeram com os pesquisadores anteriores a mim.
- Aquieta o teu coração... - continuou a viola.
Obedeci prontamente, porque às coisas do outro mundo não é conveniente desobedecer, conforme aprendi com as velhas rezadeiras da minha infância.
Setembrino olhou para o alto, justamente quando um bando de gaivotas atravessava o céu azul, principiando então uma plangente melodia em perfeita harmonia com as aves marinhas. Aos poucos, sem que eu percebesse, as lagrimas começaram a escorrer pela minha face. Naquele exato momento, tive certeza absoluta de que comigo ocorrera o encontro que tantos abnegados tinham almejado. Eu estava sendo agraciado com o mágico soar da viola de Setembrino, o herdeiro de Bento Cego.
Não posso assegurar quanto tempo ainda fiquei ali, a olhar aquele homem e seu instrumento de sortilégio, lembrando-me vagamente de que ele apertava e desatarraxava cravelhas, e tocava uma ou tantas canções, pensando melhor, uma única e interminável melodia, com diferentes andamentos e variações sobre o vôo das aves, as quais nem posso mais afirmar se eram mesmo gaivotas, do ninho para o mar, do mar para o ninho, cujos fiapos melódicos, após tantos anos, ainda vêm-me à mente em momentos de desassossego. O que sei é que, como se eu despertasse de um transe místico, vi sua mão estendida mandando-me embora, quase enxotando-me dali, como se eu tivesse então conspurcado o paraíso, como se eu tivesse levantado o véu da face da vestal. Independente da minha vontade, virei as costas àquilo que eu fôra buscar e tomei de volta o estreito caminho por onde eu viera. Cheguei à aldeia dos pescadores.quando o sol ia se deitando no horizonte, banhando-o das mais diversas tonalidades. Na praia, vários vultos acocorados observavam silenciosos o movimento prateado dos cardumes. Conforme meu pedido, uma canoa foi preparada para levar-me ao cais de Antonina, onde, no Hotel Tóquio, faria algumas anotações e subiria no dia seguinte para a capital. Na praia, enquanto esperava a embarcação ser preparada, eu conjeturava, absorto, sobre a minha recente experiência com forças que até hoje não compreendo, quando fui despertado por uma voz feminina, vindo de dentro de uma das casas, chamando por alguém e batendo com um prato de alumínio na porta.
- Vem!
Repentinamente, um pequeno cachorro pardacento, sim, o mesmo que me conduzira a Setembrino, saiu de trás de uma baleeira e correu em direção ao chamado da mulher, enquanto ela gritava:
- Vem, Menino, vem!

terça-feira, 13 de abril de 2010

O CENTAURO - A MALDIÇÃO DE IXIÃO


por Edson Negromonte

Euritião nascera centauro. Não que isso fosse novidade em sua família ou, melhor, em sua árvore genealógica, onde constam centauros que passaram para a história, como Abby, que pertenceu à trupe de comediantes de Eduardo, o Príncipe Negro, de Gales, no século XIV. Na verdade, Abby era mais que um centauro de estimação, funcionava como uma espécie de conselheiro. E Volon; seu esqueleto é exibido, como uma fraude, na Universidade do Tennessee. Também digna de nota é a cortesã Veronique Vertz, cuja poesia está hoje completamente perdida. Os pais de Euritião eram aparentemente seres comuns, normais, humanos, se assim se pode dizer. Tiveram o filho metade homem e metade cavalo, mas não se alarmaram com isso, já era previsível. Segundo o oráculo, Euritião seria o último dos centauros, mesmo porque a vida hodierna não comporta mais esses seres fantásticos; a imaginação do homem moderno está se tornando, a cada dia, mais árida, solo nada propício ao nascimento de centauros, os quais tiveram a origem terrível na conjunção carnal de Ixião com uma nuvem, enganado por mais uma das artimanhas de Zeus.
Os pais de Euritião, ajudados por uma psicóloga, sempre trataram o filho como uma criança normal, como se outros iguais a ele andassem por aí impunemente, pelo playground, na escolinha, quem sabe, até no mesmo prédio onde moravam. Mas isso não era verdade, Euritião era mesmo o último de uma antiquíssima raça de monstros mitológicos. Durante a infância, brincava com as outras crianças, levando-as na garupa, trotando, galopando, sob os olhares preocupados dos outros pais. Na adolescência, com o despertar do desejo sexual, as coisas se complicariam, mas a psicóloga, que já se tornara amiga da família, ajudou-o a superar as crises. O que importa saber é que Euritião, até onde isso é possível, levou uma vida normal: cursara Direito na PUC, era querido pelos colegas, apesar das piadinhas que faziam às suas costas, mas, assim pensava ele, tudo isso era normal, muito normal; afinal de contas, ele era um centauro, o último dessa espécie de seres, segundo a lenda, imaginários. De posse do diploma, conseguira um emprego no banco onde o pai era gerente; começou como escriturário, foi galgando degraus, um após outro, sem concessões, até chegar a uma chefia de serviço, em outra agência, para evitar falatórios de favorecimento. Depois que o pai morrera, Euritião foi se tornando, a cada dia, mais e mais recolhido. Sem o carinho, a compreensão, as reconfortantes palavras paternas, achou melhor pedir as contas no banco. Com a pensão deixada pelo velho, podia se dedicar em tempo integral às pesquisas sobre a importância do byronismo no Brasil, sempre postergadas. Com o advento do comércio eletrônico, dispunha de uma boa biblioteca sobre o assunto, abarrotada de volumes raros, amealhados pelos sebos do mundo todo. Precisava de todo o tempo disponível para levar a termo a tese. E, muito mais agora, que a sua mãe, Néfele, devido à perda repentina do marido, não saía mais da cama, necessitando de cuidados constantes. Assim, deixando de sair de casa, Euritião abandonara o convívio social, penoso após a morte do pai. No espaçoso apartamento de cobertura, na Avenida Paulista, Euritião podia trotar à vontade, pela manhã e à tarde (exercício necessário para que não se atrofiasse a sua bela musculatura equina), enquanto os vizinhos do andar de baixo estavam fora.
Quis o destino que, naquele início de madrugada, levado por uma insuspeitada insônia, Euritião deixasse a TV ligada, após terminar o jornal da meia-noite. Foi quando, no Programa do Jô, o entrevistador anunciou, com um estardalhaço inusual, a entrevista com uma grande atriz, criatura fabulosa no meio, um monstro do teatro, mas até então um nome desconhecido do centauro.
Tomado de curiosidade, Euritião puxou a cadeira para mais perto da TV. Sem entender bem o porquê, as propagandas, a vinheta, as piadinhas do apresentador lhe pareceram uma eternidade. Finalmente, ela foi chamada ao palco. Atravessou a plateia, desceu a escada, subiu ao palco, as ancas (que ancas!), para lá e para cá, num movimento harmonioso, os adivinhados seios, cobertos por uma faixa quase transparente de seda verde, os olhos negros, profundamente negros, os lábios, vermelhos, carnudos, um belo sorriso, a cabeleira negra, farta, descendo pelas costas desnudas, a pele de pêssego, em flagrante contraste com a pelagem avermelhada, as pernas, principalmente as traseiras, magníficas. Sim, era isso mesmo, seus olhos não o estavam enganando, ele não estava sonhando. Uma centaura, uma fêmea da sua espécie. Pela primeira vez, o auditório não soube como reagir; primeiro, um silêncio constrangedor, para, logo em seguida, explodir em palmas, à imitação do apresentador.
– Que mulher! – exclamou Euritião.
Sem despregar os olhos da tela, buscou na lista telefônica o número da emissora, pediu para entrar em contato com a produção do programa, no dia seguinte solicitou o telefone da centaura, educadamente lhe responderam que não podiam fornecer, ele disse que era também um centauro, que precisava conhecê-la, amor à primeira vista, começou a contar a sua história pessoal, que ele era também um centauro... Do outro lado, a atendente deu uma risada e desligou, achando que era trote.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

P.S. AO MÁGICO DE OZ


por Edson Negromonte

Um ano depois de Dorothy voltar ao Kansas, a tia Em morreu. Desesperado, tio Henry caiu na bebida e, um dia, desapareceu na estrada, que não era nem de longe a dos tijolos amarelos, para nunca mais voltar. Só, a menina buscou em vão consolo no cachorrinho Totó que, coitado, ao voltar de Oz, passara a agir de maneira estranha, latindo a noite toda para os passarinhos que se abrigavam na goiabeira em frente da casa, até que, uma manhã, apareceu pendurado pelas imensas orelhas (como as orelhas de Totó tinham crescido após a estranha viagem) nos galhos da árvore. Daí em diante, Totó passaria a agir de modo mais destrambelhado, buscando auxílio com as ratazanas, tidas como as melhores cirurgiãs plásticas do reino animal. Elas, então, o atraíram para o milharal, transformando-o em uma grande ratazana, bem de acordo com o seu padrão de beleza. Não mais reconhecendo o animalzinho de estimação, Dorothy encurralou Totó num canto da casa e matou-o a vassouradas. Onde já se viu uma ratazana latindo? O sangue respingara pelas paredes da sala, um quadro deveras assustador, digno de Jackson Pollock. Mais solitária ainda, a agora adolescente Dot, como passaremos a chamá-la daqui em diante, resolveu deixar para sempre o Kansas e embarcar num poético cargueiro do Lloyd, lavando o porão. No navio, conheceu uma lagarta baiana que arrastava uma pesada mala de couro, forrada de pano forte, brim cáqui, repleta de paraísos artificiais. Mas como Dot podia se contentar com estados tão fugazes? Logo ela, que tinha saboreado o verdadeiro paraíso da terra de Oz. Numa escala no porto de Santos, a adolescente deu adeus à vida marítima e pegou um ônibus. Na capital, errou de emprego em emprego; balconista na 25 de Março, faxineira no Center Norte, acompanhante de velhinhas indefesas, portaria de motel... Uma noite, na pensão onde morava, Dot teve uma ideia brilhante, mas tão brilhante que lâmpadas de 100 watts acenderam ao redor da sua cabecinha loira. Como não sabia fazer mesmo nada na vida, resolveu se tornar escritora. Durante a madrugada, começou a escrever um livro de auto-ajuda; para entender a si mesma, é claro. Pela manhã, insone, mostrou-o à dona da pensão que, compadecida da adolescente solitária, tinha se tornado sua amiga íntima. O destino, manhoso, estava aprontando mais uma: o manuscrito acabou circulando entre os moradores do pardieiro, que muito agradeciam as palavras de orientação em um mundo cada vez mais conturbado e sem perspectivas. Ajudada por Baum, morador da pensão, ela criou um blog, no qual ia publicando aos poucos os capítulos do livro, conforme ia escrevendo, reescrevendo, dando-lhes a forma definitiva; sim, ela adquiria os cacoetes dos grandes escritores. As sábias palavras da moça do Kansas caíram tão de imediato no gosto popular que ela chegou a ser chamada, pelos seguidores, de Paulo Coelho de saias, embora usasse shorts, com as belas pernas bem torneadas sempre à mostra. Um conhecido editor, de uma grande editora, ofereceu-lhe um bom contrato. Dot recusou peremptoriamente, é claro, a grande arte não está à venda. Mas quando o Big Porco, de terno Armani e gravada de seda, ofereceu uma gorda participação nos lucros, os belos olhos azuis de Dot cresceram, tornando-se mais azuis ainda. No lançamento do livro, multidões acorreram à livraria em busca de um autógrafo, mas Dot, embora toda sorrisos, não conseguia disfarçar o grande medo sempre presente em seu coraçãozinho de palha.

O HOMEM-MORSA


por Edson Negromonte, a partir da canção "I Am the Walrus", de Lennon e McCartney

O diabo é que o homem-morsa tinha de ser aposentado, se é que você me entende; o circo ficara pequeno para ele. Acontece que o coitado tinha vivido toda a vida em circos, não conhecia nada além de picadeiros, lonas e olhares curiosos. Quando o nosso circo se deslocava de uma cidade a outra, o homem-morsa viajava numa gaiola, para evitar que urinasse no estofamento da caminhonete. Ele, como todos os outros homens-morsa, tinha a bexiga frouxa. Isso eu aprendi numa enciclopédia, apesar de não saber da existência de outros da mesma espécie. Durante os anos que conosco conviveu, ele crescera muito, de forma descomunal, mas ainda viajava na mesma gaiola. Era desconfortável, mas o homem-morsa não era dado a reclamações. Mesmo quando o diretor do circo gritava, na frente de todos, depois de uma função malfadada, isto é, sem a esperada venda de ingressos, que ele era o culpado, o mundo tinha perdido o interesse nos homens-morsa. Lembro-me como se fosse hoje, o seu dono, aliás, o dono de todos nós, pronunciou “o mundo”, escandindo as sílabas, salivando, como se o nosso fosse um circo internacional. Nem leão tínhamos, apesar de sermos quase todos atrações exóticas. Eu mesma era apresentada como Semolina Sardinha, a apanhadora de caranguejos que tinha escalado a torre Eiffel em homenagem ao presidente Miterrand. E se alguém me perguntasse o nome do homem-morsa, juro que não saberia dizer. Para todos nós, era somente o homem-morsa. Morsa, para os íntimos. Desde que comecei a trabalhar no circo, há quase 10 anos, ele já fazia parte da trupe. Viera de um circo mais antigo, tradicional, que se incendiara. O proprietário teve que se desfazer de várias atrações, não para pagar os estragos do fogo, mas quitar dívidas de jogo. A nós, coube o homem-morsa, o qual julgamos um negócio de ocasião. Com o tempo, o homem-morsa mostrou-se um estorvo: não parava de crescer, segundo o dono do circo. Nós, os outros artistas, o víamos definhar dia após dia. Ou a piedade fazia que assim o víssemos? Não sei dizer, a idade está pregando inúmeras peças à minha memória.
Tão antigo era o homem-morsa, que dificilmente se poderia precisar a sua idade, era tão velho quanto a dor que sentíamos ao vê-lo se arrastar todas as noites para dentro da minúscula gaiola. A dor de um homem-morsa só é possível quando finalmente se compreende que eu sou você, e que a sua dor também é a minha dor, mas que o outro não entenderá o que se está tentando explicar, muito embora nós também não compreendamos plenamente a dor. Quando o homem-morsa se arrastava conformado para dentro da gaiola, sem querer eu batia palmas. Todos batiam palmas. Como alguém podia ter chegado a tal ponto de submissão? Afinal, ele ainda era um homem-morsa.
Uma madrugada, sem conseguir pregar os olhos, fui até a sua gaiola. A bem da verdade, eu, Semolina Sardinha, devo esclarecer que me sentia atraída sexualmente pelo homem-morsa. Encontrei-o encolhido, em posição fetal, mas acordado. O cheiro de urina era insuportável.
- Eu nunca durmo. Eu só queria poder fechar os olhos e sonhar com uma tigela de sucrilhos... – choramingou ele, sem erguer a cabeça do chão enferrujado.
Saí dali apressada, era um espetáculo deprimente, mesmo para estômagos fortes, como o meu. Não verti uma única lágrima, a vida me fizera dura, quase insensível.
No dia seguinte, uma terça-feira, à espera do caminhão que levaria as nossas tralhas a uma outra cidade, o dono do circo anunciou que o homem-morsa estava dando gastos excessivos ao circo, teria de deixá-lo na estrada, entregue à própria sorte. Quem sabe, talvez fosse adotado pela alma caridosa de um lavrador. O pobre homem-morsa, que a tudo observava, sem uma palavra, murmurou:
- Grude, grude, jujuba...
Todos nós olhamos imediatamente em sua direção, como numa coreografia há muito ensaiada.
- Como ousas, aberração? – gritou o dono do circo.
- Grude, grude, jujuba! – repetiu.
- Veja o que diz, parece um edgarpoe!
- Só falta voar, tal e qual um porquinho da Índia! – completou a sacerdotisa pornográfica, coçando a genitália.
- Grude, grude, jujuba...
- Ele cresce a olhos vistos, está se transformando em um ovo cósmico! – apontou o pinguim budista.
- Grude, grude, jujuba! Grude, grude, jujuba!
- Não diga mais isso! – disse entredentes o dono do circo.
- Grude, grude, jujuba?!
Foi a gota d’água. O dono do circo disparou um tiro de sal na cara do homem-morsa. E isso, todos sabem, é fatal às lesmas, e aos homens-morsa também. Imediatamente, uma remela amarela começou a escorrer do seu olho esquerdo. Do direito, brotava algo entre rosa e vermelho, parecido com sangue, somente mais denso. Dos cantos da boca, uma gosma verde. E do ânus, uma substância azul celeste. Nós, os artistas, com medo, esboçamos a única reação possível: tapar a boca e o nariz com as mãos. Ficamos ali, estáticos, assistindo o terrível espetáculo: um homem-morsa materializando-se em balas coloridas, açucaradas.
Das redondezas, ao ouvirem o estampido da arma, as crianças acorreram ao local. Ao verem o monte de jujubas, brilhantes, coloridas, açucaradas, começaram a comer, como se nunca as houvessem experimentado. A um sinal do dono do circo, começaram a encher as camisetas de jujubas brilhantes, coloridas, açucaradas. Mães chegaram com sacolas de supermercado. Eu vomitei, enojada. Nenhum de nós disse nada; os verdadeiros artistas sabem se calar quando é conveniente.