quinta-feira, 1 de abril de 2010

O HOMEM-MORSA


por Edson Negromonte, a partir da canção "I Am the Walrus", de Lennon e McCartney

O diabo é que o homem-morsa tinha de ser aposentado, se é que você me entende; o circo ficara pequeno para ele. Acontece que o coitado tinha vivido toda a vida em circos, não conhecia nada além de picadeiros, lonas e olhares curiosos. Quando o nosso circo se deslocava de uma cidade a outra, o homem-morsa viajava numa gaiola, para evitar que urinasse no estofamento da caminhonete. Ele, como todos os outros homens-morsa, tinha a bexiga frouxa. Isso eu aprendi numa enciclopédia, apesar de não saber da existência de outros da mesma espécie. Durante os anos que conosco conviveu, ele crescera muito, de forma descomunal, mas ainda viajava na mesma gaiola. Era desconfortável, mas o homem-morsa não era dado a reclamações. Mesmo quando o diretor do circo gritava, na frente de todos, depois de uma função malfadada, isto é, sem a esperada venda de ingressos, que ele era o culpado, o mundo tinha perdido o interesse nos homens-morsa. Lembro-me como se fosse hoje, o seu dono, aliás, o dono de todos nós, pronunciou “o mundo”, escandindo as sílabas, salivando, como se o nosso fosse um circo internacional. Nem leão tínhamos, apesar de sermos quase todos atrações exóticas. Eu mesma era apresentada como Semolina Sardinha, a apanhadora de caranguejos que tinha escalado a torre Eiffel em homenagem ao presidente Miterrand. E se alguém me perguntasse o nome do homem-morsa, juro que não saberia dizer. Para todos nós, era somente o homem-morsa. Morsa, para os íntimos. Desde que comecei a trabalhar no circo, há quase 10 anos, ele já fazia parte da trupe. Viera de um circo mais antigo, tradicional, que se incendiara. O proprietário teve que se desfazer de várias atrações, não para pagar os estragos do fogo, mas quitar dívidas de jogo. A nós, coube o homem-morsa, o qual julgamos um negócio de ocasião. Com o tempo, o homem-morsa mostrou-se um estorvo: não parava de crescer, segundo o dono do circo. Nós, os outros artistas, o víamos definhar dia após dia. Ou a piedade fazia que assim o víssemos? Não sei dizer, a idade está pregando inúmeras peças à minha memória.
Tão antigo era o homem-morsa, que dificilmente se poderia precisar a sua idade, era tão velho quanto a dor que sentíamos ao vê-lo se arrastar todas as noites para dentro da minúscula gaiola. A dor de um homem-morsa só é possível quando finalmente se compreende que eu sou você, e que a sua dor também é a minha dor, mas que o outro não entenderá o que se está tentando explicar, muito embora nós também não compreendamos plenamente a dor. Quando o homem-morsa se arrastava conformado para dentro da gaiola, sem querer eu batia palmas. Todos batiam palmas. Como alguém podia ter chegado a tal ponto de submissão? Afinal, ele ainda era um homem-morsa.
Uma madrugada, sem conseguir pregar os olhos, fui até a sua gaiola. A bem da verdade, eu, Semolina Sardinha, devo esclarecer que me sentia atraída sexualmente pelo homem-morsa. Encontrei-o encolhido, em posição fetal, mas acordado. O cheiro de urina era insuportável.
- Eu nunca durmo. Eu só queria poder fechar os olhos e sonhar com uma tigela de sucrilhos... – choramingou ele, sem erguer a cabeça do chão enferrujado.
Saí dali apressada, era um espetáculo deprimente, mesmo para estômagos fortes, como o meu. Não verti uma única lágrima, a vida me fizera dura, quase insensível.
No dia seguinte, uma terça-feira, à espera do caminhão que levaria as nossas tralhas a uma outra cidade, o dono do circo anunciou que o homem-morsa estava dando gastos excessivos ao circo, teria de deixá-lo na estrada, entregue à própria sorte. Quem sabe, talvez fosse adotado pela alma caridosa de um lavrador. O pobre homem-morsa, que a tudo observava, sem uma palavra, murmurou:
- Grude, grude, jujuba...
Todos nós olhamos imediatamente em sua direção, como numa coreografia há muito ensaiada.
- Como ousas, aberração? – gritou o dono do circo.
- Grude, grude, jujuba! – repetiu.
- Veja o que diz, parece um edgarpoe!
- Só falta voar, tal e qual um porquinho da Índia! – completou a sacerdotisa pornográfica, coçando a genitália.
- Grude, grude, jujuba...
- Ele cresce a olhos vistos, está se transformando em um ovo cósmico! – apontou o pinguim budista.
- Grude, grude, jujuba! Grude, grude, jujuba!
- Não diga mais isso! – disse entredentes o dono do circo.
- Grude, grude, jujuba?!
Foi a gota d’água. O dono do circo disparou um tiro de sal na cara do homem-morsa. E isso, todos sabem, é fatal às lesmas, e aos homens-morsa também. Imediatamente, uma remela amarela começou a escorrer do seu olho esquerdo. Do direito, brotava algo entre rosa e vermelho, parecido com sangue, somente mais denso. Dos cantos da boca, uma gosma verde. E do ânus, uma substância azul celeste. Nós, os artistas, com medo, esboçamos a única reação possível: tapar a boca e o nariz com as mãos. Ficamos ali, estáticos, assistindo o terrível espetáculo: um homem-morsa materializando-se em balas coloridas, açucaradas.
Das redondezas, ao ouvirem o estampido da arma, as crianças acorreram ao local. Ao verem o monte de jujubas, brilhantes, coloridas, açucaradas, começaram a comer, como se nunca as houvessem experimentado. A um sinal do dono do circo, começaram a encher as camisetas de jujubas brilhantes, coloridas, açucaradas. Mães chegaram com sacolas de supermercado. Eu vomitei, enojada. Nenhum de nós disse nada; os verdadeiros artistas sabem se calar quando é conveniente.

Um comentário:

  1. Puxa, que legal.É inevitável a lembrança de Freak, e do Homem Elefante. Adoro contos assim.
    Espero ver tudo isso em um livro.

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