quinta-feira, 16 de novembro de 2017

A SUSTENTÁVEL LEVEZA DOS BATRÁQUIOS (reprise)



por Edson Negromonte

Quando menina, ela colecionava sapos. Dava-lhes nomes: Pintado, Bolinha, Tigresa, Néfer, Sapopemba, Dalva, Saponáceo, Rubem, Bufo, Hermeto... Este último fora sugerido pelo pai, enquanto admiravam, num dia de chuva, aquele sapo velho, de costas largas, rugosas, a coaxar sem parar, irreverente, aboletado na varanda da casa, em Visconde de Mauá. O pai incentivava o interesse da menina pelos batráquios, presenteando-a com os mais diversos livros sobre o assunto, de ficção, fábulas, alguns recortes de velhas enciclopédias e até uma obra técnica encontrada num sebo. A menina aproveitava qualquer ocasião, principalmente nas reuniões de família, para conversar sobre os sapos, invariavelmente. Desistira de contar sobre a sua paixão para as amiguinhas da escola; elas torciam o nariz, faziam cara de nojo. Como a menina não era de engolir sapos, aproveitava para encerrar a conversa com chave de ouro, contando-lhes como os meninos americanos brincam de esconder sapos dentro da boca.

Sabia que somente o pai era capaz de compreendê-la. Com ele, assistiu na TV à pajelança, promovida pelos índios Raoni e Sapaim, para curar o naturalista Augusto Ruschi, envenenado por um sapo, da espécie dendrobata. O pai, que se tornara aos poucos um expert no assunto, aproveitou mais essa ocasião para esclarecer a filha: o tal naturalista, desavisado, teria beijado uma sapa venenosa, na boca, em busca da sua princesa encantada. Assim, foi a menina crescendo, colecionando conhecimento sobre a vida desses seres aparentemente repulsivos. Descobriu, levada pelo pai, que a literatura e os homens são useiros e vezeiros em associar os pobres sapinhos, assim como outros bichos, principalmente os gatos, com a magia negra; e que nem mesmo os contos de fada têm muito apreço por eles. E que, não os tendo em boa conta, mostra-os invariavelmente como príncipes que precisam do beijo apaixonado de uma doce princesa para quebrar a maldição lançada por uma bruxa malvada. Em sua santa inocência, ela não entendia por que as princesas não podiam simplesmente casar com sapos.

A mais remota lembrança da menina, em relação aos sapos, estava associada à cadeira alta, o pai contando as mais fabulosas histórias do mundo dos batráquios para fazê-la comer a papinha. A mais apreciada de todas era uma história verídica, dos seus tempos de menino, quando ele mesmo fora transformado num sapo-boi por uma velha feiticeira, que morava na floresta próxima à sua casa. A cada vez que era contada, esta história ia se transformando, se desenvolvendo, burilada, tomando caminhos insuspeitados, aproveitando-se das passagens clássicas de outros contos, tiradas dos livros, e outras, corriqueiras, inspiradas no dia-a-dia. O ponto alto era quando o pai, então menino, retornava dias depois para casa, na forma de um, pode-se dizer, sem licença poética, descomunal sapo-boi. Era sempre assim, quando a menina, na cadeira alta, com a boca cheia, o prato quase vazio, estivesse então com lágrimas nos olhos, o pai, com a voz suave, dava início ao já conhecido desfecho, tantas vezes contado e recontado: de como a sua mãezinha, a doce vovozinha da menina, apiedada da sina do filho, curou-o com benzimento e orações, mais chazinhos de erva-doce pela manhã, losna à tarde e boldo-do-chile à noite, e de como ele prometera, dali para a frente, ser um bom menino, não passar mais nem perto da floresta encantada.

– Ah, mas aquela casinha era toda feita de doces, portas de chocolate, janelas de açúcar cândi e telhados de doce de abóbora, uma tentação para as crianças da região.

A menina enxugava os olhos, com o dorso da mãozinha, a boca cheia, o prato vazio, raspado. O pai, então, arrematava a história, contando-lhe que, graças aos cuidados e simpatias da pobre mãezinha, ele fora aos poucos se curando, voltando ao normal, embora às vezes ainda coaxasse durante o sono e que, ainda hoje, mesmo adulto, a visão de um belo banhado lhe dá certa nostalgia.

Descida da cadeira, a menina rodeia o pai, ergue a camiseta dele, passa levemente o dedinho frio pelas suas costas. Fica, por alguns segundos, intrigada, examinando a ponta do dedinho.

– É, papai, você ainda tem as costas meio verdes.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

NANÁ (reprise)



por Edson Negromonte

Os dias eram então extremamente agradáveis, ensolarados e promissores. Mesmo quando cinzentos e enevoados, sabia-se no íntimo que a iminente chuva torrencial, quase diluvial, traria no bojo a venturosa sensação de que tudo estava por fazer, o mundo carecia de cada minúscula peça da sua gigantesca engrenagem. De um momento para outro, o temporal cessaria e o ar voltaria a exalar o característico odor de rosa-musgosa da Índia, enquanto o Colégio Estadual Valle Porto vomitava, em golfadas, bandos de meninos, os quais só perceberiam muitos anos depois esse perfume oriental grudado à memória afetiva, como a craca ao casco enferrujado dos navios.

Nesses tempos, de lanterna à mão, a Poesia ainda rondava as mentes juvenis à procura de um insuspeitado Dante em busca da inacessível beata Beatriz ou um inesperado Coleridge a sonhar com os cavalos velozes de Kublai Khan ou, mesmo, um destemido Ulisses amarrado ao mastro do navio, disposto a se defrontar com o encantatório canto das sereias. Sem saber, rapazes e moças pertenciam a uma antiga seita, cuja palavra de passe era um profundo suspiro de amor. Se fosse amor não correspondido, ascendia-se imediatamente de grau. A grã-sacerdotisa dessa antiga e venerável ordem mística, presidida por Vênus, vivia pacatamente disfarçada em uma adorável professorinha de Língua Portuguesa, na pequena cidade de eternos portos desativados e as lembranças dos faustosos dias de progresso. Nascida Nazira, era ela conhecida por todos como Naná. Bastava entrar na sala de aula e o ambiente anteriormente fétido das funções logarítmicas transformava-se no suntuoso palácio do rei Chariar; ali, seus discípulos seriam capazes de passar quarenta dias e quarenta noites, a navegar nos eflúvios da voz desta Xerazade, vinda diretamente das Mil e uma Noites. À simples pronúncia de seu singelo apelido, resplandecia a lâmpada de Aladim, abria-se a caverna de Ali Babá e descortinavam-se novos mares a Simbad. Era a filha mais formosa do narigudo e pachorrento turco do armazém.

A quase sempre cruel e inexorável passagem do tempo concedera à então balzaquiana Naná uma beleza madura, surgindo-lhe, é verdade, pequenas rugas aqui e ali, as quais ela não se preocupava em disfarçar, aumentando-lhe ainda mais o encanto natural. De olhos amendoados, nariz levemente aquilino e negros cabelos de ébano, muitos perguntavam-se, entre curiosos e ciumentos, por qual razão ela não se casara, abdicando de filhos e netos, essas pequenas criaturas barulhentas que tornam-se desde o ventre o centro das atenções, medos, apreensões e alegrias dos pais. As velhas fofoqueiras diziam, à boca de siri, que na verdade Naná esquecera de casar, de semelhante era o seu envolvimento com os livros. Cativante, ela devotava tamanha paixão à literatura, principalmente a poesia, que as cuidadosas avós chegavam ao cúmulo de alertar as netas, quando as viam com o nariz enfiado nas curiosidades da “Eu Sei Tudo” ou nas páginas do almanaque do Biotônico Fontoura, que cuidassem de bordar ou brincar para não ficarem para titias, como a filha do turco do armazém.

Todas as vezes que radiante a professorinha abria, de par em par, as janelas do quarto, da antiga casa ao rés do chão, onde sempre vivera com a família, as alcoviteiras de plantão eram unânimes em afirmar que algum vagabundo ocupara, durante a noite toda, o seu leito virginal e que se fora, pé ante pé, antes de o sol raiar. Como todos sabem, essas diligentes cronistas da vida alheia nunca dormem e estão sempre atentas para, a qualquer momento da noite, correr às janelas e, no dia seguinte, darem conta dos acontecimentos aos solertes repórteres de calçada. Assim, a cidade toda ficava sabendo que fortuitamente um poeta de renome, vindo da antiga capital federal, deleitara-se com os atributos de Naná. A maledicência é capaz de engendrar enredos mirabolantes e tornar crível, em cada pequeno detalhe, aquilo que já estávamos propensos a fruir em nossas mentes maldosas, deitadas preguiçosamente na rede da condescendência. Mas, venhamos e convenhamos, Naná falava com tanta paixão e tal intimidade sobre a vida desses homens das Letras, que ela também tem a sua parcela de culpa na falação que corria solta pelas ruas de paralelepípedos da tranquila cidadezinha à beira do mar. Se vivêssemos na Sicília, o lençol manchado do sangue da poética noiva noturna estaria exposto na janela, a cada visita, a cada desvirginamento de Naná, mas, como o fado do Destino nos concedeu termos nascido ao pé da Serra do Mar, curiosos os meninos subiam no muro dos fundos do quintal para admirar, entre risadinhas, as suas roupas íntimas, dependuradas no varal, em meio aos lençóis, camisas e vestidos, dançando ao sabor do vento marítimo.

Segundo as crônicas apócrifas, tantos foram os que se divertiram com as carnes tenras de Naná que seria impossível enumerá-los nas poucas páginas deste curto relato. Talvez, um dia, em obra de maior fôlego, eu mesmo o faça, não obstante o que isso implique em descerrar as pálpebras de um passado ainda vivo e pulsante, o que acarretará por certo reprimendas e ações, tanto dos descendentes da professorinha quanto dos herdeiros de vários bardos de fama, tidos até hoje por respeitáveis. Todos os grandes poetas do país frequentaram-lhe o círculo íntimo, acorrendo em massa aos saraus exclusivos, onde, além da declamação de poemas, redondilhas, sonetos, versos brancos, havia audições de violão, com pungentes modinhas e brejeiros lundus, mais melodiosas serenatas ao piano, instrumento que Naná executava à perfeição, como se um anjo celeste dedilhasse a lira em loas ao Criador. Posso dar disso ciência, pois muitas vezes em minha adolescência quedei-me a ouvi-la, do lado de fora, é claro, sob a janela de sua casa, durante intermináveis noites insones, posto que os moradores de nossa cidade, mesmo os invejosos literatos locais, os ditos poetas de província, não eram jamais admitidos ao restrito salão. Creio que essa é uma das razões do falatório das pessoas sobre a imaculada Naná, as quais chegavam às raias de utilizar a palavra “bacanais” quando se referiam aos saraus. De ora em diante, recuso-me a usar o termo referente às festas de Baco de forma pejorativa, mais para não denegrir a imagem daquela doce mulher do que por mero mal-estar literário. Mas, a bem da verdade, devo deixar aqui registrado quantas vezes sonhei inutilmente ser admitido, não digo nem no salão, mas apenas nos corredores daquele atraente solar, cuja impossibilidade levou-me à prática dos primeiros versos, apaixonados e canhestros... Os outros meninos, meus amigos de infância, à imitação dos adultos, desdenhavam, dizendo que não gostariam mesmo de ser admitidos ao convívio daquela gente que só sabia falar de livros, poesia, de astros e estrelas, enfim, de esqueletos de borboletas.

Eu, de meu particular, fiquei muitas vezes também na calçada em frente, encoberto pela má iluminação das lâmpadas de mercúrio, ou sentado no degrau da farmácia, a reconhecer os convivas, através de fotografias recortadas de jornais e revistas. Sobressaltava-me a importância de cada um e, para meu pasmo, descia dos carros até gente dada como morta pelas enciclopédias. Como são inúteis estas coleções de curiosidades! Uma dada noite, surgiram ante meus olhos incrédulos as díspares figuras de Castro Alves, todo dândi, e Olavo Bilac, em cujo paletó percebi nitidamente os vários buracos das insaciáveis traças parnasianas. Nesta noite, foi servido um vinho tão delicioso que um dos presentes chegou a compará-lo à bebida alquímica servida nas bodas de Canaã. Até hoje, sou capaz de sentir o sabor, mesmo sem tê-lo deveras provado. Apesar de tudo, talvez devido à pouca idade, achei a récita tão cacete que adormeci recostado à porta da farmácia.

Extremamente agradáveis eram as noitadas modernistas, quando então a vestal da poesia, aliás, a professora Naná, acendia todas as lâmpadas do salão, de iluminação feérica. Nos primeiros anos da década de 20, os automóveis amontoavam-se, irregulares, de esquina à esquina da rua XV de Novembro, e o ar sempre tranquilo de nossa cidadezinha enchia-se então de ruídos de máquinas, de perfumes franceses, lança-perfume e um vozerio de sotaque paulistano. Era uma gente muito elegante: o gorducho Oswald e o delicado Mário de Andrade, os quais afoitamente julguei aparentados, por terem o mesmo sobrenome, acompanhados da esfuziante Pagu, que, de um momento para outro, tornava-se taciturna, mais Raul Bopp, Graça Aranha, Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo, e tantos outros, além de um sujeitinho franzino e dentuço que quando não estava recitando um poema gaiato, chamado "Os Sapos", para riso e coaxar de todos os presentes, perseguia as negrinhas da casa. Às vezes, vinha junto com o álacre grupo um jovem desengonçado, a fumar fedorentos charutos, que se aboletava ao piano e tocava algumas peças de inspiração popular, com tratamento erudito, conhecido como Villa-Lobos. Entre todos, uma figura repulsiva atraía a minha atenção: um magricelo chamado Plínio Salgado, a quem muitos se desmanchavam em salamaleques. Anos depois, suas ideias modernistas o levariam a criar, inspirado em Mussolini, um nefasto movimento político, muito bem aclimatado por essas plagas, denominado Integralismo. Sem entrar em demasia no mérito da questão, é necessário esclarecer que o espalhafatoso Oswald de Andrade inspirou-se no Futurismo italiano, liderado por Tomaso Marinetti, poeta de orientação fascista, para criar o nosso Modernismo. Portanto, o fascismo também está na gênese deste movimento. Como as mulheres eram poucas nesses trepidantes saraus, Naná flanava entre os cavalheiros, flutuando feito querubim de porcelana, preocupando-se ora com o cinzeiro cheio de um, ora com o copo vazio de outro, chamando de quando em quando uma das criadas para limpar a escarradeira de louça. À anfitriã, bastavam-lhe os fiapos da animada conversa entre homens tão inteligentes.

Uma das personalidades que mais causou comoção ao menino que eu era foi o mineiro Carlos Drummond, sempre tão sóbrio, tão avesso a panelinhas e dignando-se a viajar do Rio de Janeiro a Antonina, num carro de aluguel para visitar, às altas horas, a nossa tão bem relacionada mestra. Ela era realmente o nosso, meu, orgulho; a pequena Naná recebia as figuras mais ilustres das letras pátrias, mas ninguém me parecera tão ou mais importante que o poeta itabirano. Li recentemente a exegese de um desses falastrões que pululam nas redações dos jornais sobre o poema "No Meio do Caminho", onde o repórter dá conta de que a tal "pedra no meio do caminho" era uma mulher misteriosa, um dos muitos amores de Drummond. Chega o autor do texto a perceber um nome de mulher pictografado em meio aos versos do dito poema. Sim, pode ser mais uma das falácias desses afoitos escrevinhadores, mas como aprendemos no faroeste "O Homem que Matou o Facínora", quando a lenda torna-se fato, "publique-se a lenda". Portanto, d’ora em diante a nossa Naná fica sendo para sempre a musa inspiradora do soberbo poema.

Apesar do peso inexorável da idade, ainda lembro-me nitidamente, lá pelo início dos anos 50, da chegada de três jovens desconhecidos; percebia-se pelos trejeitos que eram poetas. Não eram almofadinhas nem afetados, mas em tudo tinham ares de quem vive no mundo da lua, às voltas com as armadilhas do verso. Quem desavisado por eles passasse, diria que eram advogados ou publicitários, melhor, arquitetos ou engenheiros, pois utilizavam-se com frequência de termos como concretude, plano-piloto... Eram os irmãos Augusto e Haroldo, mais o amigo Décio. Vinham respeitosos pedir a bênção de Naná para a recém-criada seita da Poesia Concreta. Suprema glória! Geração após geração, era à grã-sacerdotisa que os verdadeiros artistas da Nação, aqueles que dão identidade a um povo, vinham pedir o nihil obstat. Conforme os odores etílicos exalados daquele ambiente encantado, sabia-se a bebida oferecida: vinho, para os românticos, ou absinto, para os malditos. Algumas vezes, tomava-se uísque on the rocks, quando eram poetas com inclinações musicais que a visitavam, principalmente Vinícius de Moraes e seu tímido parceiro Antonio Carlos, conhecido mais tarde como Tom Jobim, mas os concretistas, avessos ao álcool, esbaldavam-se mesmo com as garrafinhas de Coca-Cola, adivinhando poesias até no corriqueiro logotipo. Com o advento da geração mimeógrafo, na década de 70, a poesia esvaziou-se e Naná fechou as portas, deixou de receber os pretendentes à sublime arte poética. Nem mesmo o vate Paulo Leminski teve acesso à morada.

Ninguém nunca soube, mas humildemente Naná também era dada à arte de versejar; moderna na alma, romântica no coração e terrível na tradição. Nada alardeava, consciente da própria efemeridade, da pequenez do ser humano e, consequentemente, da sua infinita grandeza. Em folhas de cadernos escolares, pautadas, margens vermelhas, arrancadas, revisando a lápis preto, caneta esferográfica, rabiscos em profusão, verdadeiros palimpsestos, poemas tomando corpo, independentes do corpo frágil e fugaz da poetisa. Palavras transformando-se no corpo palpável de Deus. Em dado momento, que somente ela sabia precisar, mas geralmente no ápice da lua cheia, os cadernos eram embrulhados em grosseiro papel pardo, papel de pão, amarrados fortemente com barbante branco, de algodão, trazidos do armazém do pai, e delicadamente depositados no sótão do casarão onde a família morava, onde Naná nascera, onde ela sempre vivera. Inumeráveis volumes; uma Emily Dickinson dos trópicos entregando a cria aos ratos, às baratas, ao cupim... até que o tempo, o sol, a chuva, novamente o indefectível sol, a umidade, sombra, mofo, o bolor, viessem purificá-la, transubstanciando a solitária alma feminina em dolorosas lágrimas que hoje vêm a ser as brilhantes estrelas dos céus de Antonina, e que vem a ser o céu de todas as pequenas cidades do mundo, reafirmando com precisão a crença tolstoiana de que só é universal aquele que pinta a própria aldeia, o que tange independente de tudo e de todos as cordas do alaúde do coração, do fígado, das vísceras, das entranhas.

O casarão dos Khalil não existe mais; há hoje no local as ruínas enegrecidas de um passado que insiste em murmurar palavras ininteligíveis quando o vento que sopra do mar transpassa as cavidades oculares das janelas do resistente paredão frontal. Um malfadado dia, um incêndio purgativo levou a mobília, as roupas, os retratos, o assoalho, e toda a família adormecida, inclusive a doce Naná, mas, acima de tudo, o romanceiro de uma vida inteira, embrulhado e resguardado no sótão, com rimas ricas, pobres, inusitadas, a métrica intrinsecamente marinha, de preamares, ritmos de caranguejo, as estrofes das ilhas voadoras, seus intervalos harmônicos e melódicos, a pontuação sombria e ligeira, entre variações de allegri e staccati, vírgulas e travessões, sempre em constante e surpreendente harmonia gramatical com o Universo.