quarta-feira, 16 de março de 2016

A MENINA DA ILHA DE SÃO BRAVO - parte 5



por Edson Negromonte

Eu e ela passeávamos pela cidade, pela mata ao redor, pelos céus de diamante, de mãos dadas, sempre juntos, dedos entrelaçados. Sob a garoa, cantávamos alto. Sob a chuva, bem mais alto. Nas tempestades, gritávamos em uníssono com a trovoada. Daí, então, nos calávamos; eram tempos de perseguição política, gente desaparecendo sem mas nem porquê, casas invadidas à luz do dia. E, mesmo assim cantávamos despreocupados, inocentes, aparentemente indiferentes (a felicidade é a mais subversiva das armas). A amantes irresponsáveis, nada aflige, quase nada lhes pode afligir. E como não ser irresponsável na adolescência?

– Sejam felizes, por favor, sejam felizes! – pedia, suplicava, implorava o sol às folhas da relva.

Ela era a minha parceira, cúmplice, amiga, era ao mesmo tempo pai, mãe, irmã. Decidimos que voltaríamos à ilha, lecionar para os filhos dos pescadores, numa escola que construiríamos com as próprias mãos, o suor misturado à massa. A paga do nosso trabalho viria em peixe, arroz, farinha, banana. Não precisávamos mais! As famílias, assustadas com a súbita resolução, uniram-se para nos dissuadir da brincadeira que estávamos levando demais a sério.

Naquela manhã, acordei e fui à sua casa, como de costume. A sua mãe e os irmãos olharam-me apreensivos e deram a entender, em meias-palavras, que ela tinha fugido. Eu não quis acreditar, procurei em todos os cômodos da casa, como se fosse uma brincadeira, uma brincadeira de mau gosto, até que um choro convulsivo acabou por tomar conta da minha alma e, finalmente, do meu corpo. Fôra abandonado! Disseram-me que ela tinha se ido, escondida no bagageiro de uma caminhonete. Como eu poderia viver sem a razão da minha existência? Na terra, são poucos os privilegiados que privam da convivência com um anjo, mais eu quis mais do que me fora oferecido e o Céu achou por bem tomá-la de mim. Levou-a durante a madrugada, enquanto eu dormia, tal e qual um desafortunado Rip Van Winkle. Ela sofria dentro de seu invólucro carnal; pois aos anjos é permitido voar e, como sempre dizia, ela queria voltar a ser somente uma luzinha lilás a saracotear entre as estrelas brilhantes. Passado já um mês, ouvi às minhas costas o familiar tilintar dos guizos. Era ela! Abraçou-me. Nesse momento exato, senti que o anjo tinha horrivelmente se transformado em um ser comum, de carne, sangue e ossos. Não retribuí, não pude retribuir o abraço; eu era feito da argila que, um dia, transformou-se também em carne, sangue e ossos. Ali, justamente ali nos separamos para sempre, embora eu soubesse, através de conhecidos, de quase todos os seus passos, que se mudara para a capital, casara, engravidara, que cantava numa banda de rock, descasara, que tinha uma escola de música... até que a vida, veloz como sempre, foi empurrando-me aos trambolhões em outras direções, afastando-me para sempre da sua presença.

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