terça-feira, 19 de outubro de 2010
O TAPETE
texto de Edson Negromonte
foto de Luiz Henrique Ribeiro da Fonseca
e como varreria tudo para baixo do tapete se nem tapete eu tenho? Houve um tempo que acreditei que a poeira vinha dos desertos, que o pó depositado nos cantos da casa avoenga, ora avultante e arenosa, era apenas resquício, resíduo de um deserto particular, interior, intransferível, destinado. Isso, ah, isso foi há muitos, muitos anos atrás quando eu ainda acreditava em tuaregues à espreita, acampados no quintal das gordas goiabas vermelhas, vermes maduros, tempo em que o povo do deserto, montado em grandes, enormes, gigantescos camelos amarelos, assaltava os meus olhos através da tela estelar do Cine Ópera, escondido na avenida central de uma minúscula cidade à beira do mar. Um dia, o povo do deserto, de salteadores, de assalto, seccionou-me os olhinegros. Na mesma sessão, a decisiva sessão de cinema, o povo do deserto desapareceu entre as nuanças do nunca mais. Aos poucos, capítulo a capítulo, a miraculosa luz do sol foi devolvendo-me a visão, uma visão a mim estranha, estrangeira, à qual eu não estava acostumado, que não me pertencia, mas que tornou-se minha, à qual ainda não me acostumei completamente, embora me permita ver as gravuras do povo do deserto, muito embora eu não o reconheça nas gravuras falseadas de um povo nômade e arisco que não mais existe, se é que um dia existiu, desde que levou os meus olhos: o prêmio de uma cegueira cinéfila, cultivada. Dias quentes, inclementes, noites intransigentes, não pude mais ver, sequer perceber por trás do diáfano véu das dançarinas, sentindo somente o odor terrível das cabras do povo do deserto. Hoje, a visão recuperada, não a anterior, mas a adquirida, o que resta de tudo o que intuí é o sentimento da lâmina aguda a cortar a córnea, da lâmina gélida, o aço da cimitarra a cortar a córnea. O que me consola é a consciência de que um menino cego, da mesma idade que eu, a mesma idade que eu tinha àquela época, também abandonado pelos deuses, dará com os meus olhos num dos muitos cantos empoeirados do antigo Cine Ópera, o qual atende agora pelo pomposo nome de Theatro Municipal. Como eu poderia varrer isso tudo para baixo de um, mesmo que fictício, tapete?
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Parabén Negromonte, vc faz falta em Antonina, as vezes não sabemos acolher pessoas talentosas como vc. um grande abraço
ResponderExcluirPorra, Edson, não vi este maravilhoso texto sobre o nosso querido cine ópera.
ResponderExcluirabraços