quinta-feira, 24 de junho de 2010

A BOLA DE CRISTAL

por Edson Negromonte

Entrar era transpor umbrais secretos, há muito esquecidos dentro de si mesma. Talvez umbrais seja a palavra mais apropriada, com tudo o que ela carrega de mistérios iniciáticos. Assim mesmo, no plural, pois o primeiro umbral já traz dentro de si os umbrais seguintes, o segundo, o terceiro, o décimo segundo, quiçá o décimo terceiro, o qual atinge-se somente psiquicamente, a primeira ponta do quinto triângulo. A casa cheirava ao mofo que as casas fechadas insistem em exalar depois de abertas, protegem-se assim as velhas moradas dos olhos do vulgo; ao iniciado, como prêmio, os tesouros arcanos da pirâmide interior. Tateante, Berenice atravessou o longo corredor estreito, o assoalho de madeira rangendo a cada passo, a máscara da escuridão vendando-lhe os olhos. Na ampla câmara, ainda às cegas, intuitivamente sabia em que gaveta repousavam as velas. A caixa de fósforos, sobre a grande távola, à direita. À luz bruxuleante da vela, ela olhou ao redor e tudo estava no devido lugar: o avental, os castiçais, a toalha, bordada em ponto-cruz, o calendário do Sagrado Coração de Jesus, assinalado em 25 de março, o prato por lavar da última refeição da avó. Nas paredes, sombras dançavam como num teatro de silhuetas. De repente, Berenice percebeu um leve perfume de alfazema: ela, ainda menina, saindo do banho matinal. Dirigiu-se então à sala de estar, relanceando os pequenos olhos negros pelos móveis há tanto tempo intocados. Sobre o altar da cristaleira, os parentes emoldurados a observavam; tio Altamiro sempre sorridente. Não o conhecera, mas ele sempre tivera para ela um sorriso condescendente. Contavam-se as mais intrigantes histórias sobre ele, de como lutara na Guerra do Contestado, da noiva perdida num lance de dados, da tentativa de suicídio, “um tiro de garrucha no peito”, dos versos publicados no Correio do Norte, a boêmia, o encontro com o Cisne Negro: “um poeta de verdade, mas hedonista que nem ele”, a indefectível tuberculose, o sanatório, a morte prosaica aos 29 anos, após ser mordido por um cão raivoso. Apesar da vida aventureira, ele, o hieracocéfalo, também ficara estagnado, o sorriso beatífico sobre a cristaleira, como todos os outros nigromantes da família. Carinhosamente, Berenice limpou na saia cinza de lã a poeira do retrato, apertou-o contra a blusa, de encontro aos seios o vidro frio, quando seus olhos escorregaram para a pequena bola de cristal sobre a mesinha de canto, ao lado da namoradeira. Por quantas vezes a avó a balançara para que a menina se divertisse com a neve, os minúsculos flocos brancos descendo sobre o telhado vermelho? Para ela, tio Altamiro sempre morara dentro da bola, só os poetas mereciam viver assim, numa casa de neve eterna, a escrever versos nostálgicos sobre o sol das terras distantes, às quais ele jamais iria. Em que escaninho da casa tio Altamiro guardara as cartas de navegação?

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