sábado, 31 de julho de 2010

AS PRISÕES


por Edson Negromonte

Alfred Hitchcock, o mestre do suspense, era traumatizado com as grades, explorando isso em seus filmes; o pai o mandara ainda menino, de pijama, à delegacia, com um bilhete, solicitando ao delegado que prendesse a criança. Tornou-se essa a mais longa e interminável noite do futuro cineasta. Também me sinto apreensivo todas as vezes em que sou obrigado a passar em frente a uma delegacia. Descer do metrô na Estação Carandiru, quando ali perto se encontrava ainda em plena efervescência o presídio, era para mim motivo de muita apreensão. Eu olhava para os lados, evitando os policiais fardados que, por desventura, encontrasse pelo caminho. Para a minha consciência culpada, apesar de há muito não fazer nada de errado, os homens da lei podiam plantar, ao bel-prazer, uma prova qualquer em nossos bolsos, como a bagana de um baseado que eles mesmos fumaram, certo de que mesmo um trêmulo sim pode soar aos seus treinados ouvidos musicais como um evidente desacato. Qualquer um que, à minha frente, surge fardado é motivo de desconfiança e, é claro, imediata preocupação, podendo a qualquer momento e sob qualquer alegação me deter. Sempre tive certeza disso: sou culpado até que se prove o contrário. E provar a inocência implica um processo tão moroso que não vale a pena porque eu já estaria morto quando se desse o veredicto. Assim, indistintamente, eu suspeito tanto de soldados quanto de cobradores de ônibus, com seus denunciadores uniformes. Sei que, com a idade, estou melhorando; os guardinhas mirins já não me metem tanto medo. Inclusive, com o passar dos anos e a sapiência da idade, aprendi também a detectar o policial civil, essa gente que surge disfarçada de cidadão comum: todos eles escondem os miúdos e acinzentados olhos de rato por detrás das lentes verdes dos indefectíveis óculos ray-ban.
A primeira vez em que fui preso, eu não tinha mais de quinze anos. Numa noite de sábado, fui convidado pelos zome a atravessar a rua, para uma palestra amigável com o representante da lei, o famigerado Ganso.
– O delegado quer falar com você... – segredaram-me dois meganhas.
– Ele quer falar comigo, por bem ou por mal?
– O delegado quer falar com você! – instaram.
– Ele quer falar por bem ou por mal? Porque estamos num país democrático, e se for por mal...
Incentivado pelo riso dos circunstantes, tentei dar continuidade ao meu improvisado discurso libertário, quando fui abruptamente interrompido pela súbita visão de dois ameaçadores e negros cassetetes de borracha. Que democracia era aquela à qual eu me referia? Agarrado pelos braços, fui diplomaticamente levado ao encontro do tal delegado, que se encontrava postado na esquina em frente, à minha espera, com as mãos às costas e a barriga inflada. Agarravam-se os dois praças tão denodadamente às carnes dos meus braços, sob a jaqueta Lee, erguendo-me do chão, que, movido pela dor, com um repuxão do braço direito,tentei me libertar daquelas tenazes. Então, no meio da rua, o soldado Belfare desferiu uma violenta cacetada em meu braço esquerdo. Mais calmo, ou melhor, acalmado, topei com os olhos fuzilantes do delegado, justamente quando o Cine Ópera abria as portas e despejava a multidão que estivera assistindo à última sessão. Curiosas, as pessoas foram se aglomerando para ver o improvisado espetáculo de um adolescente acuado pelas forças que supostamente deviam manter a ordem. Instintivamente, aproveitei para repetir, em alto e bom som, para que todos ouvissem, como oportunas testemunhas para uma espécie de salvo-conduto:
– Você quer falar comigo por bem ou por mal?
Evidente que não obtive resposta, mas assim fazendo evitei outra cacetada.
– Para a cadeia! – ordenou o barrigudo Ganso.
Ladeado pelos dois soldados, delegado à frente, seguimos o chefe pela Rua Dr. Carlos Gomes da Costa, dobrando à esquerda, na esquina da Igreja de São Benedito, entrando na Vicente Machado, para chegarmos finalmente à casa de detenção. No trajeto, retomei, agora aos gritos, o interrompido discurso, acrescentando um bordão desafiador, porque verdadeiro, mas ao mesmo tempo suicida, incentivado pelos aplausos da multidão que nos seguia e pelas janelas que se abriam à nossa passagem. Por uma questão de segurança, eu precisava tornar ainda mais pública a minha indevida prisão:
– Vocês são mesmo muito valentes! Só prendem bêbado, menor e mulher de zona!
Palmas.
Gritos e apupos.
Não há melhor combustível para o motor juvenil que o reconhecimento dos amigos, em primeiro lugar, depois os conhecidos e, por último, os curiosos. Agora, excitado, eu berrava:
– Vocês são mesmo muito valentes! Só prendem bêbado, menor e mulher de zona!
Mais palmas. Como dizia o Chacrinha: uma salva de palmas pra ele, que ele merece! Abriam-se janelas, olhos sonolentos e vermelhos espreitavam do escuro dos lares, tentando entender o que acontecia na noite sempre pacata e modorrenta da pequena cidade. A plateia, aumentando sensivelmente, obrigava-me a melhorar o discurso, tornando-o ainda mais contundente:
– Os valentões... só prendem menor, torrado e... puta!
Aí, então, o cortejo, que já tinha virado uma procissão de pândegos, sem andor, acompanhando um santo do pau oco, em coro, endossava:
– É isso aí, só de menor, torrado e puta!
Na delegacia, fui conduzido por um corredor escuro e fétido, onde minha imaginação fértil descobria, nas paredes, manchas de tortura, sangue e fezes. Após um tempo que me pareceu interminável, veio um soldado pedindo que eu fizesse o favor de acompanhá-lo. Nossa, quanta gentileza! Ao entrar na sala do delegado, lá encontrei meu pai. Tirado da cama, com cara de enfezado, sob o pijama ele deixava transparecer propositadamente a intimidadora coronha de um 38. O delegado, evitando me olhar, alegava que eu fora detido porque estava fazendo arruaça em frente ao cinema, após as dez horas da noite. Irritado, sem medir o tamanho da imprudência, dei de dedo na cara do homem, chamando-o de mentiroso. Meu pai pediu que me retirassem da sala. Sentei-me então solitário numa cadeira de fórmica vermelha, na saleta de espera.
Liberado, na porta da delegacia, fui ovacionado por tamanha multidão que se afigurava estar ali concentrada toda a população de Antonina, aglomerada na calçada do lado oposto, nas janelas, nos muros, à espera da minha saída triunfal. Tornei-me assunto das conversas da semana, nos bares, nos lares, na missa, quermesse, barbearias, praças e, gloriosamente, no Mercado Municipal, onde se dizia, à boca pequena, que o delegado era veado e tinha se dado mal na escolha do parceiro da noite. Pouco tempo depois, ele foi transferido para o norte do Paraná, onde morreu assassinado.
A segunda vez em que fui parar numa delegacia ocorreu em Curitiba, durante a comemoração do aniversário de um amigo, num restaurante de Santa Felicidade. Voltávamos em seis para a nossa república, no Edifício São Paulo, sob uma garoa fininha, e evidentemente mais alegres que de costume, devido à excessiva ingestão do dionisíaco vinho que acompanhava os deliciosos pedaços de frango e polenta frita. Exatamente na Rua Cruz Machado, abraçados, eu e Zé Gordo subimos no para-choque traseiro de um velho DKW estacionado. Surgida sabe-se lá de onde, uma veraneio amarela, com placa de Santos, encostou ao nosso lado. Saíram do veículo dois sujeitos truculentos, pedindo-nos documentos. Então, Xixo, lutador de ai-ki-dô e namorado de minha irmã, retrucou:
– Mostre os seus primeiro!
Um dos brucutus exibiu a característica carteira preta, de couro, com distintivo cromado, em tudo idêntica às anunciadas pelo curso por correspondência de detetive particular do Instituto Monitor. Aproveitando-se da distração de Xixo, que, sob a luz difusa do poste, tentava entender o que era aquilo à sua frente, o galalau virou-lhe uma violenta bofetada na cara. Percebendo que estávamos em maus lençóis, fomos rápidos e educadamente esticando as nossas identidades, mas os homens não queriam mais conversa. Estávamos detidos por desacato à autoridade. Fomos amontoados, como sacos de batata, no bagageiro do insuspeitado camburão. No trajeto, os policiais ainda abordaram dois rapazes em atitude suspeita, sob a marquise de uma loja: estavam fumando um baseadinho. Agora, estávamos em oito no bagageiro da Veraneio! Não parece, mas como cabe gente nesses carros da polícia. Ao chegar à Delegacia de Entorpecentes, fomos conduzidos a uma sala ampla, onde havia somente uma pequena mesa de madeira e um beliche, corroído pelos cupins, no qual encontrava-se algemado um batedor de carteiras.
– Todo mundo pelado! – ordenou o policial.
Para o homem civilizado é vergonhoso ficar nu na frente dos outros, ainda mais quando não se conhece a criatura. Mas ficar nu nas noites frias e chuvosas do inverno curitibano vai além da simples humilhação. Vimo-nos, então, como oito grotescos macacos pelados, de minúsculos pintos, tiritando de frio. Ajoelhados, obedecíamos a um círculo imaginário, desenhado no chão úmido, de cimento, pelo dedo indicador do mata-cachorro. Assim permanecemos durante um bom tempo, de braços cruzados, sem podermos sequer descansar sobre os calcanhares, sob os olhares irônicos, tanto dos policiais quanto do larápio, vestido. A porta abriu-se de sopetão, e um dos rapazes foi chamado. Foi-se, pelado, aterrorizado e constrangido. Ficamos olhando para o seu amigo, choroso, quando ouvimos um grito lancinante, vindo das catacumbas, onde homens morriam como porcos, assassinados pela ponta de uma baioneta no coração. Sim, aquela delegacia tinha muitos porões, onde presos mofavam, depois da ração diária de choques elétricos nos testículos. Logo em seguida, o outro rapaz foi também levado. Entreolhamo-nos, os corpos não queriam parar quietos, tremiam apesar do esforço em mantê-los quietos, dignos. Por causa disso, tremiam mais ainda. Já não éramos capazes de olhar uns para os outros. Rezávamos em silêncio.
Então, o nosso grupo começou a ser chamado, de um em um. Cambaio foi o primeiro. Não voltou. Seguiu-o Zé Gordo. Depois, Vostok, Xixo e Carlito. Nenhum deles voltou! Eu fiquei por último. Posso assegurar, sem sombra de exagero, que eu estava realmente apavorado, imaginando as piores atrocidades.
Numa chave de braço, fui conduzido à mesa do delegado, uma escrivaninha de tampo mais baixo que o normal, encimada por uma lâmpada de luz mortiça.
– De mãos abertas em cima da mesa! – gritou o policial. – Mais perto do delegado!
– Quantos você fumou hoje? – perguntou o chefe de polícia, melífero.
Não tive tempo de responder; uma ripada na bunda jogou-me esparramado por cima da mesa, dando uma cabeçada no peito do delegado. Recompus-me ligeiro; ao mesmo tempo, as minhas roupas eram arremessadas na minha cara.
– Se veste e desaparece, vagabundo!
Não precisou pedir duas vezes. Entre contente e dolorido, vesti-me mais rápido que o Flash e, desorientado, saí em busca da porta da rua, quando ouvi chamarem.
– Ei, aqui!
Eram meus companheiros de farra que, do lado de fora, acenavam pressurosos. Ao chegar à rua, nunca me senti tão bem ao levar na cara a golfada de ar gelado que só o bendito inverno curitibano é capaz de proporcionar àqueles que emergem do inferno da incerteza.
Em vez de irmos para casa, resolvemos terminar a noite no Guarda-Chuva, o bar onde o grande músico Pelicano Preto estava se apresentando. Ao chegarmos, ele cantava o seu conhecido hit "Nega, Neguinha". Sentamo-nos à mesa do camarada Bozó, já preocupado com a nossa demora; ele saíra um pouco antes do restaurante, de táxi, combinando nos esperar no bar. Ao ver-nos, os seis, incomodamente sentados de lado, para evitar a dor provocada pela ripada, perguntou intrigado o que acontecera. Suas gargalhadas inundaram o ambiente do Guarda-Chuva. O que sei é que, para evitar a dor (parecia que tínhamos quebrado a bacia), fomos obrigados a dormir de barriga para baixo durante uma semana, enquanto gargalhando Bozó fazia questão de contar a nossa desventura a todos que nos visitavam.
A última vez foi em Campinas, interior de São Paulo. Voltando da faculdade, quase meia-noite, resolvi comer um cachorro-quente e tomar uma Coca-Cola na carrocinha da esquina, a uma quadra de casa. Satisfeito, de barriga cheia, fui abordado por três camburões. Os bichos desceram enfurecidos, já gritando:
– Documento!
Prontamente, estendi a carteira de identidade, porque gato escaldado tem medo até de água benta. Ainda mais quando se está sozinho, numa cidade onde não se conhece ninguém.
– Documento de gente honesta é carteira de trabalho! – berrou o gafonha.
– Eu é que não vou andar com aquele calhamaço no bolso! – respondi, sem refletir e sem obviamente ainda ter aprendido definitivamente a lição: com os homens da lei não se deve retrucar, eles são os representantes de Deus na terra, fazendo e desfazendo das nossas míseras vidas quando bem entendem.
– Leva! – gritou o motorista de uma das viaturas.
– Não, por favor, eu tenho que trabalhar amanhã. Como é que eu vou explicar no banco que fui preso? Por favor!
– Some daqui, filho da puta!
Obedeci prontamente, sem ao menos olhar para trás, com medo de virar estátua de sal. Olha, hoje, pensando melhor, os caras podiam me xingar de tudo naquela hora, mas botar a honra da minha santa mãezinha em questão foi muita falta de consideração.

2 comentários:

  1. Caramba!!Edson, adorei suas memórias de cárcere.
    abraço

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  2. Meu caro amigo, obrigado pelos comentários. Suas palavras são um grande incentivo. Também tenho saudade das nossas conversas à beira do fogo, definido os rumos da Arte. Abração!

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