sábado, 7 de agosto de 2010

TUBE, O PEQUENO NOTÁVEL


por Edson Negromonte
foto de Eduardo Nascimento

Ao saber do falecimento de Tube, em 17 de maio deste ano, através do blog do Jeff Picanço, não pude deixar de sentir que uma parte importante de mim estava se extinguindo também. Sim, sentimental eu sou. Veio-me, daí, a melodia esfarrapada de um tango antigo que o pândego cantava a plenos pulmões nas memoráveis madrugadas capelistas de minha adolescência.

tango, bandoneón, uma guitarra que geme
num ritmo de amor desesperado
um cabaré que fecha suas portas
uma rua de amor e de pecado

Ao chegar a Antonina, no último ano da década de 1960, foi ele o primeiro vagabundo original com o qual tomei contato. De estatura baixa, pernas curtas, franzino, pele morena, olhos verdes faiscantes, sorriso matreiro, Tube inundava os finais de noite com o seu vozeirão, cantando o primeiro tango que eu, roqueiro empedernido, fã dos Rolling Stones, viria a gostar, não tanto pelo ritmo ou letra, mas porque todas as vezes em que, perdido na azáfama da vida, necessitei de um fulcro, foi a essa grata lembrança que eu recorri. Em frente ao Cine Ópera, cinco amigos aproveitavam os últimos dias das férias escolares de final de ano quando uma sombra foi se agigantando lentamente. Ao erguer a cabeça em direção ao dono da sombra, dei de encontro com os olhos mais vivazes e intimadores que eu já tinha visto.
– Não vem de garfo que hoje é dia de sopa! – disse inopinadamente Tube, alcoolizado.
Esta era uma das tiradas prediletas dele, marcante; as máximas de Tube estão por merecer uma antologia, como está ocorrendo com as inscrições do Profeta Gentileza, no Rio de Janeiro, antes que se percam no torvelinho do dia-a-dia. Em outras ocasiões saía-se com “Não vem de escada que o incêndio é no porão” ou “Eu quero é comer o gorduroso” ou “Passarinho que dorme com morcego acorda de cabeça para baixo” ou “Não vou amadurecer banana pra morcego”, entre tantas outras. Entenda-se máxima pela ótica kantiana, ou seja, “princípio escolhido livremente para servir de norma de conduta”.

um guarda que vigia numa esquina
um casal que anda à procura de um hotel
um resto de melodia
um assobio, uma saudade imortal,
Carlos Gardel

Naquela inesquecível noite, no final de fevereiro, a primeira informação que tive sobre Tube é de que ele tinha sido um dos confeiteiros mais conceituados de Santos (além de marítimo, sapateiro, barbeiro, artista de circo etc., mas isso eu vim saber muito tempo depois). Como a grande maioria dos boêmios, a bebida lhe arrebatava as forças e, de uma hora para outra, ele mandava tudo pelos ares e caía de vez na gandaia.

Carlos Gardel,
Buenos Aires cantava no teu canto
Buenos Aires chorava no teu pranto
e vibrava em tua voz,
Carlos Gardel

Este é um dos casos mais notórios do anedotário do pequeno notável, contado e recontado por várias gerações. De madrugada, os companheiros de farra entraram num galinheiro, para afanar uma penosa. Na escuridão, às apalpadelas, escolheram logo a mais robusta e deram no pé, antes que o dono acordasse com a barulheira. Ao chegar em casa, descobriram que tinham roubado um galo mas, além do mais, o galo de briga, de estimação, do Acrísio. Sem pestanejar, ainda bêbados, mataram o campeão e o cozinharam. O que torna o caso hilário é que ainda tiveram o desplante de convidar o dono do galo para saborear o ensopado. Ao saber de tudo, o desespero de Acrísio deu origem a um chorinho, composto por Tube, que ele de vez em quando cantava, somente em ocasiões especiais, e a pedidos insistentes. A letra do chorinho eu não lembro mais, deixo o resgate para alguém de memória melhor, talvez Bozinho, o cronista oficial da cidade.

o teu canto era a batuta de um maestro
que fazia pulsar os corações
na amargura das tuas melodias

De outra feita, aconteceu de Tube desaparecer. Todos se perguntando por onde ele andaria, acabou gerando as mais disparatadas histórias. Algum tempo depois, eis que surge o gaiato, de terno e gravata, cabelo penteado, gomalinado, Bíblia debaixo do braço, olhos mais flamejantes que a espada do Senhor, como se tocado pelo Espírito Santo, recitando versículos do livro sagrado, muito bem colocados e condizentes com os comentários impertinentes de Maneco Diabo e Johnny Saci, dois galhofeiros de marca maior. A vida de pastor evangélico durou pouco, os fiéis acabaram descobrindo que os sermões inflamados de Tube eram feitos sob o efeito do álcool, da pinga que ele guardava no armarinho do altar. Assim, Tube viu-se forçado a retornar à convivência com os pecadores, seus semelhantes.

Carlos Gardel,
se cantavas a tragédia das perdidas
compreendendo suas vidas
perdoavas seu papel

Depois de mudar de Antonina, nunca deixei de visitar a cidade. Em uma dessas idas, perto das eleições municipais, fui presenteado com um “santinho” de Tube, o camarada era candidato a vereador. Pena que tenha perdido, o povo antoninense não teve sensibilidade suficiente para eleger um igual. De outra vez deparei com um quadro de Tube, e eu sequer supunha que ele tivesse aptidão para as artes plásticas: sobre uma prancha retangular de madeira tosca, ele colara várias cabeças de bonecas, envelhecidas, escurecidas, enfileiradas e rebocadas de tinta. Orgulhoso, o amigo Heráclito o exibia como um troféu. E eu, apressadamente, num átimo, o batizei de “O Encolhedor de Cabeças”, título que remetia ao meu recente interesse. A obra era, no meu entender afoito, de vanguarda, num procedimento muito próximo ao de Farnese de Andrade. Mais tarde, o associei às cabeças de chimpanzé de Júlio Lerner. E, indo mais longe, enquanto Artur Bispo do Rosário bordava a capa para a ascensão aos céus, também místico, Tube se travestia, no carnaval, de Caboclo Samambaia. Será que Tube sabia de tudo isso? Certamente não. Assim como Bispo do Rosário, ele era tão somente um homem do povo que sentia necessidade de se expressar através da arte autêntica, bruta, sem teorias, arte pela arte, ponte com a divindade.

por isso, enquanto houver um tango triste
um otário, um cabaré, uma guitarra
tu viverás também,
Carlos Gardel

Ao me mudar de volta para a pequena cidade, tive a oportunidade de ver, no Mercado Municipal, uma exposição de telas primitivistas de Tube, com barcos, trens, árvores, casinhas, muito distantes de “O Encolhedor de Cabeças”, nas quais o artista estava inteiro, íntegro, consciente de que a ingenuidade dos seus quadros é o que atraía os compradores. E por que não fazer o jogo do mercado? Estarei delirando, vendo tomada em focinho de porco? O que sei é que Tube era sábio o suficiente para pintar o que lhe pediam, desde que rendesse um troco, é claro. Na ocasião, alguém me contou que ele, já idoso, estava morando numa ilha próxima, recluso, aparecendo raras vezes para divertir os amigos. Muitas vezes pensei em ir vê-lo, mas acabei me mudando sem ter feito a visita.
Em tempo, o tango que perpassa este texto é uma composição de Herivelto Martins e David Nasser, gravado para sempre em minha memória na voz de Jobel Soares de Freitas, o nome de batismo de Tube, um dos heróis da minha vida, bem mais duradouro que Brian Jones.

3 comentários:

  1. Edson,
    grande texto sobre nosso querido Tube.
    Um personagem inesquecível de nossa Antonina.
    Seu humor e sensibilidade nos fará muita falta
    Parabéns,
    grande abraço

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  2. Legal, Luiz! Espero que os leitores do seu blog curtam também.
    Abração!

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