terça-feira, 21 de abril de 2015

EM BUSCA DO HOMEM INVISÍVEL


Edson Negromonte

Uma das mais saborosas e intrigantes histórias da minha família é a que envolve um tio-bisavô, que no longínquo ano de 1898 viajou para o vilarejo de Port Stowe, na Inglaterra, em companhia de Mr. Herbert George. Mr. Herbert o convenceu a acompanhá-lo, o que não foi muito difícil, já que meu tio era um desocupado. Assim, os dois partiram em busca dos cadernos de anotações do Dr. Hawley Griffin, um cientista (físico ou químico, não sei precisar) que morrera recentemente, questão de ano, ano e meio, e estava envolvido com experiências de invisibilidade, um tema em voga na época, basta consultar os jornais e revistas científicas de então.

O opúsculo, com data de um ano antes dessa viagem, dava conta que esses notebooks, em número de três, pudessem estar em poder de um estroina, conhecido em Port Stowe e cercanias como Marvel. Quando embarcou nessa aventura, no cargo de secretário informal do pesquisador inglês, de aproximadamente 30 anos, esse meu tio-bisavô, de nome Octaviano, tinha 19 anos, idade mais que apropriada para o alargamento dos horizontes, idade em que todo jovem deveria seguir em direção ao Velho Mundo ou ao Oriente, para aprimorar a educação.

Mr. Herbert tornara-se amigo da família quando, ao chegar em Hangares, litoral do Paraná, buscou um hotel ou uma pensão, uma hospedaria ou o que fosse, para descansar o corpo cansado da extenuante viagem em lombo de burro, serra abaixo, antes de dar prosseguimento às suas pesquisas sobre os mistérios antropológicos dos sambaquis, os quais abundavam em nosso litoral, principalmente na praia do Pinheirinho. Não havia na época, em Hangares, um local sequer para O pouso dos poucos que se dispunham a enfrentar as escabrosidades de tal aventura, a sinuosa e íngreme descida da capital, no topo da serra, ao litoral. Portanto, Mr. Herbert, levado pela solicitude de tio Octaviano e o bom coração de minha bisavó, teve que se contentar com um quarto em nossa casa, à rua dos Estivadores, o qual se encontrava vago, desde a morte de tia Norinha, irmã mais velha de minha bisavó, dona Honorina. Sequioso das novidades vindas de fora, tio Octaviano tornou-se de imediato amigo do inglês, acompanhando-o para cima e para baixo, em suas pesquisas.

Assim, ao final do ano, fizeram-se ao mar, rumo à Inglaterra, sob as bênçãos e recomendações de minha bisavó. Ao chegarem em Londres, num final de tarde, foi somente o tempo de Mr. Herbert George se desembaraçar de algumas caixas que continham ossos e utensílios do povo primitivo dos sambaquitas, anterior aos indígenas, que encontrara. Ou melhor, saqueara. Deixando-os aos cuidados da Royal Scientific Society, tomaram o trem noturno para Port Stowe. O livrete que alvoroçara o inglês dava conta, nas páginas finais, no epílogo, que o mendigo Thomas Marvel, um dos poucos que se dispunha a falar sobre as descobertas científicas acerca da invisibilidade do Dr. Griffin, tinha aberto uma taverna nos arredores de Port Stowe, chamada The Invisible Man. Esperançoso, ao saber que a língua de Marvel afrouxava fácil, tornando-o todo confidências, quando o álcool atingia o seu coração empedernido, apesar de alertado que o tal Marvel contava histórias fantásticas, invencionices, sobre o Dr. Griffin à simples visão de um misero guinéu, Mr. Herbert não cabia em si de ansiedade. Afinal, ele era um homem da ciência típico do século, disposto a crer em todas as possibilidades da imaginação humana, desde que servissem aos seus propósitos. O livrete sobre o homem invisível, que todos tinham como fantasiosa e espetacular criação literária, era para ele imensurável fonte de pesquisas, mascarado como obra de ficção, trazendo por subtítulo “A grotesque romance”: um artifício para afastar meros especuladores da ciência, os quais só demérito trariam às suas pesquisas.

Com os primeiros clarões da manhã, tio Octaviano e o inglês desciam na aprazível estaçãozinha de ferro do vilarejo. O inglês ergueu os braços acima da cabeça, esticando-os, ficou nas pontas dos pés e bocejou longamente, sendo imitado tim-tim por tim-tim por meu tio. Olhando para os lados, Mr. Herbert apanhou lentamente o cachimbo, encheu-o de fumo. Tirando longas baforadas, indagava silenciosamente que rumo tomar em busca da taverna The Invisible Man e de seu proprietário. Enquanto isso, tio Octaviano, não afeito ao hábito do cachimbo, enrolava um cigarro de palha. Ao acendê-lo, infestou o ar frio da manhã iniciante com o cheiro acre do fumo negro comprado na feira da agora distante Hangares. O rapaz nunca pusera os pés fora dos limites municipais, sequer conhecia a capital do Estado, e agora via-se ali, espreguiçando-se, feito uma raposa velha, na remota Inglaterra, da qual sabia da existência através somente do atlas escolar; tudo lhe parecia, então, muito romântico.

Subitamente, o inglês, como que impulsionado por uma mola invisível, pega a sua mala, fazendo sinal para que meu tio o acompanhasse. Com as malas no guarda-volumes, seguiram em direção às luzes tênues das casas, que começavam a acordar, em busca de informação sobre Thomas Marvel. Bateram à porta da primeira casa, uma mulher, ainda de touca e camisola, segurando um castiçal, olhou-os através da fresta da porta, apertando os olhos.

– Somos viajantes, precisamos de informação...
– Quem é, Mary?
– Viajantes, assim dizem, assim dizem!
– Faça-os entrar e sirva-lhes um bom café, para que não saiam por aí dizendo que o povo de Port Stowe é mal-educado.
– Humpf!

Os dois entraram na casa acanhada, porém aquecida, satisfeitos por não terem de ficar mais tempo expostos ao frio enregelante da manhã. O dono da casa, com um olhar, convidou-os à mesa.

– Buscam informação sobre o quê?
– A taverna The Invisible Man, conhece?
– É só seguir a estrada – disse, fazendo um gesto largo para a esquerda. – É só seguir em frente! O rapazinho aí não é inglês, é? – perguntou curioso o velho.
– Não mesmo, ele é brasileiro...
– Oh, da América do Sul? Vê, eu conheço Geografia... Tem um brasileiro que mora próximo daqui, em Iping, Mr. Monteiro, tradutor...
– Com licença, senhor, é que temos pressa – desculpou-se Mr. Herbert, levantando-se da mesa.

Satisfeitos, Mr. Herbert e tio Octaviano despediram-se, agradecidos, e enveredaram pela estrada de terra. Os primeiros raios de sol trouxeram o prazer da caminhada para os dois viandantes; Mr. Herbert cantarolava uma antiga canção folclórica:

When you hear a sound
That you just can’t place…..

Ao cabo de aproximadamente duas horas, os dois deram com uma construção de dois andares, mal conservada, cuja placa ostentava o desenho de um chapéu e um par de botas, com a inscrição The Invisible Man.

– É aqui! – exclamou tio Octaviano.

A porta encontrava-se entreaberta, mas isso não queria dizer que tivesse sido aberta pela manhã. O mais certo é que não tinha sido fechada à noite. Entraram cautelosamente. A uma mesa próxima ao balcão, avistaram três homens, envolvidos com um carteado que, pelo jeito, atravessara a madrugada. Como se tivessem ensaiado, os três viraram-se ao mesmo tempo em direção aos estrangeiros. Os olhos vermelhos dos jogadores denunciavam, além da falta de sono, os efeitos do álcool. O retrato da rainha Vitória, na parede, observava de esguelha os seus súditos.

– Precisamos de duas camas – foi dizendo Mr. Herbert.
– Sim, sim, cavalheiros, mas antes permitam que eu me apresente: Mr. Marvel, Thomas Marvel, o proprietário. Ao seu dispor. Estes são Mr. Rains e Mr. Whale, amigos da casa. Ali, naquela mesa próxima à janela, Mr. Moore, o barbudo, e Mr. Price. E, nesta mesa, Mr. Sutton; todos habitués da casa. E os senhores são...
– Herbert George e Octaviano de Oliveira Machado.

Apertaram-se as mãos. O dono do estabelecimento era tal e qual o autor do citado opúsculo o descrevia: gordo e atarracado, nariz de batata, cabelos arrepiados e faces coradas, de óculos, as calças seguras por tiras de pano, em vez de suspensórios.

– Nossas malas devem ser trazidas da estação.
– Sim, sim, hoje mesmo estarão aqui. Querem comer algo, beber...
– Preferimos descansar um pouco, antes de qualquer coisa.

No quarto, Mr. Herbert e tio Octaviano, sentindo-se em segurança, começaram a engendrar, em voz baixa, o plano para se apossarem das anotações de Griffin. Confiando nas informações contidas no livrete, já que a descrição de Marvel estava de acordo com a figura que encontraram na hospedaria – um tubérculo equilibrado em dois palitos –, decidiram que deveriam esperar a manhã de domingo, dali a três dias, quando Marvel se encerraria no seu parlour, munido de uma garrafa de gim, diluído em pouca água, “três pingos”, de acordo com as palavras do autor. Na segurança da sua solidão (os parceiros, em respeito aos hábitos “religiosos” do amigo, não o procuravam aos domingos. Somente na segunda, eles voltavam à taverna), Marvel abriria a gaveta do etagér e, dali, tiraria os três livros de Griffin, repletos das anotações acerca da teoria da invisibilidade. E, exatamente assim, aconteceu. Na manhã de domingo, o homenzinho, certo de que os hóspedes estariam fora durante todo o dia, conhecendo os arredores (Mr. Herbert e tio Octaviano, alegando interesse botânico pela vegetação do sul da Inglaterra, saíram cedo, pedindo que Marvel não se preocupasse com o seu almoço, pois retornariam somente ao anoitecer), fechou-se no salão, baixou os estores, sentou-se na poltrona e ficou a folhear os livros. Embevecido com a escrita criptográfica, da qual não conseguia entender patavina, lhufas ou bulhufas, certo de que, um dia, a decifraria. Então, poderia agir livremente, sob o manto invisível da impunidade, dando vazão aos seus instintos bestiais.

Mas tio Octaviano e Mr. Herbert ficaram nas imediações da taverna, à espera do melhor momento para agir, isto é, quando Marvel estivesse totalmente embriagado. Entraram os dois pela porta da cozinha, que cedeu facilmente a um encontrão seco, bem dado, pelo inglês. Ouvindo à porta do parlour, constataram que Marvel dormia, resmungando, sob efeito do gim. Arrombada a porta, tio Octaviano, com um pesado atiçador de lareira, arrebentou a cabeça do senhorio. Um, dois, três, quatro golpes...

– Por Jove, rapaz, chega! Já não é o bastante? O homem chega a estar com os olhos saltados, parece um cão pequinês!
– Desculpe, nunca tinha matado um homem antes... Que o Diabo o leve! Há´de se ter certeza que está bem morto, ora, se há!

O pobre taverneiro morreu como um injusto, gim barato até a tampa. Antes de deixar repentinamente este mundo, balbuciara, em meio à doçura de um sonho: “xis, um doizinho em cima, cruz, traço, B... Meu Deus, que homem! Que cabeça tinha aquele hom”...

Tio Octaviano e Mr. Herbert tomaram rapidamente a direção de Iping, cidade portuária, carregando consigo, além dos livros bolorentos, danificados pela umidade, e as suas malas, uma bolsa com uma pequena fortuna em moedas de ouro e prata que pertenciam ao estalajadeiro, a qual ele guardava junto com os livros.

– Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão! – exclamou tio Octaviano.
What?
– Nada, é um dito popular do Brasil!

Por um atalho que tinham descoberto no dia anterior, evitaram a estrada principal; em casos assim, todo cuidado é pouco. Em Iping, subornaram sem dificuldade o cúpido Monteiro, também despachante aduaneiro, que lhes arranjou embarque em uma chalupa de saída para o porto de Rouen, norte da França, onde seria fácil conseguir um vapor para a América do Sul. Dois meses depois, desceram no pequeno porto de Hangares, mais mortos que vivos, magros, doentes, trazidos por um barco de pescadores. Com o passar dos dias e boa alimentação, os dois foram se recuperando e, logo, saíram da cama, dispostos a desvendar os caracteres criptográficos daqueles livros que tanto trabalho lhes dera. Encerravam-se no antigo quarto de tia Norinha, definitivamente transformado em laboratório, em meio a tubos de ensaio e retortas e almofarizes e ácidos, tomados de empréstimo à Farmácia Internacional.

Mr. Herbert e meu tio-bisavô Octaviano passavam dias e noites encerrados na toxidez do pequeno laboratório, desvendando os segredos do Dr. Griffin, sem se alimentar, apesar das admoestações de minha bisavó Honorina.

– Saco vazio não para de pé!

Passaram-se três dias sem sinal dos dois, sequer abriam a porta para pegar a bandeja com o almoço. No quarto dia, minha bisavó tornou-se compreensivelmente apreensiva. No sexto dia, como espancasse a porta do quarto e nem um único sinal de vivalma se manifestasse, com o auxílio da mais forte das suas vizinhas, a gorda Darci, casada com seu Romão, fizeram saltar os ferrolhos da porta. Lá dentro, ninguém. Nem tio Octaviano, nem Mr. Herbert. A mulher correu às janelas! Lacradas todas duas, pregadas. Ao perceber a gravidade da situação, vó Honorina soltou um grito agudo e desmaiou. Alguns dias depois, voltou a si, trazida ao mundo dos vivos pela inalação de doses cavalares de amoníaco puro, embebidas em um lenço. Nunca mais foi a mesma, tomou-lhe a alma uma tristeza profunda e uma apatia de dar dó àqueles que a tinham conhecido como a encarnação da alegria, da disposição para a vida.

O fato é que esta história é a versão oficial da família, mas o que se escondeu por muito tempo é que tio Octaviano voltara muito estranho, esquisito, dessa viagem ao sul da Inglaterra, afetado por um mal exótico que o competente médico da família não conseguia diagnosticar. Devido aos rogos da irmã, tio Octaviano e Mr. Herbert concordaram em deixar por um tempo a faina do laboratório e participar da ceia de Natal, única data em que toda a família estaria reunida. E vó Honorina fazia questão de ver toda a família reunida, para celebrar o nascimento do menino Jesus. Então, sem mais nem porquê, em meio à comilança, tio Octaviano ergueu-se e pediu por um momento a atenção de todos. Fez-se o silêncio das situações graves, quando até as moscas intuitivamente deixam de zumbir. E tio Octaviano anunciou à família estarrecida que ele e Mr. Herbert estavam se mudando para Paris, onde iriam viver como um casal, marido e mulher. Um sorriso escarninho bailava nos lábios de meu tio-bisavô, satisfeito com o efeito das suas palavras. Neste exato momento, conta-se à boca miúda, a família começou a desmoronar, a degringolar; envergonhados, os irmãos não se visitavam mais, vó Honorina tornou-se monossilábica, parecia que se falasse uma frase completa, por menor que fosse, desataria em choro convulso até se finar. Como era comum no início do século 20, sumiram as fotografias em que tio Octaviano aparecia, mesmo em calças curtas. Assim se procedia com aqueles que desafiavam as convenções, a moral e os bons costumes: extinguiam-no do mundo real, o mundo da fotografia, essa arte capaz de eternizar a fugacidade da vida. (Neste tempo, a nossa devia ser uma família de posses, pois tinha várias fotografias, isso em um tempo em que a arte fotográfica era ainda incipiente. A grande maioria dos habitantes de Hangares esperava para ser fotografada na festa da padroeira, em 15 de agosto). Somente vó Honorina, desafiando a tudo e a todos, foi corajosa o bastante para guardar uma única foto, justamente a que tio Octaviano e Mr. Herbert aparecem felizes, abraçados, e que seguro agora em minhas mãos. Mas a natureza traquinas, sempre aprontando das suas, através de um bichinho, conhecido como silverfish (lepisma saccharina), tratou de roer justamente as caras certamente sorridentes de meu tio-bisavô Octaviano e de Mr. Herbert. Talvez assim, quem sabe, eles tenham conseguido a invisibilidade que tanto buscavam. Pelo menos, em relação aos parentes sim. E esta história, eu a soube pela boca de minha mãe, que a soube através da mãe dela, e que foi por muito tempo um dos esqueletos no armário da tradicional e decadente família Oliveira Machado.

3 comentários:

  1. Edson, a historia é muito boa, mas - essa é a parte mais destacada, a meu ver - você coloca os teus finais sempre um ponto acima, a emoção fica mais próxima dos olhos...lindo de chorar a metáfora da invisibilidade!!

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  2. Obrigado, Jeff, ganhei o dia; suas palavras vêm sempre quando estou questionando a validade daquilo que escrevo.

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  3. meu caro, acho que a gente se pergunta pelo sentido do que estamos fazendo a cada toque no teclado...faz parte!!

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