quinta-feira, 13 de novembro de 2014

ÚLTIMO DEVANEIO DO VELHO BIBLIOTECÁRIO

Edson Negromonte

Chovia ainda, torrencialmente, qual lembrança de um inesquecível dilúvio, bíblico. Ou do cataclismo da Atlântida. Nunca mais o maldito aguaceiro iria parar? Sentiu a pele úmida ao toque dos dedos, pegajosa.

Levantou-se, então, da cadeira o velho bibliotecário. A solidão, sempre a solidão, apesar de conscientemente cultivada, fez com que acendesse um cigarrinho de maconha, apesar das promessas diárias de não botar mais aquela porcaria na boca, de que se desse mais uma puxada... Enfim, era fácil pôr a culpa na solidão, na chuva, no frio. No frio insuportável da solidão. Precisava se aquecer, e como não bebia mais (o cheiro do álcool tornara-se insuportável), fumava. Desbragadamente nos finais de semana e feriados, quando não tinha que ir ao trabalho.

Dirigiu-se à janela e, através do riscado uniforme da chuva, oblíqua, como no poema de Maiakóvski, de viés, viu a pequena igreja, a capela do Bom Jesus do Saivá. Ao lado, colado à igrejinha, o cemitério, em frente à praça. Seu corpo seria também enterrado naquele cemitério? E se o queimassem na praia, num ritual pagão, como fizeram com Shelley? E se o lançassem ao mar, repasto de siris e camarões, enrolado num lençol branco, alvejado especialmente para a ocasião? Nada mais adequado a um homem que passara pela vida como clandestino, quase invisível. Os amigos poderiam jogá-lo no mar. Sempre tão distantes, se preocupariam com a sua ausência? Dariam pela falta? Não, certamente não. Houve um tempo em que ele chegou a ser sociável, apesar de sumir da convivência das ruas durante semanas. Ficava em casa, ouvindo horas a fio o mesmo disco do Black Sabbath, introspectivo. Gê, grande artista, tornou-se professor universitário. Não o vira mais. Sabia dele pelos outros, sempre assoberbado por teses, de mestrado, doutorado, ph.D. Lembrou-se dos outros três camaradas, inseparáveis naquele tempo: Rique, hoje alto funcionário de uma estatal; Maquiné, agente penitenciário. Encontrara os dois; um na roda de samba dos sábados, na Carioca, o outro, em frente ao hotel que herdara dos avós, em eterna reforma. Convidara-os à sua casa, nunca foram, apesar das promessas.

E Nico, que fim levara? Foi, num domingo, procurá-lo; soube que estava morando em Pontal. Encontrou-o imerso no mundo da droga, expulsara a família de casa, trocara portas e janelas por um tanto de crack. Sentiu-se covarde por não tê-lo esmurrado. Traído pelos sentimentos, para não chorar de raiva, o bibliotecário relanceou os olhos pelo cemitério em frente. Quantos túmulos pintara, adolescente, para Finados?

– Não faça barulho que eles estão descansando – advertia o guardião, naqueles dias despreocupados.

E a chuva continuava, intermitente. Olhou para a esquerda e viu que, mesmo assim, apesar do aguaceiro, o movimento do supermercado não cessara. Logo, dali a uma hora, encerrado o expediente, ele iria para casa; tomada de cupins, e o vizinho tinha cimentado a manilha do esgoto, que passava pelo seu terreno. E a água do banho, da privada, as necessidades iam para onde? Uma noite, sonhou que o quintal inteiro vertia merda. Nos fundos da casa, uma mangueira centenária, que nunca dera um fruto sequer, rangia assustadora nas noites de ventania, esfregando os galhos no telhado e esfrangalhando-lhe ainda mais os nervos. No oco das raízes, morava uma insuspeitada família de lagartos. Pensou em dar nomes a eles; o pai, o rei lagarto, seria Morrison, evidentemente. Precisava mudar daquela casa, pressentia algo muito pesado, um crime ocorrido ali, sim, um crime bárbaro, sobre o qual não se falava, sobre o qual todos calavam.

Andava exasperado, estava emagrecendo a olhos vistos. Suas poucas carnes estavam dançando dentro das roupas, trêmulo o braço direito, os cabelos raleando. Às vezes, o telefone tocava, no avançado da noite. Do outro lado, ninguém, nem voz, nem respiração. Com certeza, precisava mudar dali. Lembrou-se, então, de um telefonema que recebera, há muitos anos atrás, em outra cidade, dizendo ser a Anastácia, prima do Antonio, pedindo-lhe que avisasse aos parentes que a Acácia tinha falecido. Ao dar o recado, quando o avô chegou da chácara, ele arregalou os olhos: a prima Anastácia tinha morrido muito tempo antes da tia Acácia.

A chuva amainara, precisava aproveitar a trégua para voltar para casa. Não apareceria ninguém mesmo; nunca aparecia ninguém na biblioteca, podia assim encerrar o expediente na hora que bem entendesse. Esvaziou baldes, torceu panos, recolocou tudo de volta no lugar, sob as goteiras. Ao se erguer repentinamente, deu com os olhos em “Meu Guru e Seu Discípulo”, de Christopher Isherwood. Apesar da vista toldada, sob efeito do fumo, tinha certeza do nome, sabia de cor cada título daquele lugar. Lembrou-se, então, do Mestre, que o despertara para os aspectos místicos da vida, através dele fora admitido na fraternidade dos rosacruzes, como neófito, onde permaneceu durante trinta anos ininterruptos. (Precisava retomar os estudos da cabala). Quantas conversas na penumbra… O mentor na poltrona verde, gasta, puída; o rapaz aprendendo, o homem mais velho falando-lhe de vidas passadas; da noite negra da alma; iniciações psíquicas no Tibete; vida após a morte; da morte; dos irmãos de branco; da vida mística de Jesus; da concepção de Maria, imaculada (se os homens são capazes de fazer o mal através da palavra dita, por que um arcanjo, um ser superior, não pode criar uma outra vida através do verbo?) sobre o príncipe Sidarta, o venerado Buda, envenenado por carne de porco; Ramakrishna; o Bhagavad-Gita; os Vedas; Zoroastro, a eterna luta entre o bem e o mal; Plotino; o Dr. Bucke; Francis Bacon (assegurava-lhe que Shakespeare era o pseudônimo de Bacon, o qual escrevera todas as obras atribuídas ao bardo inglês), et cetera, et cetera, et cetera, como diria o rei do Sião.

– Mas então por que isso tudo não é amplamente divulgado?

– Muito já foi, e os homens de inteligência se recusam a aceitar.

– Por quê?

– Muito da história precisaria ser revista, muitas reputações cairiam por terra, teses universitárias se transformariam em cinzas. A humanidade gosta de viver na mentira, na ilusão, mas acontece que tudo isso faz parte de uma grande engrenagem, necessária. Até a ilusão.

Ante o assombro do adolescente, o Mestre continuou.

– E se eu lhe dissesse que Jesus não foi o único Cristo, que agora, neste exato momento, pode estar nascendo um outro Cristo no Oriente? Ou numa favela do Rio de Janeiro? Ele pode estar andando na Avenida Paulista, de terno e gravata. Ah, porque se ele estivesse vivendo entre os ocidentais não ficaria andando por aí de túnica, chamando a atenção das pessoas, como um ser exótico. Se quisermos, podemos dizer Buda Cristo. E Plotino também o foi, um Cristo. Também Whitman, esse grande poeta.

– …

– E Jesus não foi o único nascido de uma virgem, e não foi o primeiro nem será o último. A lenda diz que Platão também nasceu de uma virgem. E também Leonardo da Vinci. E Jesus não era analfabeto, nem um homem delicado, nem pobre, como querem as igrejas, e ele não morreu na cruz, viveu até os setenta anos, fazia parte da Irmandade Branca, estudou na Índia, Egito, Pérsia… Tudo isso está lhe parecendo extravagante?

– Não, é que…

Na girândola da cabeça, veio-lhe a imagem de um funeral. Poucas pessoas, simples, dia chuvoso em Paranaguá, o Mestre deitado, com as mãos postas, rodeado de flores amarelas, mal cheirosas. Depois de uma dessas doenças passageiras de inverno, ele saíra para dar uma volta, aproveitar o sol da manhã. Empolgou-se com a caminhada, e quando deu por si já era meio-dia; tinha de voltar, não levara chapéu, o buraco na camada de ozônio, maldito buraco na camada de ozônio. Fora longe demais, chegou em casa vomitando sangue. Foi o tempo de chamarem a ambulância, direto para a U.T.I. Desde então, o mundo ficara mais pobre, o mundo do velho bibliotecário ficara definitivamente mais pobre. Gabava-se o velho bibliotecário de que nos últimos anos não se passara um único dia em que não lembrasse do Mestre. E, agora, quantos dias, meses, tinham se passado sem que a amada figura lhe viesse à mente? Quando alguém morre, promete-se que jamais se esquecerá o ente querido. Durante certo tempo, a lembrança vem à tona, sem que se faça esforço, várias vezes durante o dia, à noite, nos sonhos, depois vai se espaçando, dia sim, dia não, esgarçando-se, rareando, menos densa, cada vez mais difusa, até que se tem de fazer esforço, buscando, rebuscando, e, culpado por ainda estar vivo, passa-se a percebê-lo somente como difusa silhueta num teatro de sombras. Num exercício desesperado, o velho bibliotecário começou a desenhar na tela da imaginação o seu instrutor: cabelos negros, alguns fios brancos, grisalho, a pele muito branca, onde o sol não tostara, baixo, quase atarracado, barrigudo, nariz grosso, a voz às vezes estridente, de descendência italiana. De onde os olhos amendoados? O riso franco que, muitas vezes, desembocava numa gargalhada, ante as inocentes perguntas do aprendiz. E a gagueira? Sim, o Mestre era gago e isso, por certo, não fica bem em alguém pressupostamente capaz de controlar os desejos humanos, ou grande parte deles. E a sua profissão, o que fazia ele para viver? O preconceito jamais deixaria supor um ser tão evoluído ganhando a vida como humilde vigia portuário. Além de tudo, o Mestre era banguela, sem um único dente na boca! Acontece que a vida, a vida real, não é um romance de capa e espada. Não há, após essa descrição, sem meias-tintas, alguém menos apropriado para encarnar um avatar. Pode-se encontrar um Mestre numa catedral gótica, assim como numa aparentemente insignificante aldeia indígena, em vias de extinção. Ou trabalhando anônimo, no cais do porto. O velho bibliotecário refez mentalmente os passos pelas ruas estreitas, de paralelepípedos, da velha cidade, lado a lado, mestre e discípulo, num aprendizado informal, as palavras calando fundo no coração do rapaz: a importância do místico sincero entender que não há mal nem bem, que tais conceitos são meras quimeras; que se o brasileiro adquirisse o hábito salutar de se banhar todos os dias, pela manhã, poderíamos sim construir uma nação, a tão sonhada nação brasileira; de que a humanidade está sempre reescrevendo o mesmo livro; sobre os registros acásicos; Swami Vivekananda; Ramacháraca; o plexo solar; o novo cristianismo; sobre os chacras; Madame Blavatsky; Krishna; o Livro dos Mortos, o egípcio e o tibetano…

Fechou a biblioteca, desceu a escada, degraus de madeira maciça, feitos de dormentes de trem, trancando a estação ferroviária. Na plataforma, veio-lhe a cena de um filme, em preto e branco: o cavaleiro jogando xadrez com a morte.

2 comentários:

  1. Sombrio como um dia nublado e com aquele garoinha pegajosa, chuva-de-molhar-bobo...tem momento melhor pra se refletir sobre o nada?
    Muito legal!!

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  2. Imensamente agradecido pelo comentário, Jeff!

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