Edson Negromonte
Minha filha Cárita veio visitar-nos. Ela chegou depois dos irmãos, por ocasião das festas de fim de ano. E, como sempre acontece nessas reuniões familiares, ficamos a lembrar das nossas peripécias, bagunças e aventuras. As lembranças são quase sempre as mesmas, repetem-se, mas não nos cansamos de contar e recontá-las. E sempre rimos muito, como se fosse a primeira vez. Uma das minhas passagens favoritas, que sempre faço questão de contar, prima pela singeleza: as três crianças (o caçula Augusto viria alguns anos depois) já estavam aboletadas dentro do Fusca, prontas para passear, quando, olhando pela janela do carro, Gabriel, o menor de todos, ainda atrapalhado com as palavras, mas já um romântico inveterado, disse:
– Pai, precisamos fazer, um dia, um niquepique.
– Hahaha, é piquininique, Biel! – exclamou Tárik, do alto dos seus sete anos, o catedrático já estava na primeira série escolar!
– Ai, como vocês são burros! É nipinipique – corrigiu-os Cárita. – Não é, pai?! – perguntou-me imediatamente, em busca de confirmação.
A única menina em meio a três meninos (não, eu não sou o terceiro menino. Agora, Augusto já tinha nascido), é claro que ela não poderia jamais tomar gosto por bonecas. As suas brincadeiras eram de revólver de espoleta em punho, trepando em árvores e jogando goiabas verdes nos desavisados que passavam pela rua. De vez em quando, movida por um inesperado sentimento materno, tirava as bonecas, poucas, de baixo da cama, onde dormiam um sono quase eterno, e, em vez de embalá-las para dormir, pintava-lhes os olhos com caneta esferográfica azul, deixando-as parecidas com palhaços de um circo mambembe, algo assim como a pintura facial de Alice Cooper. Logo em seguida, as suas pobres filhas choravam, pedindo para voltar ao agradável limbo de onde tinham sido repentinamente arrancadas. E Cárita (o seu nome foi-me inspirado pela canção "O Caritas", de Cat Stevens, além de ser um anagrama de Tárik) podia assim retornar às brincadeiras com os meninos, às molecagens, às cetras, bolas de gude e aeroplanos improvisados em caixas de papelão e madeira.
Ao mudar para uma chácara, em Mato Dentro, tomamos gosto pela pescaria. Havia, num sítio mais adiante, seguindo três quilômetros adentro por uma convidativa estradinha de terra, um tanque cheio de carás e tilápias, com paturis brincando na margem oposta. Ao voltarmos para casa, depois de limpos, os peixinhos eram saboreados, fritos, acompanhados de arroz branco, farinha de mandioca e limonada bem doce. Íamos todas as vezes por essa estradinha, como os personagens de "O Mágico de Oz", cantarolando bem alto, a plenos pulmões (nossa canção favorita era "Volare", ocasião em que botávamos a boca no mundo, num italiano deveras macarrônico. Sem sabermos a letra, inventávamos mais um dialeto). E voltávamos já no final da tarde; de quando em quando nos calávamos para dar vez aos passarinhos, que piavam incomodados com a nossa cantoria ou, talvez, quem sabe, dela compartilhando, fazendo backing vocals. No pasto ao lado da estrada, Cárita ia, a certa distância, colhendo morangos silvestres, como uma Chapeuzinho Vermelho que comia os doces em vez de levá-los à vovozinha. Enquanto isso, sem que ela percebesse, nós, os homens, os valentões, apertávamos aos poucos o passo. De repente, olhávamos para trás e, de olhos arregalados, gritávamos:
– Ai, meu Deus!
Saíamos correndo, fingindo ver algum abominável ser das trevas ao longe, na curva da estrada. Ela, correndo atrás de nós, sem olhar para trás, horrorizada, chorosa, ameaçava, pedras zunindo passavam rentes às nossas cabeças:
– Eu vou contar pra mãe, quando chegar em casa! Ela vai bater em vocês!
Rimos muito disso tudo naquele tempo e continuamos rindo até hoje, como se tivesse acontecido ontem. Basta nos encontrarmos para contarmos as mesmas velhas e originais histórias. O interessante é que não nos cansamos, as nossas histórias conservam um frescor que algumas pessoas não entendem. Algumas chegam ao desplante de dizer que já as conhecem. Como pode isso, se nós, os protagonistas, ainda não as sabemos? Que saudade das caçadas de rã, com lanternas, sem intenção de comê-las, mas somente observá-las e dar risada dos seus olhinhos esbugalhados, ou do nosso escorregador improvisado, deslizando sobre papelão na grama de um barranco que ia dar na exígua calçada da movimentada e perigosa Avenida Nove de Julho (quanta adrenalina!) ou das lições sobre o medo, quando, à noite, eu pedia para eles irem buscar algum objeto no segundo andar do sobrado onde então morávamos, totalmente às escuras. Desciam os degraus aos trambolhões, aterrorizados pelo grito fantasmagórico ao pé da escada.
– Viram como não existe fantasma? Não existe alma do outro mundo! Foi o pai que gritou! – eu esclarecia e repetia, então, o grito, conseguindo provocar-lhes ainda alguns calafrios. O medo é inerente ao ser humano. É tolo tentar escondê-lo de si mesmo, pois o medo deve ser encarado de frente. O verdadeiro guerreiro é aquele que sabe que tem medo, mas é capaz de enfrentá-lo.
Muitos nos achavam parecidos com a Família Addams, da TV; isso era para nós uma lisonja. Pena que jamais conseguimos ter uma mãozinha tão prestativa. Ou um mordomo que nos perguntasse, com voz cavernosa: – Chamou? O livro para leitura na hora de dormir, a nossa nursery rhyme, era, na grande maioria das vezes, um que dizia mais ou menos assim:
Lá vem vindo o curioso,
Que será que vai achar?
Um tesouro precioso
Ou coisas de arrepiar!
Pena eu não lembrar mais o nome do autor ou autora. À frase final, seguiam-se os gritos dos meninos, podendo aí incluir o pai das crianças, que era nesse momento o mais gritalhão. Essa quadrinha era lida, relida e treslida, lida às avessas, várias vezes, antes de o sono chegar. Que sono repousante o das minhas crianças! Nosso esporte diário era pular no velho colchão de molas da cama de casal, ao som de músicas, como "Artigo 26", de Ednardo, "Pula, Caminha", de Gilberto Gil, e "Rock da Barata", de Jorge Mautner. Pulávamos, saltávamos, dávamos cabeçadas, uns nos outros, na parede, caíamos da cama, chorávamos, ríamos... Nosso presépio tinha as figuras tradicionais da festa cristã, acompanhadas de um monstruoso Godzilla, o qual trazia respeitosamente nas garras o menino Jesus, enquanto os três reis magos, em busca da estrela-guia, eram seguidos por bonequinhos de Batman, Robin, Super-homem, Mulher-Maravilha, Hulk, Snoopy e Chapolim Colorado. As pessoas da família e as visitas ficavam estarrecidas, assegurando-nos que isso era pecado, blasfêmia, que seríamos punidos até a quarta geração. Eu ria muito disso tudo, secundado pelos pirralhos. Sempre fiz questão de ensiná-los que o pecado só existe na cabeça das pessoas. Em que os santos são superiores ao King Kong ou ao monstro da Lagoa Negra, também capazes de se expor à intransigência humana por causa de um amor incompreendido? Assim levávamos a vida, na galhofa. Um dia, inventávamos de criar piranhas no aquário. Noutro, faríamos criação de plantas carnívoras. Isto, depois de assistir a "A Pequena Loja dos Horrores", no nosso videocassete, onde nos deliciávamos também com dráculas, frankensteins, pinóquios, faroestes, seres do espaço exterior e pernalongas, ursinhos puff, fadas azuis e estranhos anõezinhos que dançavam para trás e falavam ao contrário. Grande deus dos cachorros pulguentos, como éramos felizes!
Adoráveis anos de estripulias, peripécias, aventuras e fantasia, quando pude ser mais criança que todos eles juntos, como um irmão mais velho, na encruzilhada entre o folguedo e a educação, ou como um adulto perdido, mas algumas vezes consciente da responsabilidade de orientador das pequeninas almas sob as minhas asas, pai que jogou na lata de lixo todos os manuais, emílios, heloísas, summerhills, sem saber se o que estava fazendo era certo ou errado, bom ou ruim, positivo ou negativo, movido tão somente pela necessidade de acertar onde as gerações anteriores tinham falhado, disposto a inaugurar uma nova e temerária concepção de educação infantil. Então, deixando de divagações, na última noite deste ano, minha filha, já adulta, perguntou-me à queima-roupa, com seus inquiridores olhos verdes, capazes de perscrutar o mais recôndito da minha alma:
– Pai, me responde uma coisa. É mesmo verdade aquela história de Antonina, do homem que no Portinho criava sacis dentro de garrafa?
quinta-feira, 1 de janeiro de 2015
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Adorei!! Revivi tudo isso com a leitura! Que ótima infância tivemos, hein! :)
ResponderExcluirMomentos preciosos,continue escrevendo,bjs.
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