por Edson Negromonte
Dona Nilza, a mãe de João, era tão ou mais incomum que o filho. Manquitola, professora e diretora do Colégio Estadual Valle Porto, tinha dificuldade para trocar as marchas do fusquinha azul, a perna dura a impossibilitava de calcar o pedal da embreagem. Por causa disso, atravessava a cidade em primeira. Na volta para casa, a grande diversão dos alunos do noturno era pegar carona com a professora. No cruzamento da Avenida Matarazzo com a Rua Mestre Adriano, que dá acesso ao centro, Dona Nilza parava o carro e mandava que um deles, quase sempre o do banco da frente, na condição de co-piloto (e como o lugar era disputado!), descesse para ver se ela podia continuar o trajeto. Andava tão devagar que, às vezes, só por farra, saíam dois, três meninos e, enquanto o primeiro embarcava, os outros fingiam correr ao lado, fingindo emparelhar com o carro. De vez em quando, um engraçadinho, na corrida, ultrapassava o fusquinha para embarcar de volta, mais adiante. Tudo era uma grande brincadeira para os rapazes que, independente da idade, ela tratava por meninos.
Numa das suas inesquecíveis aulas de História (como ela amava a disciplina!), Dona Nilza estava a discorrer com propriedade sobre a Revolução Francesa, íntima de Robespierre, Danton, Jean-Paul Marat, como se do grande acontecimento tivesse participado de fato, quando foi interrompida por Zico, seu afilhado, bagunceiro de marca maior, dizendo qualquer besteira sobre a lição da aula anterior, só para atrapalhar a explanação da mestra. Irritada com o corte súbito em seu devaneio, Dona Nilza responde ríspida:
– Isso eu dei na semana passada!
– Se deu, eu não comi - retruca Zico, do fundão.
– O quê, menino?! – diz ela, surpresa, fazendo-se de surda.
Noutra aula, estava Dona Nilza empolgada com a peste negra que assolou a Europa na Idade Média, descrevendo os sintomas da doença, pulgas, ratos, mongóis, sangramentos, mortandade, inchaços, bubos,.. Foi aí, então, que eu, leitor de aventuras, levantei o dedo e a interrompi; eu tinha acabado de ler um romance juvenil ambientado na época da peste bubônica.
- Eu li um livro sobre isso, aparecem uns caroços pelo corpo, na cabeça, parecido com a boba que dá na cabeça do pinto...
- Deixe de besteira, menino!
Enquanto eu tentava consertar o mal-entendido, a classe vinha abaixo.
- É verdade, Dona Nilza, o pinto fica mole, todo mole, a cabeça pra lá e pra cá, e cai.
- Já disse para você ficar quieto!
- Mas, Dona Nilza, a senhora já viu como o pinto fica?
- Cala a boca, eu já disse!
Ainda tentei explicar que eu estava me referindo ao filho da galinha, que eu tinha conhecido a doença no sítio do meu avô, mas não teve jeito: mandou-me para fora da sala, sem conseguir disfarçar o sorriso nos lábios finos.
Certa vez, eu e Chico Liberato, companheiro de bagunça, fomos chamados à diretoria por termos ofendido o inspetor escolar. Na presença do inspetor, Dona Nilza perguntou por que tínhamos desacatado o inspetor, pronta para nos passar um sabão ou, pior, uma suspensão.
– Mas, Dona Nilza, a gente o chamou pelo nome, Seu Filhinho – disse Chico, fazendo uma voz fina e aflautada de mulherzinha ao pronunciar o nome do inspetor.
Não que Seu Filhinho fosse maricas, mas para nós, adolescentes descobrindo o mundo, prontos para gozar de tudo, soava muito estranho que um homem velho como ele fosse chamado de Filhinho.
– Saiam daqui, seus desordeiros! Da próxima vez, serão suspensos! – despediu-nos, sem poder disfarçar o riso.
Joãozinho, assim a mãe o chamava, assim ele era conhecido na cidade, apesar de ser grande e forte feito um touro, de peito estufado, briguento. De voz tonitroante, sabia ser delicado e afável, uma moça, quando necessário. Riso escancarado, passadas largas, os pés abertos, dez para as duas, espalha merda.
Uma vez, durante a sua festa de aniversário de 20 anos, Joãozinho tirou da gaveta um revólver e passou a aterrorizar os convidados, simulando uma roleta-russa. Apontava para a cabeça dos convidados e, click, ria às bandeiras despregadas. Encostava o cano na própria cabeça e click. Click, click!
– Deixa de ser louco! - diziam.
– Para com isso, Joãozinho! Para já! – grita dona Nilza, da cozinha.
– Mãezinha, a arma tá vazia – responde Joãozinho, divertindo-se.
– Olha, que o diabo atenta!
– Tá vazia, sem bala, mãezinha! Olha só, quer ver?
E Joãozinho, apontando a arma para a própria mão, aperta o gatilho. Click! Click, click!
Sabe-se lá, sem como nem porquê, o revólver dispara, e uma bala atravessa a palma da mão do aniversariante, e passando rente à cabeça dos convidados vai se alojar na parede. Segundos de silêncio, de descrença... Ao perceber o vermelho do sangue, do próprio sangue, Joãozinho começa a gritar desesperado, segurando a mão, choramingando. Por isso, e somente por esse pequeno incidente, Joãozinho, o filho da Dona Nilza Machado, a professora de História e diretora do Colégio Estadual Valle Porto, ficou conhecido para sempre como João Bang.
Para fechar a crônica, devo relatar também o enterro de Dona Nilza, embora isso me doa muito, assim como deve ter doído a todos os seus conterrâneos, assim como deve ter doído muito mais ao seu filho que, apesar da dor, teve que dar, ao telefone, a triste notícia ao irmão que morava no norte do Paraná:
– Joel, vem rápido pra Antonina, que a velha fodeu-se.
Ao sair o féretro, uma verdadeira multidão o acompanhava. No meio do caminho, uma chuva fininha foi engrossando aos poucos. Então, os condutores do caixão acharam melhor apertar o passo. Indignado, João Bang pulou na frente do carro funerário, de arma em punho.
– Devagar aí, miudinho, que isso não é enterro de vagabundo!
sábado, 22 de janeiro de 2011
Assinar:
Postagens (Atom)