terça-feira, 6 de setembro de 2011
RUA DO ESTEIRO, 54
por Edson Negromonte
Rodrigo era conhecido por todos como El Cuervo, talvez pelo avantajado nariz aquilino, a pele escura e a silhueta longilínea, ou, quem sabe, pela quantidade de urubus que faziam do seu telhado morada, onde permaneciam horas a fio de asas abertas, após pesada e repentina chuvarada de verão, como insólitos guardiães. O velho Rodrigo dava-se muito bem com essas aves de mau agouro, alimentando-as com as poucas sobras da sua cozinha e com tripas de galinha, divertindo-se com a feroz disputa pela apetitosa iguaria. Ele era mesmo singular, invariavelmente de terno e chapelão pretos, embora não lembrasse em nada, naquela época, para os meus olhos adolescentes, uma figura soturna. Grande contador de histórias as mais fantásticas, às quais seus ouvintes prestavam atenção redobrada, à procura de uma nesga qualquer de inverdade. Mas El Cuervo era hábil em estribar as narrativas em datas longínquas e em paragens as mais exóticas, como é próprio a um marinheiro que singrara mares tão distantes e dera de cara com os monstros fabulosos descritos pelos primeiros navegadores. Para ser honesto, não posso afirmar de sã consciência que ele fosse meu bisavô consanguíneo; talvez um parente distante, aliás, muito distante, pois o seu sobrenome não fora aportuguesado como o nosso houvera sido, desde os tempos do coronel Francisquinho da Gameleira. Rodrigo assinava Nigromonti, a antiga grafia original dos antepassados espanhóis. Recordo-me nitidamente da fachada da sua casa branca, de paredes caiadas, faiscantes sob o sol forte do meio-dia, das duas janelas frontais, a madeira escura, o verniz descascado da porta, lembrando o casco de uma maltratada baleeira.
– Este é Rodrigo, o seu bisavô Rodrigo – disse meu pai, apresentando-o a mim, sem muitas explicações, e com certa inflexão na voz.
Aquele homem trajado de preto, indiferente ao sol, sentado à porta da casa que dava direto para o rés da rua numa cadeira de palha, já despertara anteriormente a minha atenção. Não era essa a primeira vez que eu o via. Apesar do sorriso franco, sem mostrar excessivamente os dentes, e do forte aperto da mão magérrima, fomos nos aproximando aos poucos, como é apropriado às amizades duradouras, que se instalam nos corações lentamente, tal e qual os buracos que vão surgindo nas calçadas, sob a ação contínua das goteiras, chuva após chuva. E como chove em nossa aldeia...
Quando nos demos conta, eu e o velho já éramos companheiros de longa data, de longo curso, quase confidentes. Sentia-me perto dele assim como o magriço Jim Hawkins devia sentir-se em companhia de Long John Silver. Para compensar a falta do papagaio falastrão, tínhamos a companhia de inúmeros urubus a montar guarda silenciosa no telhado. Nos meus devaneios, a sua casa de pé-direito muito alto, sem forro, era sob todos os aspectos a encarnação do albergue Almirante Bembow. Morava com ele uma jovem (não tinha mais de vinte anos) que atendia pelo nome de Flor, a qual vim a saber bem mais tarde ele tirara da zona de meretrício para servi-lo, tanto à cama quanto à mesa. Ela era muito calada e reservada, de olhar sempre baixo. De seios fartos, pele clara, ancas roliças, vestia-se quase sempre de branco, e uma amarelada tiara de osso prendia-lhe os cabelos intensamente negros. Não que fosse carrancuda, talvez algo taciturna, provavelmente a melancolia intrínseca à alma feminina; mas nunca entrevi em seus lábios a mais leve sombra de um sorriso. Nem mesmo quando meu bisavô, num gracejo, agradecia a xícara de cevada que ela, sem que pedíssemos, trazia durante os nossos animados bate-papos.
– Obrigado, minha flor. Agora, pode ir cuidar dos seus afazeres – dizia ele, dando uma piscadela para mim.
As pessoas da nossa família, tendo-o na qualidade de aparentado, não encaravam com bons olhos essa mulher tão jovem na casa do homem velho, vendo-a como uma aventureira, uma golpista. Às vezes, as tias velhas usavam palavras mais pesadas quando se referiam a ela. Devo aqui deixar claro que ela foi sempre muito dedicada a ele, meu bisavô Rodrigo, não sabendo de nada que a desabonasse, desde que os dois passaram a viver sob o mesmo teto. E, após a morte do velho, Flor desapareceu de nossas vistas, da cidade, sem deixar rastros, como se nunca houvesse existido. Nem mesmo a casa ela reclamou, restando hoje da construção somente o paredão frontal, em ruínas. Ele, por sua vez, era muito cortês com ela. Nunca percebi nenhuma palavra rude ou animosidade entre os dois, mesmo no dia em que Flor tropeçou no tapete da sala e encharcou de cevada as páginas de um manual sobre a pesca de baleias, aberto sobre a mesa. Nele (após eu contar-lhe do presente que meu pai trouxera de uma das suas viagens: um belo volume encadernado de “Moby Dick”, a obra máxima de Melville), o velho orientava-me entusiasmado sobre os vários tipos de arpão usados na caça dos gigantescos cetáceos, sem a mínima preocupação com a preservação da natureza, com a vida sobre a Terra, o que inclui a própria vida humana. Outros tempos, quando nos deliciávamos sem culpa com uma saborosa sopa de tartaruga, as quais batiam com frequência à nossa costa. Com o velho homem aprendi a carnear tartarugas, a cortar primeiro a cabeça, separar o casco do peito, o plastrão, aprendi também a cortar a carne em pequenos cubos para a sopa, até o preparo da alfavaca, o tempero ideal. Era um tempo em que os homens eram forjados na violência, na visão do sangue, a morte presente, tempo em que homens de fibra não choravam, ou se choravam era somente na solidão do quarto, longe dos olhos dos outros e, muitas vezes, até de si mesmo, negando as próprias lágrimas. Era um choro surdo, pra dentro. Com o velho aprendi diligente a imitá-lo nos erres bem escandidos e os esses sibilantes, exercitando-os na leitura do jornal semanal, principalmente na seção criminal, quando o movimento intenso do porto trazia a Antonina gente de outros lugares, até de outros estados, gente violenta e afeita à bebida, em busca de trabalho. Ele fazia gosto que o rapazinho que então eu era lhe lesse sobre a chegada e a partida dos navios, tanto os de carga quanto os de passageiros, incluindo os mistos. Dava-me a impressão de que conhecia todos os nomes das embarcações que iam e vinham, os nomes dos comandantes, até os dos passageiros. Ria-se muito do meu embaraço para pronunciar, sem titubear, palavras como laranja e lareira, mas o que realmente o deixava apreensivo era a minha dificuldade com a palavra justiça, da qual eu invariavelmente comia o esse. Até hoje não consigo dizê-la corretamente.
Acostumei-me a ir vê-lo praticamente todos os dias (ele tornara-se, então, o bisavô que eu sempre quis ter). E, tenho certeza, El Cuervo fazia muito gosto nessas visitas. Quando precisava se ausentar, tinha a gentileza de deixar um recado com Flor para que eu regressasse no dia seguinte, para almoçarmos juntos. Sentia-me desorientado com a sua ausência. Até hoje não sei aonde ele ia, visto que não mencionava sequer o motivo das poucas saídas. Percebi também que, desde que comecei a frequentar a casa, os seus poucos amigos foram se distanciando cada vez mais. Durante algum tempo, me senti culpado por isso, até que externei a minha preocupação, coisa à qual ele pôs ponto final dizendo-me que, se isso era mesmo verdade, não eram então amigos dignos, asseverando que preferia muito mais a minha presença naquela casa, e que eu a enchia de vida. E que aqueles chacais, palavras suas, só sabiam falar de doença e dos velhos bons tempos. Ele detestava o chavão “meu tempo”. Para El Cuervo, o tempo de um homem é enquanto ele está vivo, embora se referisse à vida de embarcado como os melhores dias. Contava-me, assim, sobre a sua passagem pelo estreito de Gibraltar, sobre o oceano Índico, o golfo de Bengala, o cabo das Agulhas, as tempestades na ilha de Java, sobre o cabo das Tormentas, o cruel gigante Adamastor, o Bojador, a Tortuga, Madagascar, Port Royal, na Jamaica, como se realmente tivesse vivido tudo isso. E, cá entre nós, sou capaz de jurar que realmente vivera, tal a riqueza de detalhes dos vívidos relatos. Como é comum aos velhos, com o tempo, passou a contar-me quase sempre as mesmíssimas histórias, mas com tantas e tais minúcias, numa profusão de pormenores, às quais acrescentava novos personagens periféricos, mas de vital importância para o enriquecimento da narrativa. Ora conhecera pessoalmente o chefe Kilaeua, da ilha Ni’ihau, no Havaí; de outra feita, visitara o túmulo de Robert Louis Stevenson, em Vailima, nas ilhas Samoa, e que à noite o vira passeando de terno branco e chapéu panamá, ladeado pelos nativos. Ele bem sabia que a simples menção do nome do escritor escocês fazia arregalar os meus olhos de menino e a querer saber muito mais sobre as suas, talvez fictícias (que importa?), aventuras. Tudo isso só fazia-me querer cada vez mais bem ao meu perspicaz amigo. Às vezes, imagino que a sua cultivada arte de narrador tenha contribuído em muito para que eu me dedicasse de corpo e alma à literatura, contando histórias como se eu e o leitor estivéssemos de pé, lado a lado, no convés de um veleiro, entre o mastro grande e o castelo de proa.
Certo dia, ele cuidadosamente pegou da pequena estante, ao lado da única poltrona da sala, uma Bíblia, com a lombada já gasta, esfarrapada e, creia-me, com um cheiro característico. Asseguro-lhe que, naquele momento exato, senti vir do livro sagrado o cheiro dos oceanos, de salitre, homens rudes, ventos os mais diversos, trazendo no bojo o murmurar das lendas marítimas, as escamas dos monstros marinhos, argonautas, odisseus e odisseias.
– Vamos, leia o que está escrito a lápis na folha de rosto – disse-me, estendendo o livro.
Intrigado pela ordem repentina, tomei imediatamente o livro das suas mãos, aberto no local indicado, para encontrar inscrito ali o nome Zulmiro, o que para mim, até então, nada significava. Ergui os olhos interrogativos para o ancião, o meu capitão diante de mim. Ele abriu um leve sorriso, de contentamento; a atitude teatral e estudada de pegar o livro e estendê-lo para mim, o seu improvisado grumete, surtira o efeito desejado.
– Para você que se identifica tanto com o mar, com a vida dos homens do mar, que é capaz de ficar horas a fio sentado no trapiche, admirando o voo das gaivotas e o magnífico mergulho em meio ao cardume de sardinhas, vou contar, então, a verdadeira história de Zulmiro, coisa de um tempo em que eu era também menino, assim como você. Aliás, direi o pouco que sei sobre essa personalidade tão controversa que aportou em nossa baía no ano da graça de 1877, vindo sabe-se lá de onde. A única certeza é a de ele que vinha de muito longe, talvez do Oriente, da Ásia, das Filipinas, quem sabe, da África, em algum navio negreiro, mas de certo somente é que ele não podia mais retornar ao mar, o seu amado lar, o cemitério marítimo onde toda a poesia repousa, e onde Zulmiro gostaria de ter podido descansar. Não que tivesse perdido as graças do mar, como sói acontecer a muitos marinheiros. Não, isso é que não.
Ao ouvir essas palavras, meus olhos brilharam mais ainda, levando-me imediatamente, sem saber bem o porquê, a Joseph Conrad e seu “Lorde Jim”, do qual eu vira tantas vezes o filme no Cine Ópera e, logo em seguida, lera com avidez o livro, na requintada tradução do poeta Mário Quintana.
– Esta Bíblia, em inglês, pertenceu a ele, Zulmiro, o último pirata que a história registrou. Portanto, que fique esclarecido desde já que nem Don Pedro Gilbert e muito menos Benito de Soto, mas, sim, Zulmiro foi o último salteador dos mares. Por não se submeter às ordens da rainha Vitória, de abandonar a pirataria para se tornar corsário, esse homem passou a ser perseguido pelos navios da marinha britânica, com a incumbência de enforcá-lo na primeira ilha que fosse avistada. Aconteceu que o capitão que o encontrou tinha sido seu colega na escola naval e, resolvendo poupar-lhe a vida, abandonou-o na costa do Brasil, com trinta libras de ouro e esta Bíblia, prometendo que se o encontrasse novamente cumpriria com imenso prazer o decreto real. Não sei dizer por que cargas-d’água ele veio bater, no dia 13 de agosto daquele ano, à nossa porta, tarde da noite, a silhueta encoberta por uma gigantesca nuvem negra que momentaneamente encobriu a lua cheia, grávida de mistérios. Pediu-nos abrigo, um quarto, só um pernoite, como se nossa casa fosse algum tipo de pensão. Ou, quem sabe, um tipo de estalagem, pois não havia hotéis em Antonina àquela época. Não sei dizer também por que meus pais se apiedaram daquele homem. Talvez movidos pelo espírito cristão, não puderam negar um quarto e uma refeição àquela criatura que parecia beirar os 80 anos, tal o desgaste que o constante açoite dos vagalhões de água salgada provocara em seu corpo. Acontece, para nossa apreensão, que os dias foram passando e ele foi ficando, instalado no quartinho lá dos fundos. Sim, o mesmo onde hoje guardo as minhas redes, as tralhas de pesca. Talvez, no nosso íntimo, pensássemos em, um dia, botar as mãos no suposto tesouro, embora fôssemos incapazes de admitir tamanha perfídia, tão logo ficamos sabendo através da capitania dos portos tratar-se Zulmiro de um pirata. E, você sabe o que dizem, ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão. O homem estava acabado, com certeza não duraria muito tempo mais. Assim imaginávamos ou assim queríamos, e simplesmente resolvemos dar tempo ao tempo, em vez de sujar as mãos com ato tão ímpio. Se você o visse não acreditaria: tinha os poucos dentes que lhe restavam todos podres, as gengivas enegrecidas pelo escorbuto, o olho direito descaído, e o esquerduma mistura demoníaca de azul e vermelho, coxo, puxava de uma perna, a pele ressequida do sol, com algumas úlceras na face desnutrida. O hálito era dos piores, parecia vir das entranhas do inferno, tão nojento que me dava náuseas, vontade de vomitar. Seu amado John Silver não lhe parece agora uma singela estampa Eucalol?
Assenti rapidamente com a cabeça, para que o velho retomasse o quanto antes a história de Zulmiro.
– Diz a lenda que ele, antes de bater os costados em nossa cidade, enterrara a sua fabulosa riqueza em Cananeia. Devo admitir, somente para você, meu amigo, que muitas vezes fiquei tentado a revirar os seus pertences pessoais em busca de um mapa, ou coisa que o valha, uma indicação qualquer da localização do tal tesouro, mas a honra ou talvez a covardia tenham me impedido de cometer ato tão vil. Vendo aquele homem alquebrado, apesar de inicialmente repugnante, jamais se poderia admitir que o desgraçado tivesse sido tão sanguinário e violento quanto ficamos sabendo depois, após a sua partida, quando as autoridades marítimas reviraram a nossa casa em busca mais do mapa do tesouro do que propriamente do pirata, o qual, apesar do estado lastimável, ainda inspirava horror aos homens da lei. Ou melhor, a quem quer que o visse. Ele era de origem inglesa, ou irlandesa, sei lá. De certo ou incerto é que seu nome, ou sobrenome, era na verdade Summers, ou Sommers, ou Shulmmers, de onde provavelmente adveio a corruptela Zulmiro. Conviveu ele conosco, partilhando do nosso teto e da nossa boa mesa, o tempo de três meses, sem que tenhamos nos indisposto com ele uma única vez. Nem ele conosco, e isso é o que importa, quando se trata de dar guarida a um pirata. Era, sem dúvida, isso é certo, de origem nobre: formara-se na escola naval de Sua Majestade. Após o jantar, era capaz de ficar horas a fio fumando o cachimbo, com o olhar distante, como se pudesse entrever o mar oceano através da parede branca da sala, sem dizer uma única palavra. Vim a saber, muitos anos depois, já adulto, que o cheiro característico do fumo que ele usava era beladona, uma erva de origem asiática, altamente venenosa. De outras vezes, o homem desatava a falar com meu pai sobre filosofia, religião e outros desvarios da humanidade, mostrando uma erudição digna dos melhores acadêmicos. Meu pai, homem humilde, de parcos conhecimentos, deixava-o falar à vontade, fazendo poucos apartes, algumas poucas perguntas, aprendendo muito mais do que qualquer outra coisa, que tal atitude é de bom alvitre numa conversação com piratas. Lembre-se sempre disso. Um dia, Zulmiro subiu com a sua pouca bagagem em direção a Curitiba e nunca mais entrou em contato conosco, deixando como recordação, ou por esquecimento, por talvez não lhe ser mais de precisão, esta Bíblia, a qual está agora aberta à sua frente. No quartinho lá dos fundos, ele costumava folheá-la todas as noites, à luz de vela. Veja como as páginas estão manuseadas, ensebadas, engorduradas, pelos dedos dele!
Relanceei os olhos pelas páginas da Bíblia, conforme meu bisavô a ia folheando, sem ousar tocá-la, como se estivesse diante de um sortilégio.
– Depois de muito tempo, chegou-nos a notícia de que Zulmiro morrera nas Mercês, num sítio, no tempo em que tudo aquilo lá ainda era mato. Dizem que enterrou o tesouro no Largo de São Francisco, onde existem umas antigas catacumbas. Ultimamente, surgiu entre a gente do mar a notícia de que os tesouros do pirata encontram-se escondidos em Trindade, a ilha mais distante do nosso continente, a 300 léguas da costa do Espírito Santo, entre o Brasil e a África. O que se sabe de certo é que esse tesouro tem levado à desgraça muitos homens, inclusive um certo farmacêutico paulista, bem conhecido dos seus pais. Você sabe muito bem de quem eu estou falando. Então, esse boticário alegava ter encontrado, em meio às páginas de um livro imprestável, num sebo atrás da Catedral da Sé, o documento com a localização exata dos saques de Zulmiro. Conta-se que esse farmacêutico foi acorrentado, sabe-se lá por quem, ou por que forças extraordinárias, ao rochedo solitário da ilha da Trindade, e que as suas vísceras, expostas, são comidas diariamente por cangulos voadores; refazem-se elas às horas mortas da noite para serem impiedosamente devoradas no dia seguinte por esses estranhos peixes.
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