quinta-feira, 12 de abril de 2012

UMA DUPLA DO BARULHO - Parte 2

por Edson Negromonte

Ao vir para Antonina, Grande Otelo trouxe o diretor de cinema a tiracolo, pois o americano fazia questão de ir a todos os lugares onde o amigo brasileiro ia, sequioso por conhecer muquifos, bordéis e pardieiros, além das "belezas naturais e morenas" do nosso país. A paixão de Otelo pela nossa pequena cidade teve início quando aqui ele aportou em busca do irmão mais novo, Chico, filho ilegítimo de dona Maria Abadia. Evidentemente, a informação equivocada de um improvisado detetive particular não encontrou comprovação, mas a hospitaleira cidade jamais sairia de seu coração. Sempre que a vida atribulada permitia, Otelo surgia perambulando pelas ruas de Antonina, conversando com as pessoas, sentando-se nas praças, tomando um pingado, comendo um pãozinho com manteiga ou um bolinho de banana, no bar de esquina... Então, nessas ocasiões, em determinado momento, quando a roda à sua volta estava repleta de curiosos, ele teatralmente sacava do bolso do paletó umas cigarrilhas cubanas e generosamente as distribuía, para supremo deleite dos presentes. E, quando a noite ia ficando cada vez mais escura, a pequena figura ia desbotando, esvanecendo assim lentamente, tão lentamente, que nem nos dávamos conta. Otelo não dizia adeus, nem até mais, nós também não nos importávamos com essas formalidades, ele simplesmente ia embora, como se não quisesse nos incomodar, como se não quisesse nos magoar, como se tudo não passasse de um sonho, sonho de velhos boêmios a conversar com pelicanos, algaravia compreensível somente às almas inebriadas pelo vinho da folha de palmeira. Um cronista, para mim fidedigno, dos anais antoninenses relata que, sem precisar datas, em decorrência da idade avançada, mas assegurando que ocorreu na década de 80, o grande ator voltou aqui pela última vez para proferir uma palestra intitulada "As Raízes do Teatro e do Cinema Nacionais – Experiência de Ator", com um público de duas mil pessoas, numa manifestação ainda embrionária do que viriam a ser, anos mais tarde, os tradicionais festivais de inverno.
No dia seguinte, pela manhã, nem bem o dia clareava, às seis da manhã, tomorrow, six o'clock!, os dois implausíveis companheiros tomaram um táxi de volta ao Rio de Janeiro, onde o americano estava sendo chamado com urgência, às pressas. Alguém nos contou, algum tempo depois, que Hollywood o despedira, que os donos do poder não tinham mais interesse num filme sobre a América do Sul e, muito menos, sobre o Brasil, que esse ocorrido era um capricho presidencial, que fazia parte do esforço de guerra, a tal política da boa vizinhança, a mando do presidente Roosevelt e patrocinada pelo milionário Nelson Rockfeller, que não queria mais gastar tanto dinheiro num filme que nunca seria exibido e, de mais a mais, o presidente Vargas já tinha convenientemente aberto mão das convicções nazistas, da simpatia por Mussolini e se debandara de mala e cuia de chimarrão para o lado dos Aliados.
– Como? Getúlio Vargas, nazista?! – disse um.
– Aí, agora você já não está mentindo demais, Dodó? – arriscou outro.
Com cara de poucos amigos, quando duvidavam das suas gazopas, Dodó preferia deixar a dúvida no ar e retomar a narrativa.
– Então, a filha mais bonitinha de dona Mariquinha deu à criança...
– Mas que criança, Dodó?! – indagava alguém, tentando provocá-lo.
– Pois é, continuando, ela deu ao recém-nascido, filho do pecado com o gringo, o esdrúxulo nome de Rosebud. Até hoje ninguém sabe o porquê, nem o que isso quer dizer, a sua significância. As velhas faladeiras, maledicentes, insistem que Rosebud é, só pode mesmo ser, coisa do Capeta, cujo nome de família em português é Bode, pois os padres que são tudo entendido nessas artes cabalísticas se recusaram a batizar o pobrezinho.
Para fechar com chave de ouro, à guisa de gran finale, o sábio estivador arrematava que o bastardinho Rosebud de Oliveira Quadros tornara-se, em meados da década de 60, um afamado advogado da Vara de Família, em Curitiba, com escritório montado e tudo. Na parede do escritório, em frente à escrivaninha, podia-se ver, emoldurada, uma fotografia autografada de Welles, com dedicatória feita especialmente para ele, o filho da aventura brasileira. Todos os conhecidos, inclusive a sua avó, a confiável dona Mariquinha, afirmavam unânimes que a tal dedicatória era falsa, coisa forjada pelo próprio Rosebud.
(Minhas incansáveis investigações levaram-me à Guiné-Bissau, onde descobri que Rosebud de Oliveira Quadros desaparecera, aos 31 anos, durante a Revolução dos Cravos. O que ele estaria fazendo naquele distante país? O máximo que consegui levantar sobre as suas atividades africanas é que fora em busca do paradeiro de um exemplar da “Ilíada”, de Homero, cuja folha de rosto continha a assinatura de Isidore Ducasse, o Conde de Lautréamont. O quê, então, o nosso ilustre conterrâneo tornara-se um apaixonado colecionador de obras raras? Sim, porém equivocado; essa raridade bibliográfica foi realmente encontrada, somente que na Espanha, em 1977).
A noite chegara e os ouvintes, então, iam se levantando preguiçosamente, batiam os pés, os chapéus, como se quisessem espantar o pó imaginário que neles se acumulara durante o longo tempo que ali permaneceram, e despediam-se, alguns com um sorrisinho, erguendo o queixo em direção ao estivador, outros, como eu, iam com a pulga atrás da orelha. Alguns dirigiam-se para os lares, outros para os bares, enquanto Dodó permanecia sentado no degrau da sua humilde casa, à Rua Heitor Soares Gomes, com o olhar distante, ouvindo as marés indo e vindo, batendo no paredão, observando ao longe a luz fugidia do rebocador puxando um navio através do canal. Algumas vezes tudo é verdade, noutras nem tudo é verdade.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

UMA DUPLA DO BARULHO - Parte 1

por Edson Negromonte

Antonina é uma cidadezinha esquecida no litoral do Paraná, aos pés da Serra do Mar, com aproximadamente 17 mil habitantes. Outrora pujante, fundada em 6 de novembro de 1797, embora alguns historiadores defendam a data de 27 de novembro de 1696, foi um dos portos mais importantes do Brasil, no apogeu da erva-mate, mas hoje vive das glórias do passado. Pelas ruas estreitas passaram, em épocas diferentes, o imperador Pedro II, o compositor Noel Rosa, o músico Gilberto Gil, recém-chegado do exílio em Londres, entre tantas outras personalidades importantes do país e do mundo, como o ator Anthony Quinn. Conta-se orgulhosamente que o imperador teria pernoitado onde funciona a Prefeitura, uma construção datada de 1914, e que Noel foi avistado, por um estivador de apelido Dodó, rascunhando a lápis a letra de um samba, que ele jura de pés juntos ser o clássico "Com que Roupa".
Acontece que Dodó é conhecido por todos como um grande mentiroso, desses que as pessoas gostam de ficar ouvindo, ao cair da tarde, embevecidas, quase hipnotizadas, cientes de que estão sendo engambeladas por uma bela e muito bem arquitetada patranha, inventada com o único intuito de distraí-las e afastar, assim, o marasmo da vidinha aparentemente insossa da cidadezinha à beira do mar, de marés tão exatas que através dos seus movimentos de ir e vir pode-se acertar os ponteiros da igreja matriz, a não ser quando, de sete em sete anos, feminilmente o mar desatina e invade as ruas centrais.
Daí, tão rapidamente quanto subiu, o mar bate em retirada, deixa uma grande quantidade de peixes mortos nos quintais, a apodrecer nas ruas, servindo de comida a formigas, ratos, aos urubus que de asas negras e imponentes descem das cumeeiras, indiferentes aos passantes. Depois, então, meninos apanham as espinhas inteiras e brancas dos peixes, como se fossem tambaquitas, e brincam de pentear os grossos cabelos castanhos. Cansados, atiram o que restou das espinhas de volta às águas salgadas e calmas.
– Já viu? Então, ouça: rio é bicho aparentemente quieto, calado, mordido, na moita. Rio, dizem os incautos, por maior que seja, é sempre circunspecto; mar... mar não, mar é alvoroçado por dentro, principalmente quando se encontra com as pedras, fêmeas à espera do arpão de espuma. Mar está sempre à beira do motim, porque quem se rebela não é, na verdade, o marinheiro, é o mar que insufla em seu coração a desgraça; rio... rio é prudente no agir, no falar, até no pensar, mas depois de sabido não se destroca o mar por nada desse mundo, nem do outro.
Uma das melhores relamboias de Dodó é sobre a rápida passagem, em 1942, do cineasta americano Orson Welles, acompanhado de Grande Otelo, pelas centenárias ruas de paralelepípedos, durante a Segunda Guerra Mundial. Como quem conta um conto sempre aumenta um ponto, a cada vez que contava esse suposto acontecido, o estivador aproveitava para encorpar um pouco mais a narrativa, ora afirmando que ele mesmo preparara o barreado para a dupla, regado a muita caipirinha, que Welles tanto se fartara da iguaria típica do nosso litoral, que dormiu e roncou feito um porco madrugada adentro, ora acrescentando, quando não havia mulheres por perto, que, mesmo assim, bêbado e à beira da congestão (e Dodó afirmava categoricamente, com um sorriso sacana, não saber explicar como), ele conseguira sair da cama e engravidar a sua vizinha, aquela, a mais bonitinha das filhas de dona Mariquinha. E, como se estivesse num programa televisivo de culinária, o matreiro Dodó, sabendo-se senhor da situação, aproveitava para criar suspense, ensinando, cheio de gestos, como se faz o verdadeiro barreado.
– Eu usei bem uns seis quilos de patinho e meio quilo de toucinho fatiado, tudo temperado com muito alho, cominho, cebola, louro, tomate, manjerona, cheiro-verde, salsa, pimenta-do-reino, gengibre, vinagre e... sal a gosto. Deixei dormir tudo junto pra pegar sabor. De manhãzinha, às cinco horas, cortei o toucinho em tiras bem fininhas para forrar o fundo da panela e fui botando uma camada de tempero, uma camada de carne, uma camada de tempero, outra de carne, até chegar a um pouco menos da metade da panela.de barro, da esmaltada, comprada na loja do falecido Nóca, que é quem vendia as melhores panelas de toda a região. Quando começou a ferver, eu experimentei; e aquilo tinha um sabor dos deuses. Ou, quem sabe, dos diabos! – arrematou, com uma risada.
Alguns dos presentes persignaram-se, fazendo o pelo sinal.
– Tava tudo no ponto: sal, vinagre... os temperos... Era mesmo coisa do outro mundo! – disse Dodó, olhando de um por um, bem no fundo dos olhos atentos.
Nesse momento, os ouvintes novamente se benzeram, Dodô deu um sorrisinho de mofa, aproveitando para se benzer também que, pelo sim, pelo não, ninguém é bobo de botar fogo no rabo do Diabo sem se garantir.
– Então, – continuou – cobri a panela com folha de bananeira muito da devidamente sapecada e, com barbante de algodão, amarrei a tampa com firmeza. Depois, barreei com uma massa de cinza peneirada, bem misturada com farinha de mandioca braba. Ah, tem que ser da braba, senão não dá liga! E fui, de pouco em pouco, barreando devagarinho pra evitar que o vapor fugisse pelas frestas; isso durante umas doze horas, em fogo brando, sempre em fogo brando. Às cinco da tarde, a comidanha tava pronta!
– De onde você tirou essa receita de barreado?
– Essa é a receita de Nhô Jubó, meu falecido pai. Que Deus o tenha!
Todos sabiam que o pai do mentiroso tinha sido um dos melhores cozinheiros das redondezas, que até gente de São Paulo vinha experimentar os seus quitutes. E, sempre que questionado, Dodô não tinha dúvida: atribuía a fonte ao seu velho e por todos querido progenitor, ciente de que era a maneira mais eficaz de conseguir imediata credibilidade.
– Mas o mais engraçado, sabem, vejam só, – continuou – ninguém viu nem sombra de câmera nas mãos do gringo. Que diretor de cinema era aquele que não filmava tudo o que via? Ora, cineasta que se preza tem que ser que nem contador de piada, não perde a chance de fazer graça. Sei lá, pelo menos o maluco do Zé Carlos, filho da terra, andava com uma filmadora para lá e para cá, para cima e para baixo, quando inventou de fazer uma fita sobre a nossa gente, depois de assistir "Limite", uma fita, contou-me o meu finado pai, que Deus o tenha, numa sessão no manicômio da capital. Há quem diga que a câmera de Zé Carlos nunca sentiu nem cheiro de filme, mas isso não é nem verdade.
Enquanto Orson Welles roncava ou resfolegava, Grande Otelo perambulava pela zona de meretrício que, pasmem, ainda ficava na Dr. Justino de Mello, rua próxima ao miolo do centro da cidade, dizendo para as mulheres de vida fácil o que elas entendiam como um gracejo qualquer em inglês, torcendo a boca, para ficar mais parecido com o amigo americano:
– Tomorrow, six o'clock!
Reconhecido pelas putas e cafetinas, o grande cômico foi obrigado a visitar cada uma das casas da agitada zona. Em cada uma delas, era-lhe oferecida a melhor bebida, a cerveja preta mais gelada, o uísque mais envelhecido, a melhor comida, a mulher mais bonita ou a mais fogosa. Era assim que aquela gente agradecia as inesquecíveis gargalhadas que Otelo lhes proporcionava em excelentes comédias musicais, como "Céu Azul" e "Laranja da China". Emocionado e incansável, o pequeno Sebastião Bernardes de Souza Prata (este era o "verdadeiro" nome de Grande Otelo) fazia questão de mostrar os dotes musicais, cantando inúmeras vezes o samba "Vou pra Orgia", pelo qual era aplaudido freneticamente, de pé, por todos os presentes, emendava com "Boneca de Piche", imitando a voz e os trejeitos de Carmen Miranda, para finalizar apoteoticamente com "Praça Onze", grande sucesso do ano.
Grande Otelo contava, na época, vinte e cinco anos. Ou seriam vinte e sete? De olhos esbugalhados e lábios sempre prontos para um muxoxo, a característica "boquinha de rosa", parecia mais um menino peralta, devido principalmente à baixa estatura, não media mais de um metro e meio, enquanto o grandalhão Orson Welles, com cara de bebê, media um e oitenta e sete. Quatro anos antes, em 1938, o genial Welles deixara os americanos em polvorosa, provocando acidentes, desespero e até mortes, com a radiofonização da novela "A Guerra dos Mundos", de H.G. Wells, a qual ele transpusera para o rádio, com inteira liberdade, como um noticiário em meio à programação normal da emissora, como se os Estados Unidos estivessem sendo invadidos, naquele exato momento, por hordas de terríveis marcianos, acarretando-lhe vários processos, tornando-o assim uma celebridade da noite para o dia. Mas, aqui, no Brasil, ninguém deu muita pelota para isso. Com a sua chegada ao país do futebol, os repórteres dos principais jornais foram ouvir os despreocupados populares:
– Invasão de marcianos?!
– Isso só pode ser coisa de gringo.
– Tenha dó, tenho mais o que fazer.
Nem no Rio de Janeiro, a então capital federal, os grandes intelectuais da Corte deram muita pelota para tamanha sandice. Certamente que alguns por dor de cotovelo, mas a grande maioria por pura ignorância mesmo. Depois, davam-se ares de superioridade, alegando confusos que tinham lido a obra completa de Júlio Verne, não encontrando ali uma única menção sobre os tais marcianos. E se o mestre francês não se dignara a deitar os olhos nas tais criaturas do planeta Marte, isso só podia significar perda de tempo.
– Uma nação inteira levada à histeria por causa de um simples programa de rádio? – argumentou um grande romancista.
– Por causa de homenzinhos verdes de Marte? – completou o nosso maior poeta.
Agora, imagine se os pobres antoninenses, neste fim de mundo, iriam saber quem era Orson Welles. A única guerra de que tinham ciência era a Guerra Mundial, mas mesmo assim era algo que acontecia muito longe daqui, lá no estrangeiro, e somente de vez em quando alguém dessas bandas era recrutado.

Continua na semana seguinte.