Edson Negromonte
Umas das figuras inesquecíveis que vem à tona da memória nas agradáveis conversas sob a sombra do Jequiti Bar, uma construção em frente à entrada principal da Praça Coronel Macedo, erigida na gestão do prefeito Cecyn Jorge Cecyn, com dois quiosques, onde hoje servem-se café e bolinho de banana, mas na década de 70 podia-se, num deles, saborear deliciosos dolés de maracujá, é Nhenhenhém. Este antigo funcionário do Instituto Nacional de Previdência Social era querido por todos, mas principalmente pelos adolescentes que, ao vê-lo passar, à noite, pelas ruas sonolentas de Antonina, ao volante de um Corcel, acenavam com a mão, saudando-o:
- Nhenhenhém!
Ao que ele prontamente respondia, de voz pastosa:
- Nhenhenhém... nhenhenhém....
De pele escura, quase marrom, Nhenhenhém confundia-se com o carro da mesma cor, de vidro fumê. Após o expediente, depois de jantar com a esposa, o bom servidor público acendia um cigarrinho de maconha, saboreando-o até a última ponta, botava os óculos escuros e saía dirigindo pelas silenciosas ruas de paralelepípedos. Todos sabiam do vício, mas como ele não incomodava ninguém faziam vista grossa.
- Nhenhenhém! – provocava alguém.
- Nhenhenhém... nhenhenhém... – respondia ele, beatífico.
O apelido remonta, talvez, à impossibilidade de ele pronunciar algo além de resmungos, de nhenhenhéns, a língua pastosa por causa da maconha, hábito que adquirira com os índios. Segundo o dicionário, o vocábulo “nhenhenhém” tem origem no tupi “nheeng-nheeng-nheeng”, que significa “falar, falar, falar”. A popularidade de Nhenhenhém tornou-se ainda maior, durante o julgamento de Sete Facadas.
Aconteceu de surgir, um dia, na cidade, vindo não se sabe de onde, um estranho que não dizia o nome a ninguém, não procurava travar relações, como se estivesse por ali com o único intuito de cumprir uma missão. Fizesse sol, chuva ou frio, ele trajava sempre uma comprida capa cinza de lã e chapéu de feltro, da mesma cor. Perambulava pelas noites de breu, encarando as pessoas diretamente nos olhos, olhos brilhantes e acinzentados. Ou melhor, de um brilho metálico, como o aço de um punhal que nos atravessasse lentamente a carne, o coração, o espírito, chegando aos recônditos da alma. Todos indistintamente, prefeito, padre, meninos, professor, bacharel, baixavam os olhos à sua passagem. Como já foi dito, não se sabia o seu nome, nem mesmo onde ele dormia ou fazia as refeições. Nem se era de parte do Bem ou do Mal, apesar de que alguns enviados de Deus, muitas vezes usarem a aparente maldade para a purgação das feridas que não querem curar. Assim, o estranho andou pela cidade, dia e noite, dias e noites, como se estivesse à procura de algo ou, pior, de alguém. Com o passar do tempo, das idas e vindas das marés, os velhos, as mulheres, as crianças, foram se acostumando com a sinistra figura, que deixava um estranho rastro de enxofre. Os homens, esses, continuavam baixando os olhos ante a sua onipresença, fosse prefeito ou padre, professor ou fiscal da aduana.
Na manhã do dia sete de setembro de 1974, o mais antigo açougueiro da cidade apareceu morto, no chão do estabelecimento comercial, com várias facadas espalhadas pelo tórax; uma delas, a fatídica, bem no meio do coração. Um detalhe: faltava-lhe a orelha direita. A população, entre curiosa e estarrecida, aglomerava-se à porta do açougue, enquanto os soldados contavam um por um os golpes pontiagudos, desferidos violentamente no corpo enrugado do pobre homem de mais de 60 anos. Chegaram, finalmente, ao cabalístico número sete.
Imediatamente, deram início às investigações, mas o magarefe não tinha inimigos, segundo a esposa, os filhos, os netos, os amigos, a Rosinha... Seu único senão era encontrar grande diversão em esconder fios elétricos desencapados em apetitoso nacos de carne, à espera de que algum esfaimado cachorro de rua viesse abocanhá-lo. Ao ver o cão estremecer com a súbita descarga elétrica, ria e batia palmas, como uma criança feliz. Era uma visão adorável aquele senhor pulando de alegria com brincadeira tão inocente. Quem, naquela pacata cidade banhada pelas águas lodosas e fétidas da baía, seria capaz de cometer tal barbaridade? Sabia-se da vida de cada habitante, das grandezas e pequenezas de cada um; ninguém ali era capaz de matar um gato sarnento sequer, embora os gatos estejam associados desde os primórdios da civilização à magia negra, às bruxas. Então, foi dada voz de prisão ao homem de capa cinza que, apesar de tanto tempo entre nós, ainda fazia parte dos nossos medos. Assim, o estranho sem nome foi batizado de Sete Facadas. Entre os seus poucos pertences, foi encontrada uma faca enferrujada. Segundo o delegado, com manchas de sangue fresco. Era prova suficiente; todos nós, em nossas conversas sob a sombra do Jequiti Bar, estávamos convictos, mesmo sem provas concretas, inclusive as velhas faladeiras, de que, além de assassino, Sete Facadas era também dado à terrível prática do canibalismo. O bandido comera a orelha do açougueiro!
Após um ano já tínhamos esquecido disso tudo, até que um dia de sol causticante botou a população em polvorosa: aconteceria no fórum da cidade o julgamento de Sete Facadas, encarcerado pacatamente esse tempo todo na pequena delegacia. Pela tarde, uma verdadeira multidão lotava o prédio do fórum atrás da igreja, gente sentada em cadeiras, nos corredores, de pé, amontoadas, num vozerio que mais parecia um bando de abelhas, um grande enxame de gente, e aqueles que não conseguiram entrar apinhavam-se nas janelas e no pátio em frente. Parecia que toda a população estava ali reunida, homens, mulheres, crianças, velhos, gente de respeito, bêbados, prostitutas, intelectuais, analfabetos, curiosos e muitos que diziam ser indiferentes àquilo tudo, até gente que estava só de passagem. Comentava-se que Sete Facadas estava lá dentro desde cedo, para evitar a revolta dos populares, como se nós fôssemos incivilizados, capazes de agredir alguém ou, pior ainda, xingar a mãe de um cidadão acusado de assassinato.
O julgamento transcorria sem novidades, aquela coisa chata de sempre, que estávamos acostumados a ver no cinema. Fazia silêncio tão absoluto no ambiente que sou capaz de jurar pela sua mãe morta que ouvi várias moscas voando, e não eram varejeiras, mas moscas comuns, das que convivem pacificamente com os homens, compartilhando os seus lares e pondo ovos nos móveis e na geladeira branca, quando do nada, do meio do público, ergueu-se uma voz conhecida:
- Todo mundo aqui é muito honesto, mas roubaram o meu capote.
Era Nhenhenhém soltando uma das suas pérolas. Entre os risos dos presentes, disfarçados, devido à seriedade do momento, os policiais responsáveis pela segurança mandaram que o engraçadinho ficasse quieto, melhor dizendo, que calasse a boca, mesmo porque os homens da lei não pedem, ordenam, e obedece quem tem juízo. Assim sendo, o silêncio voltou ao recinto. Todo o público compenetrou-se e a ordem foi imediatamente restabelecida. Dessa vez, até as moscas se intimidaram e pararam de zumbir. A sessão transcorria em paz, até que o juiz, antes de dar o veredicto, alongou-se numa falação empolada sobre o Bem e o Mal, invocando gregos e latinos, passando de raspão por um poeta persa, sobre o qual ele evidentemente não sabia nada, mas ficava bonito citá-lo, dando aparência respeitável ao discurso, quando ouviu-se novamente a mesma voz pastosa, típica de quem está sob o efeito da cannabis:
- Esse juiz só fica de nhenhenhém, nhenhenhém, não julga nem absolve ninguém.
Risada geral. Aplausos. Mas, desta vez, o pequeno e franzino Nhenhenhém foi levado pelos homens da lei para fora do recinto, os quais quase lhe pediram desculpas por terem de agir assim. Afinal, nós, os antoninenses, éramos praticamente uma grande família, com suas mazelas, nossa moral duvidosa, e aquele juiz viera de fora, e definitivamente não era um dos nossos. Em família, com o tempo, perdoa-se tudo. E Nhenhenhém não queria incomodar ninguém, só queria que a sentença fosse rápida para saber onde fora parar o seu capote, apesar de, naquele dia, fazer um calor insuportável.
quinta-feira, 28 de maio de 2015
quarta-feira, 20 de maio de 2015
FAZER O QUÊ?
Edson Negromonte
Cada vez, o país tem menos livrarias. Uma pesquisa estatística dos meus tempos de menino, isso lá pelos anos 1970, já dizia que o Brasil todo tinha menos livrarias que Buenos Aires, a capital da Argentina. Sim, é necessário esclarecer que a Buenos Aires a que me refiro é esta porque há também uma Buenos Aires nordestina, antigamente conhecida pelo nome de Jacu, cidade natal do meu avô pernambucano. Mais recentemente, vi um documentário sobre o apreço dos jovens argentinos pela leitura, mostrando que os seus pontos de encontro são as livrarias. Um amigo que para lá viajou, voltou encantado com os sebos da capital, os quais vendem, além de livros, revistas e discos, também jornais antigos, o que nenhum sebo brasileiro sequer cogita comercializar, devido à dificuldade de conservação. Pode soar anacrônica essa minha preocupação com livrarias físicas em tempos de informação virtual. A celeridade da internet é algo que desorienta qualquer um nascido no século passado. E quando digo “século passado”, como isso soa distante, apesar de estarmos vivendo há somente 15 anos neste novo século. Nunca o homem sentiu tão rápida a passagem do tempo como nos dias atuais; a nossa consciência dos acontecimentos ao redor (e tenho a impressão de que, ultimamente, tudo acontece a um palmo do meu nariz ou dos meus olhos). Se o mundo já parecia pequeno no século anterior, tornou-se agora, com o incrível avanço da tecnologia, diminuto. Podemos nos solidarizar com a dor do povo da pequena Tuvalu, no distante Pacífico, prestes a desaparecer tragada pelo mar, do que com a perda de um ente querido do nosso vizinho do apartamento em frente, muito embora o cumprimentemos todos os dias pela manhã, perguntando com um sorriso amigável, plástico, se ele está bem. Acontece que ele, invariavelmente, responderá que sim, que tudo está bem, embora não esteja. Estará preocupado com a guerra no Oriente Médio, com a sua pequenez para resolver os conflitos internacionais.
“Mas não foi sempre assim?” – pergunta-me a pequena Laura, entrando na pré-adolescência e já se interrogando sobre o mundo das aparências, usando apropriadamente as minhas próprias palavras. Como são precoces as crianças de hoje em dia. Questionado, com a caneta na mão (e como isso soa anacrônico também. E quem, dessa nova geração, sabe realmente utilizar uma esferográfica? Saberão eles, um dia, do supremo prazer de coçar o ouvido com a tampinha de uma Bic? Tenho minhas dúvidas. Mas espero que desfrutem de prazeres outros a mim já inalcançáveis), lembro-me, então, de me preocupar genuinamente, em minha juventude, muito mais com a sorte de Smierdiakóv, de “Os Irmãos Karamazóv”, o clássico de Dostoiévski, do que com a saúde de seu Antoninho, o franzino sapateiro que acostumei-me a ver trabalhando em sua oficina por anos e anos a fio, o qual veio a morrer de uma doença que até hoje não sei qual era. Refletindo, a partir do questionamento da pequena Laura, o mundo, pelo menos o meu, já era virtual há muitos anos atrás, bem antes de os computadores se tornarem um eletrodoméstico comum a todos os lares . Eu tinha a capacidade, não sei se boa ou ruim (ainda hoje a tenho), de me condoer dos personagens fictícios dos romances que eu lia. Assim, Pater Sanctus e Pater Angelus, de “A Abadia dos Beneditinos”, eram para mim tão ou mais reais que os meus colegas de classe, com os quais eu convivia e aprontava as traquinagens típicas da idade, como botar bombas para rebentar o relógio de luz do colégio ou tocar fogo nas cortinas do teatro. Não sou daqueles que louvam os tempos antigos em detrimento dos atuais (sou capaz de reconhecer os avanços e as benfeitorias que a tecnologia traz, como o barateamento do alimento para a população mundial ou a democratização da informação), mas que as opções eram mais fáceis, lá isso eram, não tínhamos tantas alternativas de escolha. Nem sei, atualmente, dizer se isso, as poucas alternativas, é bom ou ruim, só sei que era mais fácil. Sei que os adolescentes de hoje dirão amanhã as mesmas, ou quase as mesmas, palavras.. É natural pensar que o tempo da nossa meninice foi melhor por já estar catalogado, rotulado, sem perigo aparente de nos passar uma rasteira quando menos esperamos, corroborando o dito popular de que águas passadas não movem moinhos. Tenho cá comigo que, muitas vezes, essas águas são capazes de ficar à espreita, anos a fio, à espera de um descuido qualquer. São mágicas as águas do passado.
Não sou nenhum fanático pelas novas tecnologias. Uso-as, se tiver que usá-las. Devo admitir, para melhor compreensão, que, apesar de ser um defensor dos computadores e da internet, também das redes sociais, não tenho telefone celular, e nunca tive. E faço questão de não tê-lo. Que problema o telefone celular representa para mim? Não é bem o celular, mas o uso que fazem dele. O pior dos problemas, a meu ver é quando se atende uma chamada e a primeira coisa que, do outro lado, alguém diz é: Onde você está? Ora, onde eu estou?! Isso não é da conta de ninguém! As pessoas não têm mais o direito de estar onde bem entender. E se eu não quiser que saibam onde estou? Ora, nesse mundo totalitário, dou-me o direito de perambular por onde bem me aprouver. É o último resquício de liberdade individual: não quero ser encontrado, mesmo porque não estou perdido. E, mesmo que estivesse, não gritei por socorro. Então, deixem-me entregue à minha danação. Saboreio de antemão a cara de basbaques que farão quando pedem o meu número e respondo, convicto, que não tenho celular. O mais interessante é que isso soe como ameaça, desmantelando o mundinho das coisas estanques da grande maioria dos habitantes do planeta.
Reconheço, o mundo virtual é perigoso. Muitas doenças em decorrência do seu uso excessivo estão surgindo, mas a maior parte desses males é provocada pelos games. Há atividade mais danosa que o jogo? Sim, eu percebo o quanto essa assertiva pode soar preconceituosa às novas gerações. Fazer o quê? Não estou aqui para agradar ninguém. Não tenho veleidades políticas, logo posso dizer o que penso, o que bem entendo. O baralho sempre me causou, e causa, ojeriza. Nunca tive parentes viciados nas cartas, no pano verde, mas como eu sofri com o vício de Dostoiévski, solidarizando-me com ele, apesar de mais de um século a nos separar. O mundo virtual é, para mim, mais real que a própria vida. Consciente disso, sou, na maioria das vezes, capaz de me relacionar com as pessoas que me cercam, muito embora prefira a companhia de John Fante, aliás, a companhia de Arturo Bandini. A bela Camila Lopez faz parte da minha família, desde a primeira vez que nos encontramos, nas páginas de “Pergunte ao Pó”. Acredito que o livro impresso é bem mais capaz de alienar alguém; nele, somos obrigados a comungar com os personagens, se quisermos usufruir plenamente da obra. A pequena Laura continua ao meu lado, interessadíssima nas minhas digressões. Só ela mesma, com a doce ingenuidade diante do mundo adulto, para acreditar em tudo que digo e escrevo. Revelo-lhe agora, olhando bem dentro dos seus olhinhos de passarinho, um segredo que deve permanecer entre nós dois: quando li “O Judeu Errante”, apesar de envolvido com a gama de personagens, senti-me, ao final dos quatro volumes, traído, ao perceber que o judeu do título, o qual aparece pouquíssimas vezes e sem nenhuma relevância, é somente um chamariz do qual o autor, Eugène Sue, se vale para atrair os leitores do jornal no qual publicava os capítulos do seu folhetim; o judeu errante era moda na França do século XIX...
- O que é um “judeu errante”, vovô? Assim como eu, é também uma realidade virtual?
Cada vez, o país tem menos livrarias. Uma pesquisa estatística dos meus tempos de menino, isso lá pelos anos 1970, já dizia que o Brasil todo tinha menos livrarias que Buenos Aires, a capital da Argentina. Sim, é necessário esclarecer que a Buenos Aires a que me refiro é esta porque há também uma Buenos Aires nordestina, antigamente conhecida pelo nome de Jacu, cidade natal do meu avô pernambucano. Mais recentemente, vi um documentário sobre o apreço dos jovens argentinos pela leitura, mostrando que os seus pontos de encontro são as livrarias. Um amigo que para lá viajou, voltou encantado com os sebos da capital, os quais vendem, além de livros, revistas e discos, também jornais antigos, o que nenhum sebo brasileiro sequer cogita comercializar, devido à dificuldade de conservação. Pode soar anacrônica essa minha preocupação com livrarias físicas em tempos de informação virtual. A celeridade da internet é algo que desorienta qualquer um nascido no século passado. E quando digo “século passado”, como isso soa distante, apesar de estarmos vivendo há somente 15 anos neste novo século. Nunca o homem sentiu tão rápida a passagem do tempo como nos dias atuais; a nossa consciência dos acontecimentos ao redor (e tenho a impressão de que, ultimamente, tudo acontece a um palmo do meu nariz ou dos meus olhos). Se o mundo já parecia pequeno no século anterior, tornou-se agora, com o incrível avanço da tecnologia, diminuto. Podemos nos solidarizar com a dor do povo da pequena Tuvalu, no distante Pacífico, prestes a desaparecer tragada pelo mar, do que com a perda de um ente querido do nosso vizinho do apartamento em frente, muito embora o cumprimentemos todos os dias pela manhã, perguntando com um sorriso amigável, plástico, se ele está bem. Acontece que ele, invariavelmente, responderá que sim, que tudo está bem, embora não esteja. Estará preocupado com a guerra no Oriente Médio, com a sua pequenez para resolver os conflitos internacionais.
“Mas não foi sempre assim?” – pergunta-me a pequena Laura, entrando na pré-adolescência e já se interrogando sobre o mundo das aparências, usando apropriadamente as minhas próprias palavras. Como são precoces as crianças de hoje em dia. Questionado, com a caneta na mão (e como isso soa anacrônico também. E quem, dessa nova geração, sabe realmente utilizar uma esferográfica? Saberão eles, um dia, do supremo prazer de coçar o ouvido com a tampinha de uma Bic? Tenho minhas dúvidas. Mas espero que desfrutem de prazeres outros a mim já inalcançáveis), lembro-me, então, de me preocupar genuinamente, em minha juventude, muito mais com a sorte de Smierdiakóv, de “Os Irmãos Karamazóv”, o clássico de Dostoiévski, do que com a saúde de seu Antoninho, o franzino sapateiro que acostumei-me a ver trabalhando em sua oficina por anos e anos a fio, o qual veio a morrer de uma doença que até hoje não sei qual era. Refletindo, a partir do questionamento da pequena Laura, o mundo, pelo menos o meu, já era virtual há muitos anos atrás, bem antes de os computadores se tornarem um eletrodoméstico comum a todos os lares . Eu tinha a capacidade, não sei se boa ou ruim (ainda hoje a tenho), de me condoer dos personagens fictícios dos romances que eu lia. Assim, Pater Sanctus e Pater Angelus, de “A Abadia dos Beneditinos”, eram para mim tão ou mais reais que os meus colegas de classe, com os quais eu convivia e aprontava as traquinagens típicas da idade, como botar bombas para rebentar o relógio de luz do colégio ou tocar fogo nas cortinas do teatro. Não sou daqueles que louvam os tempos antigos em detrimento dos atuais (sou capaz de reconhecer os avanços e as benfeitorias que a tecnologia traz, como o barateamento do alimento para a população mundial ou a democratização da informação), mas que as opções eram mais fáceis, lá isso eram, não tínhamos tantas alternativas de escolha. Nem sei, atualmente, dizer se isso, as poucas alternativas, é bom ou ruim, só sei que era mais fácil. Sei que os adolescentes de hoje dirão amanhã as mesmas, ou quase as mesmas, palavras.. É natural pensar que o tempo da nossa meninice foi melhor por já estar catalogado, rotulado, sem perigo aparente de nos passar uma rasteira quando menos esperamos, corroborando o dito popular de que águas passadas não movem moinhos. Tenho cá comigo que, muitas vezes, essas águas são capazes de ficar à espreita, anos a fio, à espera de um descuido qualquer. São mágicas as águas do passado.
Não sou nenhum fanático pelas novas tecnologias. Uso-as, se tiver que usá-las. Devo admitir, para melhor compreensão, que, apesar de ser um defensor dos computadores e da internet, também das redes sociais, não tenho telefone celular, e nunca tive. E faço questão de não tê-lo. Que problema o telefone celular representa para mim? Não é bem o celular, mas o uso que fazem dele. O pior dos problemas, a meu ver é quando se atende uma chamada e a primeira coisa que, do outro lado, alguém diz é: Onde você está? Ora, onde eu estou?! Isso não é da conta de ninguém! As pessoas não têm mais o direito de estar onde bem entender. E se eu não quiser que saibam onde estou? Ora, nesse mundo totalitário, dou-me o direito de perambular por onde bem me aprouver. É o último resquício de liberdade individual: não quero ser encontrado, mesmo porque não estou perdido. E, mesmo que estivesse, não gritei por socorro. Então, deixem-me entregue à minha danação. Saboreio de antemão a cara de basbaques que farão quando pedem o meu número e respondo, convicto, que não tenho celular. O mais interessante é que isso soe como ameaça, desmantelando o mundinho das coisas estanques da grande maioria dos habitantes do planeta.
Reconheço, o mundo virtual é perigoso. Muitas doenças em decorrência do seu uso excessivo estão surgindo, mas a maior parte desses males é provocada pelos games. Há atividade mais danosa que o jogo? Sim, eu percebo o quanto essa assertiva pode soar preconceituosa às novas gerações. Fazer o quê? Não estou aqui para agradar ninguém. Não tenho veleidades políticas, logo posso dizer o que penso, o que bem entendo. O baralho sempre me causou, e causa, ojeriza. Nunca tive parentes viciados nas cartas, no pano verde, mas como eu sofri com o vício de Dostoiévski, solidarizando-me com ele, apesar de mais de um século a nos separar. O mundo virtual é, para mim, mais real que a própria vida. Consciente disso, sou, na maioria das vezes, capaz de me relacionar com as pessoas que me cercam, muito embora prefira a companhia de John Fante, aliás, a companhia de Arturo Bandini. A bela Camila Lopez faz parte da minha família, desde a primeira vez que nos encontramos, nas páginas de “Pergunte ao Pó”. Acredito que o livro impresso é bem mais capaz de alienar alguém; nele, somos obrigados a comungar com os personagens, se quisermos usufruir plenamente da obra. A pequena Laura continua ao meu lado, interessadíssima nas minhas digressões. Só ela mesma, com a doce ingenuidade diante do mundo adulto, para acreditar em tudo que digo e escrevo. Revelo-lhe agora, olhando bem dentro dos seus olhinhos de passarinho, um segredo que deve permanecer entre nós dois: quando li “O Judeu Errante”, apesar de envolvido com a gama de personagens, senti-me, ao final dos quatro volumes, traído, ao perceber que o judeu do título, o qual aparece pouquíssimas vezes e sem nenhuma relevância, é somente um chamariz do qual o autor, Eugène Sue, se vale para atrair os leitores do jornal no qual publicava os capítulos do seu folhetim; o judeu errante era moda na França do século XIX...
- O que é um “judeu errante”, vovô? Assim como eu, é também uma realidade virtual?
quarta-feira, 13 de maio de 2015
RESGATADORES DE CARROSSÉIS DOS SONHOS ALHEIOS
Edson Negromonte
“Minha função é resgatar carrosséis dos sonhos alheios”. Esta função não se escolhe, somos designados a ela desde o primeiro despertar espiritual. Não sei precisar, com certeza absoluta, se se faz por merecê-la, acredito que sim porque no Universo não existe acaso, todos os acontecimentos são parte da lei cósmica, logo inexorável, de causa e efeito, ação e reação, sabia e claramente enunciada pelo resgatador Isaac Newton. O fato é que esse aparentemente insólito ofício, sublime e reparador, existe: resgata-se o carrossel, ou mesmo os carrosséis, de outra pessoa – jamais o carrossel do seu próprio sonho. Ou de seus próprios sonhos. Resgata-se, afinal, carrosséis que iriam ser desmontados, carrosséis de parques de diversões, carrosséis que iriam virar sucata. Para se resgatar esses velhos carrosséis é necessário que se recupere primeiramente a lembrança infantil que os adultos conservariam dessas máquinas, o material de que são constituídos. Só quem teve a oportunidade de observar um carrossel novinho, recém-saído da fábrica e ainda sem uso, pode constatar quão sem vida, amorfo, estritamente mecânico, é ainda sem anima essa geringonça, a qual será posteriormente batizada de “carrossel”, cujo nome oriundo do fantástico remonta às primeiras Cruzadas.
O passo seguinte, depois de resgatado o carrossel de um determinado sonho, é alimentar os cavalinhos, e escovar-lhes o pelo, até que voltem a brilhar sedosos como antigamente, quando os seus proprietários eram crianças e ainda não tinham adquirido o sentimento de posse. Descobre-se, depois de certo tempo, como resgatador de carrosséis dos sonhos alheios, a existência de uma confraria de resgatadores. Não se sabe da existência dessa confraria até que se seja digno de conhecê-la. Essa descoberta ocorre justamente quando o resgatador sente-se solitário, à parte de tudo e de todos, questionando inclusive a sua capacidade, e o poder a ele outorgado, de resgatar carrosséis que iriam apodrecer nos ferros-velhos de beira de estrada. Quando a solidão chega ao ponto mais extremo, quando essa sensação dói como a visão da lágrima da baleia ao ver o filhote arpoado, sangrando no oceano que até então lhe fora o lar seguro, quando o leite da mãe se espalha incontrolável pela água salgada, tingindo de branco o azul profundo do oceano ao redor. Só, então, nesse momento de suprema dor, quando se é, ao mesmo tempo, a baleia, o filhote, o arpão e o arpoador, e o oceano, lhe é dado tomar conhecimento da existência de outros iguais a você: resgatadores de carrosséis dos sonhos alheios.
Não se resgata nada dos próprios sonhos, isso é vedado a qualquer resgatador. Por isso, o nome de “resgatador de coisas dos sonhos alheios”. Mesmo sem consciência, somos todos, uns mais, outros menos, resgatadores de coisas dos sonhos alheios. Em vigília, por uma questão de misericórdia, jamais lembramos que resgatamos algo dos sonhos de alguém ou que alguém resgatou algo de nossos sonhos. Sim, a misericórdia divina! Como conseguiríamos continuar vivendo nas horas de vigília se soubéssemos que, durante o sono, temos a suprema missão de resgatar carrosséis de sonhos alheios. Como poderíamos amarrar os sapatos sem uma expressão de revolta, ou no mínimo de tédio, diante dos atos comezinhos do cotidiano, quando em nossas horas de sono somos muito mais do que qualquer homem jamais sonhara. Ou sonhará. Como conviver pacificamente com a finitude se somos deuses?
Existem os mais variados tipos de resgatadores, como aqueles que resgatam coleções de tampinhas de cerveja. De maços de cigarros Saratoga. De garrafas de leite, deixadas nas portas das casas, de madrugada. Das bicicletas dos entregadores de pães. Ou os resgatadores de estampas do sabonete Eucalol. Estes resgatadores existem em grande quantidade, pois os colecionadores de tampinhas de cerveja e de estampas Eucalol eram comuns quando os lares ainda não eram assombrados pela televisão. Raros mesmo, raríssimos, são os resgatadores de coleções de fotos da atriz Patrícia Medina dos sonhos dos meninos de suspensórios. É preciso também que se diga que um resgatador de carrosséis dos sonhos alheios jamais se tornará um resgatador de coleções de fotos de Patrícia Medina, porque se nasce designado a uma determinada classe de resgate. Não há maior ou menor mérito em qualquer tipo de resgate, apenas se exerce a função para a qual se desperta durante o sono reparador das atribulações do dia-a-dia.
Além dos resgatadores de coleções de fotos de atriz Patricia Medina, outra classe muito curiosa é a dos resgatadores das pequenas peças de víspora perdidas nos desvãos das escadas de madeira que dão acesso aos sótãos. Geralmente, estes resgatadores têm a voz pequena e suave para não se sentirem tentados a cantar o número das pedras e, assim, acordar aquele que dorme e de quem se está resgatando as pequenas peças de víspora. É preciso ser muito sutil quando se penetra nos sonhos de alguém, é preciso entrar pé ante pé para que o pretenso proprietário da coisa que se vai resgatar não acorde durante a ação de resgate e, assim, agarrar-se àquilo que, um dia, lhe deu prazer e que, no momento atual, é um empecilho para o bom andamento da vida prática, condição a que grande parte da humanidade aspira. Só aos poetas é permitida a posse das ninharias da infância, ninharias essas que são o combustível para a confecção de um mundo próprio, o qual contém carrosséis, peças de víspora e fotos de Patricia Medina etc. A isso, costuma-se dar o nome de “inspiração” na falta de uma palavra mais adequada. Talvez “iluminação” seja mais apropriada. Uma classe assaz interessante é a dos resgatadores das caixas de música de porcelana, nas quais um rouxinol também de porcelana, canta o seu cobiçado canto; os resgatadores desta classe são geralmente desprendidos da grande maioria dos interesses materiais. Chama também atenção a leveza dos resgatadores dos tocos dos lápis de colorir que, quando não podem mais ser segurados pelos dedinhos das meninas, não são jogados fora, mas guardados nos estojos e ali permanecem indefinidamente como soldadinhos de chumbo de um exército que jamais irá à guerra até serem resgatados dos sonhos dos adultos que não tiveram coragem de se desfazer dos seus tocos dos lápis de cor.
Há resgatadores dos mais abrangentes aos mais específicos, muito embora nunca saibam da existência uns dos outros, a não ser quando são admitidos nas assembleias. Ao homem desperto, os resgatadores muito pouco se dão a conhecer, a não ser que haja necessidade de que se manifestem no mundo material. Mesmo quando o resgatador se manifesta neste mundo, o ceticismo humano, na grande maioria das vezes, o repele, relegando-o ao mundo das quimeras. Nestas ocasiões, o homem desesperado diante daquilo que já não pode compreender, nega com veemência esse mundo tênue e impalpável dos resgatadores dos sonhos alheios, esse mundo silfídico. Então, o homem atemorizado, diante do insofismável, empreende suas campanhas belicosas, extremamente perigosas para o equilíbrio das águas pluviais. Essa pobre criatura, dita humana, é treinada, desde o berço, para a guerra entre os da própria espécie, seja na escola, no lar ou em sociedade, mas principalmente em seu trabalho e nas relações de afetividade. Há resgatadores tão peculiares que chegam a ser nomeados “sublimes”. Pertencem eles à classe dos Resgatadores das Crônicas sobre os Resgatadores, crônicas essas que poderão ser lidas somente pelo Resgatador-mor, o qual sabe de tudo e de todos, desde as mais ínfimas às mais grandiosas ações, embora não haja nenhuma graduação entre as ações, mas se assim não escrevesse como me daria a entender? Então, isso significa que essas crônicas sobre os resgatadores jamais serão lidas pelo Resgatador-mor; ele já sabe tudo sobre nós.
O mundo dos resgatadores não é feito só da poeticidade fugaz que habita no mundo dos homens enquanto crianças. Essa poeticidade precisa ser resgatada quando Lea, a eterna infante de todos nós, começa a interferir em seus afazeres cotidianos e passa a atrapalhar as ações cotidianas, é quando o adulto acha por bem descartar, transformar em sucata das sombras, aquilo que foi o ponto de equilíbrio durante toda a sua vida. Então, os resgatadores dos sonhos alheios entram em ação. Há também resgates dolorosos, os mais dolorosos, porém necessários, como o das bonecas de corpo de pano e cabeça de porcelana, incineradas nos campos de concentração de Auschwitz ou Treblinka ou Sobibór ou ... Esse resgate provoca dores horríveis nos resgatadores durante as suas horas de vigília, como se as dores dessas crianças fossem as suas próprias dores, dores essas que jamais serão atenuadas, dores para as quais ainda não há lenimento conhecido. Estes resgatadores geralmente morrem cedo, têm a vida abreviada, como recompensa. Devo ainda dizer que nenhum de nós conhece efetivamente o Resgatador-mor; temos dele uma percepção, ou melhor, concepção que acontece individualmente a cada 144 anos. Então, nessa ocasião, nos dedicamos a resgatar a nossa própria coleção de concepções sobre o Resgatador-mor, concepções essas que lhe dão plena vivência.
Um dos mais eminentes resgatadores com quem tive o privilégio de travar conhecimento, em uma das nossas assembleias, atendia pelo nome terreno de Willy Wake, ou coisa que o valha, o cunhador da máxima terrível “What can be created, can be destroyed”, que resgatou com pujança a existência do Resgatador-mor, num tempo em que alguns resgatadores sublevaram-se na intenção de ocupar o Trono de Cristal. Esse axioma de Wake é, como todo axioma, indemonstrável e, por isso mesmo, porque ocorre em um sonho, é muito mais terrível, quase exorbitante, chegando a exercer a capacidade de profanação.
Ainda sobre o resgate dos carrosséis dos sonhos alheios, deve-se esclarecer que resgata-se não os grandes carrosséis, como o do Tivoli, na Dinamarca, mas os pequenos dos pequenos parques de diversões das cidades do interior, que surgidos do nada, se instalam nos terrenos baldios, nas festas da padroeira, e que, como surgiram, vão embora, desaparecem num passe de mágica, deixando marcas indeléveis na memória das crianças que neles brincaram, mas mormente na memória da criança que ficou olhando de longe, com medo dos cavalinhos, ou da criança que, por não ter dinheiro para neles gozar, alimentava a sua alma com o brilho dos olhos das crianças outras que no carrossel gozavam. Embora, este carrossel volte no ano seguinte, já não será o mesmo porque a criança já não é a mesma; um ano é uma eternidade na vida das pequenas almas, tudo acontece muito rápido, em alta velocidade, e quando se percebe a inocência está irremediavelmente perdida, os interesses já são outros, as roupas estão curtas, as tranças já foram substituídas por outros penteados... e o tié-sangue já não pousa mais no galho da goiabeira no fundo do quintal.
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