quarta-feira, 15 de junho de 2016
JOEL BARONESA
por Edson Negromonte
Nos acontecimentos da cidade, ele era figura fácil. Esteve presente na apresentação do cômico Rony Cócegas no palco do Cine Ópera; esteve no julgamento do bandido Sete Facadas, que causou tanto burburinho e trouxe até a imprensa internacional ao nosso pequeno tribunal; assim como estava à frente da multidão curiosa que foi ver o círculo de pasto queimado que a nave alienígena deixara na propriedade de Edgar Withers. Ele próprio, Joel, era um evento por si só: quando os dias se arrastavam preguiçosamente na modorra típica do nosso cotidiano, Joel fazia de tudo para amenizá-la. Por isso, lembrar e falar de Joel é necessário. Vale a pena começar pelo apelido que o marcaria por toda vida, desde a adolescência: Baronesa. Não se dizia simplesmente Joel, mas invariavelmente Joel Baronesa. A origem do apelido vem de sua irmã mais velha ter se casado com um barão russo, que aportou na cidade, vindo da Rússia czarista, para explorar o ferro-gusa. Tão logo o barão André de Ludinghausen Wolff, anteriormente casado com a princesa russa Xênia Shcherbatoff-Strogonov, parenta do inventor do estrogonofe, chegou, e entre as beldades da cidade, tomou-se de amores por ela, a belíssima e radiante Ieda, a qual, com o casamento, tornou-se baronesa consorte. Seria para sempre e para todos Ieda Baronesa. Do título de nobreza da irmã, mas principalmente do costume de surrupiar da casa dela pequenos objetos, como um belíssimo baralho árabe ou minúsculos bibelôs de cristal vermelho de Muhlbeck, para revendê-los, é que Joel seria para sempre e por todos conhecido como Joel Baronesa.
Joel, de baixa estatura e belos e inquietantes olhos verdes, tinha uma voz belíssima, com a qual fazia malabarismos vocais que o faziam perder o tom, prejudicando a performance; adorava dar uma canja nos clubes com música ao vivo. Sua canção favorita, na qual ele se superava como crooner, era “Castigo”, de Dolores Duran, à qual ele emprestava, no trecho final, um balanço típico do rock, à imitação de Os Incríveis, somente com muito mais molho, algo na linha do Simonal, e emendava os versos "I love you, baby/And if it's quiet all right/I need you, baby/To warm the lonely nights/I love you, baby/Trust in me when I say", de "Cam't Take My Eyes Off You", a clássica balada de Frankie Valli and the Four Seasons.
Lembrar de Joel é trazer à tona as suas peripécias, as quais deveriam pelo inusitado fazer parte dos anais da cidade, dignas de serem contadas à volta da mesa, nas noites geladas de inverno, quando um fogo arde no chão e os moradores das casas tornam-se, em sua grande maioria, contadores de casos, os quais os aproximam, aquecendo seus corpos e corações. Assim que cheguei à cidade, a primeira história de Joel que ouvi foi sobre o acidente recente com o Volkswagen do seu padrasto, a quem ele tratava por Padrinho. Sem o que fazer, em uma das tardes típicas da cidade, sonolentas, Joel e alguns amigos resolveram roubar o fusca do velho para “dar um ferro”, gíria usada à época que significava andar a toda, perigosamente, com os infalíveis cavalos de pau. Com a derrapagem em alta velocidade, capotar é uma possibilidade nada remota. E foi justamente o que aconteceu com o fusca do seu Nonô, apinhado de rapazes e moças, naturalmente ávidos por viver perigosamente. Alguns foram parar no hospital. Um dos que saíram ilesos do acidente, Johnny Saci, fazia questão de contar a todos que, quando conseguiu sair do meio das ferragens retorcidas do carro, Joel olhou desconsolado para o guarda-chuva escangalhado do padrasto e disse: – Olha o guarda-chuva de padrinho, o que eu vou dizer em casa?
Uma noite, a comoção foi geral: o Vasquinho, a única viatura policial da cidade, era motivo da aglomeração em frente à casa de Joel Baronesa, ao lado do cinema, ao final da sessão, por volta das 10. Os ladrões tinham entrado na casa dos seus pais, para roubar, contava Joel para os dois policiais e para a turba de curiosos, e, como ele houvera reagido, os patifes lanharam o seu peito com uma faca de ponta, a qual se encontrava sobre a pia da cozinha. Enquanto um dos policiais levava Joel ao pronto-socorro, o outro examinava a cena do crime. Balançando a cabeça, o sargento tomou da faca, examinado-a demoradamente, com ar investigativo, coisa que aprendera assistindo filmes noir, de detetive. Após o silêncio que se instaurou no ambiente, depois de revirar o punhal nas mãos, sem nenhum cuidado técnico com a prova do crime, o sagaz sargento Pé de Galinha deu a sua opinião, que era muito mais um veredito que qualquer outra coisa, devido à sua indiscutível autoridade:
– Ladrão coisa nenhuma, foi ele mesmo que se cortou. Com que intenção, é o que vamos descobrir.
Em uma tarde de brincadeiras no morro, estavam os rapazes, em puro exibicionismo para as moças presentes, a se balançar para lá e para cá em um longo cipó. Lá em baixo, a aproximadamente dez metros de altura, os trilhos do trem. Na vez de Joel, um gaiato gritou maldosamente:
– Joel, duvido que você solte o cipó!
Ato contínuo, Joel estatelou-se nos trilhos. Resultado: à tarde, Joel desfilava, todo orgulhoso, pelas ruas centrais, exibindo os dois braços engessados. Joel sentia-se amado quando as pessoas lhe davam atenção, condoíam-se dele, sua carência afetiva era enorme, do tamanho do seu ego.
Joel era doido por carros, mas principalmente pela velocidade que essas máquinas diabólicas representam; a adrenalina foi sua companheira mais constante. Parecia que, nas suas mãos, um carro atingia velocidades inimagináveis, transformando-se em um bólido flamejante, muito próximo da explosão. Certa feita, Joel estava ao volante do Gordini de Reinaldo Cara de Chuva, que, de tão bêbado, estava incapacitado para dirigir; iam os dois pela estrada Morretes-Antonina. Cara de Chuva, então, apertado para urinar, olhou pela janela e, devido ao alto teor etílico, supôs que o carro estivesse parado. Abriu a porta do Gordini, que estava a quase 100 por hora, rolando feito um pacote pelo asfalto. Mas como Deus protege os insensatos, incluindo na lista os bêbados, ele sobreviveria para contar o incidente, arrancando risadas dos presentes.
A melhor história de Joel tem como coadjuvante o comerciante libanês conhecido como Jorge Bigode; era ele de uma educação à toda prova, nada era capaz de tirá-lo do sério, nem mesmo quando as pessoas referiam-se a ele como turco. Uma noite, Jorge e Joel foram à zona de meretrício no Km 4, somente para tomar umas cervejas e dançar com as putas, como era de praxe entre os jovens da cidade. Já calibrados, resolveram parar no Clube Primavera, no bairro do Batel, para tomar mais umas brejas. Joel, aproveitando-se do estado alterado de Jorge, pediu-lhe emprestado a chave do carro, alegando que esquecera alguma coisa na zona. O que Joel queria mesmo era dar vazão ao seu amor pela velocidade. E pelo perigo, evidentemente. Assim, começou a correr pelo asfalto molhado, dando os mais perfeitos cavalos de pau, chegando a atingir um giro perfeito de 360 graus. Mas como o Capeta está sempre atento ao menor vacilo do ser humano, numa dessas Joel evidentemente capotou. Imediatamente, Jorge Bigode foi avisado que Joel estava estendido no asfalto, esvaindo-se em sangue. A bebedeira de Jorge passou no mesmo instante, e ele correu em socorro do amigo, encontrando-o ainda desmaiado, ao lado do seu carrinho capotado, comprado a duras penas. Nem ligou para o carro, acenou para um táxi que ia passando e levou o amigo direto para o hospital, que ficava próximo dali. Depois que deixou Joel sob cuidados médicos e de providenciar que o carro fosse guinchado para o posto de gasolina mais próximo, como não tivesse mais nada para fazer à noite, Jorge achou por bem voltar ao clube e retomar a conversa com uma moça que ele vinha cortejando há algum tempo. Ao subir ao salão, quem Jorge encontra dançando com a sua pretendida, como se nada tivesse acontecido? Sim, Joel! Desta vez, o turco perdeu as estribeiras, avançou sobre Joel e, sem se preocupar com curativos e ataduras, passou a esmurrá-lo sem dó nem piedade.
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