quinta-feira, 27 de julho de 2017
MARIA AMÁLIA DURANT
Edson Negromonte
Vá querer entender as pessoas ao seu redor e você acaba escrevendo um conto. Ou uma crônica, sei lá. O que importa é deixar isso registrado, mesmo que não sirva para nada, mesmo que o tempo, esse devorador voraz de papéis, se encarregue de devolver a sua narrativa ao seu devido lugar. Ao limbo? Ao nada! E, justamente por isso, escreverei hoje sobre a poetisa Maria Amália Durant, tio Mario e meu pai, sem a mínima garantia de sobrevivência.
Se você vasculhar as enciclopédias e a internet, encontrará muito pouco sobre Maria Amália Durant, levando-se em conta o que ela significou para mim. Antes de sabê-la escritora, eu a vira a primeira vez no apartamento de cobertura de seu pai, o marechal Heliodoro, em Copacabana. E foi o que bastou para nunca mais tirá-la da cabeça. Ela era de uma beleza estonteante! Isto pode ser comprovado no anúncio dos cigarros Capri, publicado na quarta capa das revistas de maior circulação da época, incluindo a Realidade. Pode-se saber também que ela estreou com o livro de poemas “Embaúba”, de 1974, comentado por João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, seguido por “Canção do Motim”, de contos, publicado no ano seguinte, e que lhe rendeu o prêmio Jabuti. Após um hiato de quase dez anos, vêm a lume “Tigres na Varanda” e “Sob a Chuva, em Damasco”, ambos de 1984. Sabe-se ainda que participou da coletânea de contos eróticos femininos “Clitoridianas”. Maria Amália exerceu a diplomacia nos Estados Unidos, França e Angola, além de Carlo Domenico dedicar a ela o poema “Rubai Impaciente”.
Maria Amália era uma prima distante, em terceiro ou quarto grau, que fazia-se presente, sempre que podia, nas reuniões familiares. Todos a amavam, principalmente os homens; onde estivesse, podia-se contar como certa uma roda de cavalheiros ao seu redor, os quais riam muito das suas historinhas, por mais insignificantes que fossem. Ela magnetizava as atenções, e isso despertava a inveja das outras mulheres, principalmente a de minha tia Doralice, irmã mais nova de minha mãe. O rancor de tia Doralice chegava ás raias de desmerecer o seu livro “Embaúba”; o qual ela enviara, com dedicatória carinhosa, para os meus avós. Surpreendi-me com os comentários de que aquilo não era poesia, que era uma mixórdia de palavras sem nexo, querendo parecer inteligente, de que ela jamais vivera entre os gigantes krenakarore etc. Minha personalidade ressente-se da falha de se interessar por aquilo que os ditos bem pensantes insistem em ridicularizar. E qual não foi a minha surpresa ao deparar com uma poesia de alta voltagem, disposta em versos mallarmaicos. Ali, exatamente naquele momento de epifania, eu me apaixonei perdidamente por Maria Amália. Na ignorância dos quinze anos, eu desconhecia outras mulheres que escrevessem poesia. E a bela foto de Maria Amália, na orelha do livro, era um convite aberto aos devaneios de um coração juvenil, aflito pelo amor das mulheres um pouco mais velhas; a minha mais nova musa contava então 34 anos. E o que seria da poesia se as musas fossem possíveis?
Eu só pensava em Maria Amália. E eu que, depois da morte de tio Mario, me achava o único gauche restante na família, tinha agora companhia. E que companhia! Quando tio Mario, o meu exemplo de insegurança, era vivo, passávamos as manhãs conversando sobre poesia e poetas e livros. E sobre amores não correspondidos. Eu nunca soube que tio Mario tivesse escrito um único verso, mas ele era um leitor costumaz de poesia, capaz de recitar poemas longos de memória.
Minha cabeça girava à mais leve lembrança de Maria Amália, seu corpo esguio, o cabelo curto e loiro, o cigarro entre os dedos... Foi, então, que mamãe resolveu me contar sobre o romance de Maria Amália e papai. Meu pai era bancário, eterno auxiliar de escrita, era assim que ele ganhava a vida, era assim que ele abastecia a geladeira, mas o que lhe dava prazer mesmo era escrever novelas de rádio. Era assim, e somente assim, que ele sentia-se realizado, mesmo que seu nome não fosse pronunciado na abertura; papai era um ghost writer, e, mais que tudo, papai era um indivíduo canhestro, foi dele que provavelmente herdei essa inaptidão para a vida prática. Dele e de tio Mario, seu irmão mais novo. O banco não permitia que os seus funcionários tivessem outra ocupação profissional. E papai, conforme contaram seus colegas, além de engendrar as tramas mais aventurescas, dignas das melhores novelas cubanas, ainda fazia as vezes de sonoplasta, ou contrarregra, como era chamado na época esse profissional.
Papai era capaz de criar um temporal esfregando, próximo ao microfone, uma folha de papel celofane, ou um rio que corresse tranquilo em seu leito, agitando levemente as mãos em um balde cheio de água, ou um incêndio crepitante e devastador, amassando ritmicamente uma folha de papel sulfite, ou o tiquetaquear de um antigo relógio de parede, simplesmente batendo o lápis contra a aliança, para ilustrar a passagem do tempo. O grande sucesso de papai, na Rádio Clube Torres do Pilar, foi a novela de aventura “O Avantesma”, uma mistura bem-sucedida de dois heróis americanos, o Fantasma e o Sombra, com mais de 400 capítulos, que eletrizavam os ouvintes, com índices de audiência superiores aos da Rádio Nacional, do Rio de Janeiro. Assim foi que Maria Amália caiu de amores pela sua figura esquelética e carismática. Assim foi que ele a ensinou a dirigir no seu Ford Prefect, o carrinho inglês pelo qual ele tinha o maior zelo. Não que papai fosse bonito, não era, mas era, como se dizia naquele tempo: um tipo. Maria Amália era uma adepta do existencialismo, era mulher de um tempo em que as mulheres apaixonavam-se pelo intelecto de um homem. Se não, como explicar Simone de Beauvoir e Sartre, e Jane Birkin e Serge Gainsbourg. E assim ela, que acreditava convictamente no amor livre, despediu-se de papai e mamãe, toda sorridente, sem culpa nenhuma, com ares de menina levada.
E, passados tantos anos, nesta manhã de inverno, de sol tímido, filtrado através de colossais folhas de bananeira, ainda posso ver tio Mario, quietinho, sentado em uma cadeira no quintal, aquecendo o corpo franzino, como se ainda estivesse no quintal da casa em Arequipa, no Peru, alheio a tudo, assuntando o carreiro das formigas. Percebendo-me, faz um sinal, pedindo que me aproxime. Então, segreda em meu ouvido, em tom confessional, como fazia quando queria comigo compartilhar, e somente comigo, uma das suas sublimes descobertas, uma das suas pequenas iluminações:
– O amor, como o conhecemos, como o conhece o homem moderno ocidental, é ficção, é uma invenção de Arnaut Daniel.
E isso, felizmente, me redime de todos os amores, correspondidos ou não. E a última vez que eu soube de Maria Amália, ela estava morando na vila grega de Oia, na ilha de Santorini.
quarta-feira, 19 de julho de 2017
ADAM WEST ou O MENINO QUE TINHA MEDO DO BATMAN
Edson Negromonte
Agora que os órfãos de Adam West já o prantearam, tecendo-lhe as merecidas loas, é chegada a minha hora de chorar a sua morte. Sou assim mesmo, prefiro não reagir no primeiro momento. Tenho de deglutir, assimilar, para não falar ou escrever bobagens, sob o impacto da notícia; quando a recebi, através da TV, disse somente: – Ah, não!
Adam West foi uma personalidade, ou personagem?, tão importante na vida dos meninos ocidentais de meados da década de 1960, e da década seguinte, que jamais pude supor a sua morte, mesmo tendo a única certeza de que todos morreremos um dia, sejamos cidadãos comuns (e ninguém é um cidadão comum ou somos todos cidadãos comuns) ou heróis, sejam eles de papel ou televisivos, sejam eles históricos e reais. Sim, você sabe, estou falando do, para mim, ainda definitivo Batman. Os meninos dos anos 80 foram brindados com o espetacular filme de Tim Burton, baseado na versão de Frank Miller, no qual o homem-morcego recebe o título de “cavaleiro das trevas”, dando-lhe novo fôlego e ressuscitando o combatente do crime para uma nova geração, a qual, acostumada a atores marombados, tipo Schwarzenegger (Conan) e Stallone (Rambo), fazia pouco caso do físico de Adam West, referindo-se a ele como “aquele Batman barrigudo”.
A falta de informação dos meninos de 1980 não lhes dava a visão histórica de que, antigamente, os heróis não precisavam ser abrutalhados ou musculosamente deformados; à custa de esteroides. Basta lembrar que o Super-homem, o homem mais forte do mundo, em uma série clássica dos 1950, era vivido por George Reeves, que não era nenhum ser fora do normal, nem excessivamente espadaúdo. Mesmo o audacioso capitão Kirk, da série “Jornada nas Estrelas” (Star Trek), aquele que ousou ir onde nenhum homem jamais esteve, tinha uma pequena protuberância abdominal. Outro personagem que me vem de imediato à mente é Jim das Selvas, vivido por um Johnny Weissmuller já maduro, com uma certa pancinha. Mas mesmo nos filmes em que o jovem Weissmuller vive Tarzan, o homem-macaco criado por Edgar Rice Burroughs, ele não era nenhum amontoado de bíceps e tríceps. Curiosamente, Johnny Weissmuller tinha síndrome de Down, a qual foi amenizada, por orientação médica, com exercícios de natação; ele chegou a ganhar cinco medalhas de ouro como campeão olímpico. Somente o incrível Hulk tinha permissão para ser grotescamente musculoso, interpretado por Lou Ferrigno, o Míster Universo de 1973 e 1974, fazendo valer a máxima “muito músculo, pouco cérebro”.
E o que um brasileiro contaria de novo sobre Adam West que os livros e sites americanos já não tenham contado e recontado à exaustão, e com muito mais propriedade? Que o menino Adam, aliás, William, este era o seu verdadeiro nome, por volta dos dez, doze anos de idade, ganhou do vizinho uma caixa cheia de revistas e que aquela que mais lhe chamou a atenção foi justamente o gibi de número 27, da série Detective Comics, cuja capa estampava o Batman em ação? Que, adolescente, Adam flagrou sua mãe na cama com o pastor da igreja local? Que o jovem Adam, em início de carreira, no programa infantil The Kini Popo Show, era o sidekick da estrela principal, um macaco? Que Adam West chamou a atenção dos produtores da ABC, quando o viram interpretando o sagaz capitão Q, em um comercial do Quick? Dito isto, a minha contribuição, como brasileiro, deve ser registrar, quase etnologicamente, como o personagem trafega no corrente cultural do País. E, também, nas minhas lembranças.
E, assim, na lembrança dos brasileiros, porque acredito, neste caso, que só falando de mim mesmo é que estarei falando do outro. Em 1969, no IV Festival Internacional da Canção, promovido pela TV Globo, o compositor Jards Macalé aterroriza a plateia com a música “Gotham City”, a cidade natal de Bruce Wayne, o alter ego de Batman, arranjada pelo provocador maestro Rogério Duprat, cuja letra de Capinam alerta “Há um morcego na porta principal’, uma metáfora para o horror que a ditadura militar, então no poder, infligia aos brasileiros, prendendo, torturando e matando aqueles que se insurgiam contra ela. A ideia inicial era soltar um morcego em direção à plateia, durante o refrão, mas, devido aos tempos bicudos em que vivíamos, com a polícia prendendo e espancando ao seu bel-prazer, acharam melhor não cutucar a onça com vara curta; teriam antecipado Ozzy Osbourne em pouco mais de uma década. Na literatura, o escritor Roberto Drummond , no livro “A morte de D.J. em Paris”, de 1971, se apropria do personagem pra escrever o conto “A sete palmos do paraíso”.
Meu primeiro contato com Batman foi, como não podia deixar de ser, aterrorizante: em um domingo de sol ,em Copacabana, o vento folheava, desvairado, uma revista do encapuzado, abandonada na calçada. Eu, menino apaixonado por quadrinhos, quando fui pegá-la, sou surpreendido pela figura do morcego, o logotipo do Batman, na abertura de uma das histórias. Temeroso das coisas do Além, tomei um baita susto com a criatura sugadora de sangue (e isso me remete oportunamente a “Nosferato no Brasil”, de Ivan Cardoso”. Onde se vê dia,veja-se noite), coisa que me fez arredio ao homem-morcego durante um bom tempo. Mas o espírito galhofeiro da série camp (eu nunca a vi assim, talvez porque a alma brasileira seja, em sua essência, legitimamente brega), me fez rever os meus conceitos sobre o personagem e o infundado horror que o Batman provocava em minha alma medrosa, até que, em um final de tarde, me atrevi a comprar o meu primeiro exemplar da sua revista na banca. Apaixonei-me para sempre pelo Batman. Tanto, que cheguei a trocar um álbum de 78rpm, da Aracy de Almeida, cantando somente músicas de Noel Rosa, por uma miniatura, da Husky, de 1966, do batmóvel, a qual está avaliada em aproximadamente mil reais. Tanto, que costumo atender o telefone de casa com a frase “Batcaverna, boa noite!”. A série também despertou meu amor platônico por Julie Newmar, a Mulher-gato mais bem-acabada e bem torneada de todas; incluindo Michelle Pfeiffer, e que, apesar de ter gravado todos os 120 episódios da série, cheguei ao cúmulo de gravar, com som original, aqueles em que ela atuava, só para ouvir a hora que bem entendesse a voz sensual da gatíssima Julie Newmar, ronronando: Purrrfect!
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