quarta-feira, 13 de dezembro de 2017
A CASA AMARELA DA RUA XV
por Edson Negromonte
A primeira vez que entrei na casa amarela da rua XV foi um atordoamento, antes mesmo de ultrapassar o portal. O velho sobrado de três andares era assim chamado não somente pela cor característica e discordante (o restante do casario alternava entre azul e rosa, com detalhes em branco, como se houvesse um acordo tácito entre proprietários), apesar de esmaecida pela ação do tempo, mas também devido ao despeito e maledicência dos moradores da principal rua pela imponência da vetusta construção de inícios do século 18. Eu tinha jurado à minha mãe que nunca entraria naquela casa, a qual era associada a bruxarias e ritos satânicos, e desvios sexuais da pior espécie. (Minha mãe, todas as vezes em que se tocava no assunto “casa amarela da rua XV”, fazia questão de contar, como advertência, sem esquecer do pelo-sinal, a história do doutor Wellington, que viu-se obrigado a mudar para Torres do Pilar, uma cidade próxima, depois que a sua esposa Cinira teve um ataque histérico, ao presenciar os preparativos para um sabá, sob direção do próprio Senhor dos Infernos, com bruxas da mais alta patente, chegando aos montes, montadas em vassouras. O idoso casal era vizinho de frente da casa amarela da rua XV). Mas não pude, não pude mesmo, recusar o convite da minha colega de classe, aliás, mais do que isso, irmã da minha eterna paixão, a melancólica Carmila, das belas sobrancelhas espessas, que contava, naquele tempo, treze anos de idade. Eu era já um rapazola de dezessete anos. À primeira vista, olhada de fora, a casa amarela da rua XV parecia-se arquitetonicamente com todas as outras casas da rua, todas da época de fausto da cidade. Mas um olhar acurado seria capaz de perceber a gárgula cinzenta, corroída, miúda, que gorgolejava prazenteiramente em dias de chuva intensa, horrivelmente disfarçada no alto do telhado, na cumeeira, como a fiel depositária dos segredos inconfessáveis da família em cuja casa tinha pousado.
A possibilidade de encontrar Carmila fez com que eu esquecesse as promessas à minha mãe e entrasse na casa, não galgando de um só pulo os cinco degraus que davam para a sala ampla, como eu gostaria de relatar, para demonstrar minha intrepidez, mas, sim, em meio à perturbação e à embriaguez titubeante dos sentidos. Podia-se ver de imediato, apesar do ambiente ensombrecido, um sofá e duas poltronas, comuns, mais uma inusitada otomana, de uma época impossível de datar pelo excesso de rococós e grotescos arabescos, a qual afetava certa frivolidade dos moradores. Em uma cadeira de balanço, de madeira maciça, repousava a visão de um gato branco, incrivelmente peludo, a qual me deixou menos intranquilo: bruxas ou feiticeiras costumam ter gatos pretos: os assistentes dos seus sortilégios, os quais tornam-se fogosos amantes após a meia-noite. Havia ainda na sala um aparelho televisor, que chamou de imediato minha atenção, era muito grande, como eu jamais havia sonhado, tomando boa parte da parede. Imaginei quão maravilhoso seria assistir Ultraseven naquela geringonça. A bola de pelos abriu preguiçosamente os olhos e, ao ver-me, deu um grunhido e desapareceu em direção à cozinha, o esconderijo favorito desses felinos domésticos, sejam suas donas feiticeiras ou madames.
Antes que me recuperasse do susto, algo que, a princípio, parecia uma grande almofada, se mexeu e emitiu um resmungo a um canto mais escuro do cômodo, ao lado de uma das poltronas.
– ... tio Arquibaldo!
Uma coisa amorfa, como um polvo tratado com esteroides, ergueu a cabeça e olhou-me com os olhos mais aparvalhados com que já fui olhado, um olhar terrível que transportou-me imediatamente ao mito de Cthulhu, essa entidade grotesca que me atormenta desde a leitura do conto amedrontador de Lovecraft. Elizabeth segredou-me que o tio passava os dias em frente à TV, sem som. Foi só, então, que notei o mutismo do aparelho.
Elizabeth e Carmila eram as primeiras da família, depois de muito tempo, uma geração talvez, a conviver socialmente, elas iam à escola, e tão somente à escola, e a isso se resumia o seu convívio em sociedade. Aceitei o convite de minha colega de classe, pela possibilidade de ver sua irmã mais nova, Carmila, mas já começava a me arrepender. Elas, as duas irmãs, uma mais bela que a outra, descendiam diretamente do coronel Anibal Días-Fuentes, militar que, para não ser preso e enfrentar um julgamento de cartas marcadas, por traição, durante a Guerra do Paraguai, desertara e dera com os costados em nossa pequena cidade. Aqui, se estabeleceu, sob proteção do Exército Brasileiro, chegando a receber uma condecoração por bravura militar, provavelmente espionagem, em festividade municipal, das mãos eternamente ensanguentadas do Duque de Caxias, responsável pelo genocídio do povo paraguaio.
Foi, então, ao conseguir despregar os olhos do homem-polvo, que tomei consciência de um vulto esbranquiçado em um dos desvãos mais escuros da sala. Fui chegando mais perto daquele corpo imóvel para me certificar se era aquilo mesmo que meus olhos estavam adivinhando. Sim, era um belo animal. Ou melhor, fora um belo animal. Minha razão insistia em sua soberania, mas os temores faziam-me de idiota, lançando-me em um mundo de obscuridades, no qual é impossível aquilatar o que é verdade e o que é fantasia.
– É o cavalo do coronel... – sussurrou Elizabeth, como se sua voz de miasmas, delicada, como se pudesse despertar o equino do sono. – Está empalhado.
– Empalhado e fedido – retruquei.
Elizabeth sorriu amarelo, como se o cavalo do coronel Días-Fuentes (ou mesmo o coronel, há muito falecido) pudesse se ofender com a inoportuna observação. Aliás, poderia dizer maldosamente que a casa toda fedia, apesar de não ter ainda visitado outros cômodos. O cavalo havia sido colocado, como um guardião, à porta de um compartimento contíguo à sala, que identifiquei como uma biblioteca, e, diga-se, uma vasta biblioteca, que rescendia a papel velho e úmido, livros que há muito tempo ninguém manuseava, e um grande atrativo para o meu espírito sequioso de leitura. A entrada da biblioteca era encimada pela inscrição “O tempora, o mores”, que vim a descobrir, mais tarde, folheando um dicionário de citações latinas, ser uma exortação do grande orador Marco Túlio Cícero, contra a depravação dos seus contemporâneos, na Primeira Catlinária, e que vem a significar “Ó tempos, ó costumes”. Aproximei-me, curioso, da porta da biblioteca, quando ouvi um rangido de assoalho, alguém se afastando, escondendo-se, um roçagar de saias. Em meio ao cheiro de mofo que tudo em volta exalava, pude perceber o perfume, o cheiro característico de Carmila, o qual já tivera oportunidade de sentir, lavanda, algo que o valha, que é como a virgem Astreia deve cheirar.
– Vem, Léo! – a voz de Elizabeth despertou-me da imaginação quimérica.
Ao passar por uma porta fechada, Elizabeth segredou-me, baixinho:
– Esse é o quarto da tia Sissi... você sabe, né?
Sim, eu sabia, e quem não sabia?, do escândalo que estarrecera a cidade e arredores. Durante muito tempo, o caso foi comentado. Ainda hoje é. Dona Cisarina, a Síssi, quando mocinha, ficara com uma garrafa de Coca-cola entalada na vagina; seus pais tiveram que levá-la, às pressas, em um carro de praça, que é como os táxis eram chamados ao tempo desse acontecimento, para o hospital. Desse dia em diante, a tão elegante e bem conceituada família Días-Fuentes fechou-se, morta de vergonha, em casa e nunca mais saiu à rua, nem mais abriu janelas. O único contato dos Días-Fuentes com o mundo exterior era através de uma governanta analfabeta e muda, uma apalermada índia guarani, a qual fazia as compras e pagava as contas do mês. A partir de então, muitas histórias maledicentes envolveram a desgraçada família; a maledicência do povo assevera que as irmãs Elizabeth e Carmila são filhas do incesto de dona Alzira com o capiroto, o qual vem a ser, na realidade, o verdadeiro pai das duas meninas.
– Trancou-se por dentro e nunca mais se soube dela, eu escuto uns barulhos de noite, minha irmã diz que são ratos, eu não sei, não sei mesmo, nem quero saber. Quando eu era bem pequena, tinha medo, mas me acostumei. A gente acostuma, né? Nem cheiro ruim vem de lá de dentro. Acho que tia Síssi ainda vive, mas se alimenta de quê? De ratos? – casquinou Elizabeth, com ar de troça.
– Vem, Leo, vem conhecer o meu quarto...
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