quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

UMA HISTÓRIA QUASE BÍBLICA

por Edson Negromonte

Quando o menino nasceu, foi um alvoroço na família, primeiro neto. A mãe, apesar de solteira, foi paparicada também pelas vizinhas. Era canja de galinha de uma, leite da vaca Mimosa de outra, pipoca, Malzbier, não tomar banho, mas se tomasse não lavar a cabeça, resguardo, fitinha vermelha para evitar mau olhado, cobrir os espelhos da casa, essas coisinhas que somente os antigos conservam. Na cidadezinha, à beira do mar, na encosta da serra, não se falava de outra coisa: a criança tinha nascido cabeçuda, muito cabeçuda, com um crânio desproporcional para o corpinho. Mas isso, segundo a frenologia, era sinal de grande inteligência. O professor Felisbino, reconhecido estudioso da doutrina, augurava o nascimento de um novo Edgar Allan Poe, ou ia mais longe ainda: a possível reencarnação de Rui Barbosa. Nos bares, os bebuns davam risadas, entre uma bitruca e outra, fazendo piadas infames sobre a dificuldade do parto, de como uma cabeça tão grande pudera passar por uma fenda tão estreitinha, de que, naquela noite, todos tinham ouvido os gritos cruciantes de Mariazinha para parir o sextavado. As mulheres da vida, após um certo impasse (o milagre da maternidade é muito respeitado por elas), abriam as bocas desdentadas em gostosa gargalhada.
Como numa famosa canção italiana da época, vertida para o português por Chico Buarque, a mãe lhe deu o nome auspicioso de Jesus. O garoto, fazendo jus à cabeçorra, sabia de cor a escalação de todos os times brasileiros, sem errar um nome sequer, nem a posição, mas ninguém o chamava de Jesus; era conhecido por todos como Cabeção. Evidente que a piada, quando ele passava, era a mais óbvia: de como ele não precisava de sacola para carregar as compras da feira, cabia tudo no seu bonezinho. E Cabeção foi crescendo, e a sua cabeça também, a cada dia maior. O papa-defuntos asseverava que, quando ele morresse, seria preciso dois caixões: um para o corpo; e o outro, para a cabeça. Acostumou-se o adolescente com o apelido; nas rodas de amigos, na escola, na cidade só o chamavam assim. Mas se alguém, escondido, berrasse “Cabeção!”, ele se virava na direção de onde viera o grito e, segurando as bolas, raivoso, devolvia:
- O cabeção aqui, ó!
Apaixonado por futebol, ele se tornou o melhor artilheiro do 29 de Maio, time local. Diziam as más línguas que os jogadores se atrapalhavam, não sabendo distinguir entre a bola e a cabeça do rapaz, que era ilegal, jogo sujo, roubado, que essa tática sempre confundia o goleiro adversário. Resultado: Cabeção foi proibido de jogar. Ofereceram-lhe a posição de bandeirinha, mas ele não queria ficar à margem. Cabeção era uma máquina de fazer gols, tanto que os colegas o chamavam de fominha. Sua maior glória foi a partida contra o Matarazzo, 12X0; todos gols dele. Cabeção sempre sonhara, como Pelé, chegar ao milésimo gol, jogando pelo Atlético Paranaense, seu time do coração, mas agora tudo estava acabado.
Sem saber o que fazer da vida, sem perspectivas (só a pelota o interessava), triste, Cabeção abandonou os estudos, saiu da escola, começou a perambular, a esmo, pelas ruas. Sem trabalho (a cidade, pequena, oferecia poucas oportunidades), numa tarde de sol, acabou entrando num bar, atraído pelo entrechocar das bolas coloridas, numa mesa de sinuca. Encostado na porta, ficou observando, durante um tempo, como os jogadores empunhavam o taco, a posição correta do corpo, o palavreado, o uso do fanchona. Respirou fundo e pediu, então, baixinho, para Serrote, o ás do pano verde, umas lições. Como Serrote simpatizasse com o rapazinho, gastou com ele mais de uma hora em ensinamentos sobre a popular arte de origem inglesa, a tacada direta, a indireta, trajetória linear, a bola da vez, tabelinha, a leve inclinação do taco... Depois da breve lição, sempre com um cigarrinho no canto esquerdo da boca, não desgrudando-o dos lábios nem durante o jogo, o mestre convidou o pupilo para uma partida, à brinca.
– Sorte de sapo! – resmungava Serrote, a cada tacada certeira de Cabeção.
Daí em diante, os dias do rapaz estavam preenchidos, mas não voltaria jamais à escola. Junto com a recém descoberta paixão pela sinuca, Cabeção tornou-se o maior taco capelista e tomou gosto também pelo álcool. De início, era só um copo de cerveja, um rabinho de galo, mais uma loira gelada, paga pelos presentes, dividida irmanamente, uma branquinha pra quebrar o gelo... Cabeção começou a voltar para casa trançando as pernas, cercando ganso, chamando o Hugo. No dia seguinte, mesmo com dor de cabeça, lá estava ele de volta à mesa, desafiando os presentes para uma partidinha, tirando um bom dinheiro dos caixeiros-viajantes desavisados. Naquele tempo, esses negociantes eram comuns nas cidades do interior. Os frequentadores do bar, desocupados, sempre à espera de oportunidade para uma boa risada, ficavam por ali, morcegando os patos, como se não conhecessem a fama de Cabeção. Tornou-se costume deles, para encerrar a noite, esperar as dez horas, quando a mãe de Cabeção, agora homem feito, aparecia na porta do bar, preocupada, à procura do filho.
– Jesus, já pra casa, seu vagabundo!
– Já tô indo, mãezinha.

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