por Edson Negromoonte
– Vocês pensam que o rock começou agora? Pensam que o mundo começou quando vocês nasceram? Esse é o mal da humanidade! Vocês precisam se situar historicamente!
Reunidos na sala da casa, os meninos se entreolharam, não entendendo o que estava acontecendo com seu Guiga, sempre tão cordato, o pai que todos gostariam de ter, que gostava de Pink Floyd e Deep Purple. Mas o que o irritara tanto para que eles estivessem levando aquela bronca? Será que fora o disco novo dos Mutantes que estavam ouvindo a todo volume?
Foram então convocados por ele para subir ao sótão, o local mais misterioso de um lar, onde as tralhas vão se acumulando e com o decorrer dos anos adquirem uma insuspeitada aura que na vida mundana nunca tiveram. Os cinco o seguiram, entre risinhos de mofa. Quando chegaram ao quartinho no alto da casa, cheio de quinquilharias, o irritado senhor já estava à espera, brandindo um velho disco de carvão, como se empunhasse um tacape, parecendo um burlesco troglodita.
– Então, vocês agora estão interessados em música brasileira, isso que chamam de rock tupiniquim?! Louvável, muito louvável! Mas, por acaso, já se perguntaram de onde veio o tal do rock nacional, se é que isso existe? – disse seu Guiga, desafiador, sacudindo ainda mais o quebradiço 78 rpm.
Coniventes, os meninos olharam ao mesmo tempo para um ponto qualquer no espaço, disfarçando o riso, lembrando-se do outro apelido de seu Guiga: Reizinho – o irritadiço personagem dos quadrinhos: baixinho, barrigudo, de bigode e cavanhaque. No cais do porto, onde seu Guiga trabalhava, só os amigos mais íntimos tinham peito de chamá-lo assim, Reizinho. Por causa do chapelão de caubói que usara durante algum tempo, os mais antigos ainda o conheciam como Buck Jones. Ser chamado pelo nome do antigo caubói das matinês não o incomodava tanto, mas de Reizinho era pedir briga na certa.
Aproximaram-se de seu Guiga, o qual já estava com um meio sorriso, como era de costume quando a ira inicial começava a se dissipar.
– Olhem isso aqui! Vamos, olhem! Esta é a primeira gravação de um rock no Brasil, quando ainda não se tinha essa intimidade com o ritmo. Era chamado respeitosamente de rock'n'roll, tinha nome e sobrenome, queria dizer, numa tradução bem livre, algo como "rebolar no duro".
– Rebolar no duro?! Tás doido, meu pai? O que que é isso? – perguntou Nico, malicioso.
– Ora, sexo! Apenas sexo! Sacanagem! – respondeu seu Guiga, aceitando a provocação.
Risada geral.
– Vejam bem, está aqui no selo: "Ronda das Horas", com Nora Ney – disse ele, enigmático, olhando os garotos, de um por um.
– Nora Ney, aquela de "De Cigarro em Cigarro"?
– Sim, ela mesma! – respondeu.
Estudadamente, seu Guiga foi até uma estante perto da porta e puxou do alto uma caixa vermelha, tirando a poeira com a manga do blusão de lã. Deu uma gargalhada gostosa, como só ele sabia dar, antevendo a cara de espanto dos fedelhos. Abriu o estojo, onde tranquilamente dormia durante anos e anos um toca-discos portátil, de piquenique. Ligou a engenhoca na tomada, provocando um ruído estranho, parecido com uma caixa de abelhas em fúria, trocou para a agulha apropriada e, triunfante, pôs o disco no prato.
O que se seguiu foi uma inusitada chiadeira, sob a qual percebia-se uma melodia conhecida. Ora, era "Rock Around the Clock", de Bill Haley e seus Cometas! Mas cantada por uma voz feminina.
– Neste exato momento, vocês estão tendo o privilégio de ouvir a primeira gravação de um autêntico rock'n'roll no Brasil. Em inglês, é claro! Este é o primeiro rock gravado no Brasil. E por Nora Ney, uma cantora de sambas dor de cotovelo, aquelas chorumelas que vocês tanto detestam. Sabem a história de se estar no lugar certo na hora certa? Foi justamente o que aconteceu: Nora Ney gostava muito de jazz, frequentava as reuniões do fã-clube Sinatra-Farney, onde vários jovens, que adoravam o "velho olhos azuis", reuniam-se para ouvir não só as novidades do jazz, mas de qualquer outro gênero musical, e cantavam e tocavam, imitando os cantores norte-americanos.
– Dick Farney, aquele de "Marina, Marina morena, você se pintou”? – perguntou Gê.
– Ele mesmo! – respondeu seu Guiga, satisfeito. Afinal, seus pupilos não eram tão desinformados, como ele supunha.
– Ô, velharia! – cortou Maquiné.
– Psst, você não sabe o que está dizendo! – retrucou prontamente Rique, o mais novo da turma e o de maior conhecimento musical; tinha um pai seresteiro, que, na mocidade, chegou a se apresentar em programas de calouro da extinta Rádio Antoninense.
– Vamos lá, voltando ao rock!... acontece que o filme "Sementes da Violência" tinha "Rock Around the Clock" na trilha sonora. O filme estreou no Brasil em 1955, no mesmo ano que...
– Ah, não! Eu ainda nem tinha nascido! – interrompeu Nico.
– O que isso interessa pra gente? Estamos em 76! – completou Maquiné.
– É justamente isso que eu quero mostrar para vocês! Que ninguém nos ouça, porque hoje em dia até as paredes têm ouvidos, mas se tivéssemos conhecimento histórico o golpe militar não teria sido vitorioso.
Seu Guiga falou com tal convicção que a gurizada, embora não entendesse direito o que vinha a ser golpe militar ou, como já tinha ouvido outras vezes, ditadura dos generais, achou melhor se calar e deixá-lo continuar, porque a coisa parecia ser realmente séria.
– É melhor voltarmos ao rock. O filme deixou os jovens alucinados! Antes pacatos consumidores da música comportada dos nossos pais, nós
queríamos a eletrizante novidade estrangeira. Queríamos fazer parte do mundo! No filme, os alunos desafiam a autoridade do mestre... Naquele tempo, isso era o máximo que se podia almejar. Notem que a escola já era uma coisa muito chata, aliás, sempre foi maçante, com seu autoritarismo e a eterna defasagem em relação ao dinamismo da vida.
Lá fora, começava uma garoa fininha, que foi aos poucos transformando-se em chuva; os meninos foram se acomodando, um no chão, outro na velha cadeira de palha, quase sem assento, o restante no sofá esburacado, indiferentes à poeira, mas evitando as pequenas goteiras. A apreensão de seu Guiga diminuiu quando percebeu o pé-d’água providencial. Pode então, senhor da situação, falar pausadamente.
– Como sempre, a indústria do disco não poderia deixar passar mais uma chance de ganhar dinheiro, com aquilo que eles julgavam um modismo passageiro, como todos os outros anteriores, foxtrote, rumba, tango, e por aí vai. Os produtores espertalhões chamaram, então, a Nora Ney, a qual não se podia dizer uma jovenzinha, pois já estava com mais de 30 anos, mas era a única no elenco da gravadora a enrolar um pouco a língua inglesa. E isso fica bem nítido quando se ouve, com atenção, a gravação.
Botou para tocar, de novo, o velho bolachão, com o qual comicamente ameaçara os meninos.
– Ouvidos atentos, agora!
Sem esperar a gravação terminar, baixou o volume e, apertando os olhos, perguntou:
– Perceberam?
Balançaram as cabeças, sem atinar com a intenção.
– Em vez de cantar "one, two, three o'clock, four o'clock, rock", ela comete um erro quase imperceptível e detona boleristicamente "one, two, three o'clock, floor o'clock, rock".
Os cinco, que se achavam entendidos em inglês, balançaram novamente as cabeças, agora afirmativamente. Como era do seu caráter, seu Guiga não deixava dúvidas no ar, matava a cobra a pauladas e fazia uma botina com o couro. Botou então, outra vez, o disco para rodar.
– Vocês devem ter estranhado a expressão "boleristicamente" que usei agora há pouco. Pois é, eu estava me referindo ao título em português da canção "Rock Around the Clock", que, aqui, passou a ser "Ronda das Horas". Não é só pela semelhança fonética das palavras "rock", "around" e "ronda", mas, também, pelo grande sucesso de um bolero do trio mexicano Los Panchos, "Noche de Ronda", no qual os produtores espertalhões pegaram carona. Viram? O rock entrou no nosso país por caminhos tortilhosos, perdão, tortuosos – disse, brincalhão, o professor.
Riram todos, com o espirituoso trocadilho.
– Que aula! – disse Gê.
– Porra! – exclamou Maquiné.
– Maçante... – disse o ciumento Nico, com um muxoxo.
– Ei, eu tô interessado! – exclamei.
– Eu também! – completou Rique.
Vendo que a chuva não cessava, e consciente do seu magnetismo, seu Guiga continuou.
– Contrariando todos os historiadores do rock brasileiro, vou contar um segredo para vocês e, vejam bem, não vão sair por aí espalhando porque isso é uma descoberta minha. Então, boca de retranca! Combinado? Todos os historiadores insistem em dizer que o primeiro instrumento solo do rock no Brasil é o saxofone. Sim, na grande maioria das vezes, pela dificuldade de se adquirir uma guitarra elétrica aqui na terra do samba. Mas, e como sempre há um mas, nesta pioneiríssima gravação de Nora Ney há uma guitarra. Sim, uma guitarra! E, além de tudo, solando, cuja sonoridade é a de uma Gibson Les Paul. E, digo ainda mais, acústica! Sabem quem era o único a ter uma Les Paul no Brasil? Betinho! Ele ganhara essa guitarra do pai, músico de Carmen Miranda.
– Betinho, quem é esse agora? – perguntou Maquiné.
– E Carmen Miranda, o que ela tem a ver com o rock? – perguntei, indignado.
– Pelo jeito, agora tudo tem a ver com rock... – resmungou Rique.
– Certo, certo! – concordou seu Guiga, percebendo que conseguira despertar ainda mais o interesse dos garotos, que não supunham que as pesquisas de pai de Nico pudessem chegar às raias da paixão. E, além de tudo, paixão pelo rock, coisa tão cara aos seus corações juvenis. Chegava a ser gostoso, até reconfortante, mas também assustador, saber que tudo estava interligado.
Dona Iva, madrasta de Nico, trouxe silenciosamente uma caneca de café com leite bem quente para cada um, acompanhada de um delicioso pão com manteiga, deixando-os entregues novamente à aula de rock’n’roll. Entre uma mordida e outra na bem-vinda iguaria, seu Guiga não perdia a chance de demonstrar a sua, até então, desconhecida erudição sobre assuntos musicais.
– Vocês sabem que o Brasil tem uma tradição de sanfoneiros, né? Antes de vocês nascerem, os lares brasileiros de classe alta tinham um piano e os de classe média um acordeom, nome chique, afrancesado, para a nossa sanfona, que vem a ser um piano portátil, de bolso.
Rimos da canhestra comparação.
– Assim, fazendo jus às nossas raízes, um sanfoneiro chamado Fronteira também gravou "Rock Around the Clock". Se vocês prestarem atenção, também há uma sanfona tocando na gravação de Nora Ney. Ouçam!
E, pela enésima vez, botou o disco gasto para tocar.
– Ah, não! Eu até gostava dessa música... – reclamou Gê.
– Tá bom, tá bom! – disse seu Guiga, baixando o volume, sem interromper a execução. – E por falar em sanfona, rock mesmo é Luiz Gonzaga, o rei do baião!
Outra vez, os garotos ficaram com a pulga atrás da orelha, mas não tiveram tempo de perguntar nada, pois a metralhadora verbal do mestre voltara a matraquear, dando continuidade à lição.
– Logo depois, a cantora Heleninha Silveira também gravou esse rock, com a letra finalmente vertida para o português por, deixe ver, Júlio Nagib.
– Ah, o filho do seu Nagib, da funerária? – perguntou Nico, fazendo graça.
Novas risadas.
– Vamos embarcar de volta na viagem aos primórdios do rock, na nossa máquina do tempo! – disse, fazendo o ruído de uma nave espacial, tentando pôr ordem no recinto e recuperar a atenção.
– Pera aí, pera aí! – cortou Nico, soltando um sonoro peido.
Alvoroço da molecada segurando a respiração, apertando o nariz. Para retomar as rédeas, seu Guiga ergueu o volume da vitrola, causando um estrondo, o que fez os meninos taparem os ouvidos e se calarem, assustados. Então, ânimos acalmados e fedor dissipado, a aula continuou.
– Ah, vocês não imaginam o que foi assistir a... no Cine Avenida... há tanto tempo... "Rock Around the Clock", batizado aqui de "Ao Balanço das Horas"... Este, sim, pode ser considerado o primeiro e autêntico filme de rock de toda a história. Foi o marco zero da minha juventude! – disse seu Guiga, com a voz embargada. – Saí do cinema, pedalando a minha bicicleta, sentindo-me jovem pela primeira vez. Saí da sessão transtornado... O vento batia na minha cara! O mundo era meu! E eu pedalava cada vez mais rápido! Era uma das noites mais geladas do inverno curitibano. O rock, direto na boca do estômago, como um gancho, levando-me ao pulsar do Universo. Tudo estava por fazer! Depois daquela maldita Guerra, podíamos reconstruir o mundo!
Surpresos, os meninos o imaginaram de topete, emplastado de brilhantina, e uma linda jaqueta de couro preta. Esperto, seu Guiga percebeu que a plateia estava aos seus pés.
– Meu tio contou que, em São Paulo, o filme chegou a ser proibido para menores de 18 anos. É verdade isso? – perguntou Gê.
– Sim, a porca torcera o rabo de vez, para desespero dos pais e das autoridades policiais. Os guardiões da lei temem sobremaneira a ação extremamente benéfica que mexe com os valores cristalizados da sociedade, que desmantela a ordem estabelecida das coisas. Os senhores do poder tentam pulverizar qualquer mudança. Todos nós dizemos querer o novo, mas somos os primeiros a nos acovardar. A mudança iminente virá, queiramos ou não. Daí, num gesto suicida, tentamos inutilmente destruí-la ou, pior, diminuir a sua importância. Vocês acreditam que antes da Segunda Guerra não existia a palavra teenager?
– Como assim? – perguntou Rique.
– Passava-se da infância direto para a idade adulta, os adolescentes não tinham cultura própria.
– E quem proibiu o filme?
– O político mais sinistro e inconsequente da história da nossa República: Jânio Quadros, quando governador de São Paulo.
– Aquele do "varre, varre, vassourinha", pai?
– Ele mesmo, que depois entregou o Brasil de bandeja para os militares, deixando o vice João Goulart no governo. Mas Jango era um fraco, não teve pulso firme, ou melhor, não tinha a credibilidade do povo para conter a marcha dos verdugos ao poder. Aí, caímos nessa ditadura odienta que conhecemos muito bem. Mas voltemos ao bom e velho rock'n'roll...
– É bom mesmo, esse papo de política é muito chato! – cortei.
– É por causa de gente que pensa assim que o país está desse jeito – retrucou Gê.
– Vá, vá, vamos voltar a falar de rock!
– É, vivemos em tempos bicudos, parece um pesadelo sem fim... mas não esqueçam que a música jamais existirá dissociada do fato político, social, econômico, comportamental.
– Vá lá! Rock'n'roll! – gritamos os cinco, em coro.
– Então, como é comum no mundo da música, ou melhor, da indústria fonográfica, tanto os produtores quanto os músicos pensavam que o rock era algo passageira, como todos os modismos. Daí, gente como Agostinho dos Santos, cantor romântico por excelência, gravou "See You Later Alligator".
– Em inglês? – perguntou Maquiné.
– Não, vertida para "Até Logo Jacaré".
– Que ridículo!
– Ridículo por quê? Porque é em português? Sabe que isso é uma atitude de dominação cultural?
– Não, eu não quis dizer isso... – desculpou-se Maquiné.
– Mas você externou o que todos os brasileiros pensam. Não entendemos nada do que os gringos estão dizendo e, muitas vezes, engolimos goela abaixo um monte de baboseiras. – disse taxativo seu Guiga.
– Falou bonito, hein?
– O nosso primeiro rock original, com letra em português, composto por um brasileiro, foi "Enrolando o Rock", que apareceu em abril de 57... – continuou.
– Numbers, numbers, numbers – retrucou Gê.
– Calma, números e datas são importantes para nos situarmos historicamente, porque vários estudiosos afirmam que o primeiro rock feito em português é "Rock'n'Roll em Copacabana", que só saiu em maio do mesmo ano. Acontece que a composição "Enrolando o Rock", do mesmo Betinho, saiu em abril, um mês antes. E este rock tem letra sim, contrariando mais uma vez os apressados historiadores de gabinete.
– Porra, o velho é foda! – disse Nico, orgulhoso.
– Vocês lembram da chanchada que passou esses dias na TV, "Absolutamente Certo"? Pois é, neste filme o Betinho aparece tocando uma Fender Stratocaster – provocou seu Guiga, indo direto na veia.
– Uma Fender, naquele tempo? Aí é demais, isso já virou piada! – exclamou Maquiné.
– Sim, uma Fender, essa mesma que vocês ficam babando quando veem o Jimi Hendrix tocando. Digo e repito: o mundo não foi inventado quando vocês nasceram, muito menos a Fender!
– E esse tal "Rock'n'Roll em Copacabana”, quem gravou então? – indaguei.
– Cauby, Cauby Peixoto.
– Ah, tomá na peida, aquele de "Conceição"?
– Sabem o que tinha do outro lado do disco? A música "Amor Verdadeiro", versão para "True Love". E Cauby ainda tiraria outra lasquinha do rock, cantando, no final de 57, agora sim, o tal "Enrolando o Rock", de Betinho. Perceberam onde começa a confusão? Portanto, sou categórico: Betinho foi o primeiríssimo a gravar um rock composto originalmente em português. Não sou nenhum Tinhorão, mas tenho os meus contatos. E, além do mais, sou um pesquisador de campo! Hahahaha! – disse seu Guiga, numa gaitada, botando para rodar as gravações, uma a uma, sobre as quais dissertara com tanta propriedade.
– Cauby... incrível! – resmunguei, inconformado.
– Ah, não fique assim, Neguinho. Tás triste por quê? Cauby é bicha, mas David Bowie também é – disse Gê, em tom de troça.
– E não é só! – continuou o improvisado educador. – Cauby ainda participou de um dos primeiros filmes de rock da história: "Jamboree", chamado aqui no Brasil de "Epopeia do Jazz". Perceberam como ninguém entendia nada de rock, nem mesmo nos Estados Unidos, o berço do movimento? Coisa que eu também contesto, mas isso fica para outra história... Este filme é um amontoado de números musicais, com verdadeiras estrelas do rock, como Fats Domino e Jerry Lee Lewis, mas tem também o jazzista Count Basie, além do nosso Cauby cantando a música "Toreador", algo meio flamenco... e, pasmem, travestido de toureiro.
– O nascimento do rock é um samba do crioulo doido! – atalhei, renitente.
– Que nada, eu acho tudo isso muito saudável! – provocou Gê.
– Sabem que até o Erlon Chaves... – seu Guiga voltou a explicar.
– Aquele chato da Banda Veneno? – interrompi novamente.
– Ele mesmo! Pois é, o cara também gravou "Enrolando o Rock", em 58.
– Porra! Ninguém levava o rock a sério?!
– E é para ser levado? Rock é diversão, brincadeira! – disse Gê, doutoral, por trás dos óculos fundo de garrafa.
– Quem não te conhece que te compre. – provoquei.
A chuva tinha cessado, o sol estava convidativo; os garotos não tiravam os olhos da janela. Percebendo que perdera a cumplicidade do céu, seu Guiga foi logo dizendo:
– Então, eu queria contar só mais uma coisinha para vocês. No início do rock brasileiro, os baladeiros também tiveram grande importância. Como o bolero ainda fazia muito sucesso, as nossas versões para as baladas americanas tinham sempre um sabor tropical, principalmente na voz de Carlos Gonzaga, que emplacava um sucesso atrás do outro. "The Great Pretender", dos Platters, virou "Meu Fingimento", mais "Diana", “Você é Meu Destino", "Oh Carol", "Rapaz Solitário", e muitas outras canções de Paul Anka e Neil Sedaka.
– Quem é Carlos Gonzaga, pai?
– Aquele que canta o tema do "Bat Masterson", em português: "No velho Oeste, ele nasceu e entre bravos se criou"... – cantarolou. – Pois é, do outro lado deste disco tem o rock "Diabinho", versão de "Little Devil".
– Roquinho água com açúcar.
– Cala a boca e ouve, orelhudo!
– E todo mundo ia tirando uma casquinha do rock. Dolores Duran gravou "Only You" e "Love Me Forever" – continuou seu Guiga.
– Dolores Duran, da pré-bossa nova? – perguntou Rique.
– Da pré-bossa nova... Ó, a do cara! – gozaram os outros.
– Até Os Cariocas gravaram "Allways and Forever"... Pianista de chorinho, dona Carolina Cardoso de Menezes gravou "Brasil Rock".
– Aquela velhinha?
– Ela tinha só 41 anos... É, tá bom, não era mais uma jovenzinha. No lado B do disco, havia "Samba no Rio" – continuou o mestre.
– Olha, eu só queria dizer que se isso tudo é rock, o cu da minha vó é piano! – disse Maquiné, injuriado.
– Agora, pasmem! No final da década de 50, ninguém menos que Bill Haley veio ao Brasil! – disse seu Guiga, tentando arrematar com chave de ouro a aula.
– Ah, mas esse não tinha nem estampa de roqueiro – comentou Rique.
– Como assim?
– Era gordinho e usava um pega-rapaz muito cafona, parecido com o do Super-homem..
– É verdade, é verdade! Sou obrigado a concordar – disse seu Guiga, coçando o queixo, depois de alguns segundos de reflexão.
O professor voltou-se para um armário, em busca de mais bugigangas para comprovar as singulares teorias. Aproveitando-se da distração, descemos pé ante pé os degraus de madeira, que insistiam em ranger a cada passo. Já na rua, ouvimos uma gostosa gargalhada. E nós, os cinco amigos inseparáveis, seguimos cantarolando, sob os raios avermelhados que entardeciam os escorregadios paralelepípedos:
– I know, it's only rock'n'roll but I like it!
– I like it!
– Like it, like it!
– Yes, I know!
– I like it!
Então, o velho Guiga botou a cabeça pela janelinha do sótão e gritou, de voz cavilosa, imitando o personagem de uma antiga novela de rádio:
– Só o Sombra sabe a maldade que se esconde nos corações humanos!
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Esse eu já conhecia! Adoro! :)
ResponderExcluirVocê é mesmo a minha fã número 1. Valeu!
ResponderExcluirmuito bom...e aprendendo sempre com vc!!!bjs.
ResponderExcluirEdson,
ResponderExcluirSim, Rique tem um pai que cantou na Radio Antoninense. Genial texto!
Emprestar-me para contar esta magnífica história sobre o primeiro rock brasileiro foi uma honra.
Nos anos 70 adorávamos o rock, mas estavamos abertos ao caipira, ao samba, a MPB e outras coisas de qualidade.
abação
Muito legal, me senti lá vendo o seu Guiga.Que aula!!!
ResponderExcluirParabéns.
Magnífico! História do rock escrita com elegância e bom humor. Valeu!
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