quinta-feira, 13 de novembro de 2014

ÚLTIMO DEVANEIO DO VELHO BIBLIOTECÁRIO

Edson Negromonte

Chovia ainda, torrencialmente, qual lembrança de um inesquecível dilúvio, bíblico. Ou do cataclismo da Atlântida. Nunca mais o maldito aguaceiro iria parar? Sentiu a pele úmida ao toque dos dedos, pegajosa.

Levantou-se, então, da cadeira o velho bibliotecário. A solidão, sempre a solidão, apesar de conscientemente cultivada, fez com que acendesse um cigarrinho de maconha, apesar das promessas diárias de não botar mais aquela porcaria na boca, de que se desse mais uma puxada... Enfim, era fácil pôr a culpa na solidão, na chuva, no frio. No frio insuportável da solidão. Precisava se aquecer, e como não bebia mais (o cheiro do álcool tornara-se insuportável), fumava. Desbragadamente nos finais de semana e feriados, quando não tinha que ir ao trabalho.

Dirigiu-se à janela e, através do riscado uniforme da chuva, oblíqua, como no poema de Maiakóvski, de viés, viu a pequena igreja, a capela do Bom Jesus do Saivá. Ao lado, colado à igrejinha, o cemitério, em frente à praça. Seu corpo seria também enterrado naquele cemitério? E se o queimassem na praia, num ritual pagão, como fizeram com Shelley? E se o lançassem ao mar, repasto de siris e camarões, enrolado num lençol branco, alvejado especialmente para a ocasião? Nada mais adequado a um homem que passara pela vida como clandestino, quase invisível. Os amigos poderiam jogá-lo no mar. Sempre tão distantes, se preocupariam com a sua ausência? Dariam pela falta? Não, certamente não. Houve um tempo em que ele chegou a ser sociável, apesar de sumir da convivência das ruas durante semanas. Ficava em casa, ouvindo horas a fio o mesmo disco do Black Sabbath, introspectivo. Gê, grande artista, tornou-se professor universitário. Não o vira mais. Sabia dele pelos outros, sempre assoberbado por teses, de mestrado, doutorado, ph.D. Lembrou-se dos outros três camaradas, inseparáveis naquele tempo: Rique, hoje alto funcionário de uma estatal; Maquiné, agente penitenciário. Encontrara os dois; um na roda de samba dos sábados, na Carioca, o outro, em frente ao hotel que herdara dos avós, em eterna reforma. Convidara-os à sua casa, nunca foram, apesar das promessas.

E Nico, que fim levara? Foi, num domingo, procurá-lo; soube que estava morando em Pontal. Encontrou-o imerso no mundo da droga, expulsara a família de casa, trocara portas e janelas por um tanto de crack. Sentiu-se covarde por não tê-lo esmurrado. Traído pelos sentimentos, para não chorar de raiva, o bibliotecário relanceou os olhos pelo cemitério em frente. Quantos túmulos pintara, adolescente, para Finados?

– Não faça barulho que eles estão descansando – advertia o guardião, naqueles dias despreocupados.

E a chuva continuava, intermitente. Olhou para a esquerda e viu que, mesmo assim, apesar do aguaceiro, o movimento do supermercado não cessara. Logo, dali a uma hora, encerrado o expediente, ele iria para casa; tomada de cupins, e o vizinho tinha cimentado a manilha do esgoto, que passava pelo seu terreno. E a água do banho, da privada, as necessidades iam para onde? Uma noite, sonhou que o quintal inteiro vertia merda. Nos fundos da casa, uma mangueira centenária, que nunca dera um fruto sequer, rangia assustadora nas noites de ventania, esfregando os galhos no telhado e esfrangalhando-lhe ainda mais os nervos. No oco das raízes, morava uma insuspeitada família de lagartos. Pensou em dar nomes a eles; o pai, o rei lagarto, seria Morrison, evidentemente. Precisava mudar daquela casa, pressentia algo muito pesado, um crime ocorrido ali, sim, um crime bárbaro, sobre o qual não se falava, sobre o qual todos calavam.

Andava exasperado, estava emagrecendo a olhos vistos. Suas poucas carnes estavam dançando dentro das roupas, trêmulo o braço direito, os cabelos raleando. Às vezes, o telefone tocava, no avançado da noite. Do outro lado, ninguém, nem voz, nem respiração. Com certeza, precisava mudar dali. Lembrou-se, então, de um telefonema que recebera, há muitos anos atrás, em outra cidade, dizendo ser a Anastácia, prima do Antonio, pedindo-lhe que avisasse aos parentes que a Acácia tinha falecido. Ao dar o recado, quando o avô chegou da chácara, ele arregalou os olhos: a prima Anastácia tinha morrido muito tempo antes da tia Acácia.

A chuva amainara, precisava aproveitar a trégua para voltar para casa. Não apareceria ninguém mesmo; nunca aparecia ninguém na biblioteca, podia assim encerrar o expediente na hora que bem entendesse. Esvaziou baldes, torceu panos, recolocou tudo de volta no lugar, sob as goteiras. Ao se erguer repentinamente, deu com os olhos em “Meu Guru e Seu Discípulo”, de Christopher Isherwood. Apesar da vista toldada, sob efeito do fumo, tinha certeza do nome, sabia de cor cada título daquele lugar. Lembrou-se, então, do Mestre, que o despertara para os aspectos místicos da vida, através dele fora admitido na fraternidade dos rosacruzes, como neófito, onde permaneceu durante trinta anos ininterruptos. (Precisava retomar os estudos da cabala). Quantas conversas na penumbra… O mentor na poltrona verde, gasta, puída; o rapaz aprendendo, o homem mais velho falando-lhe de vidas passadas; da noite negra da alma; iniciações psíquicas no Tibete; vida após a morte; da morte; dos irmãos de branco; da vida mística de Jesus; da concepção de Maria, imaculada (se os homens são capazes de fazer o mal através da palavra dita, por que um arcanjo, um ser superior, não pode criar uma outra vida através do verbo?) sobre o príncipe Sidarta, o venerado Buda, envenenado por carne de porco; Ramakrishna; o Bhagavad-Gita; os Vedas; Zoroastro, a eterna luta entre o bem e o mal; Plotino; o Dr. Bucke; Francis Bacon (assegurava-lhe que Shakespeare era o pseudônimo de Bacon, o qual escrevera todas as obras atribuídas ao bardo inglês), et cetera, et cetera, et cetera, como diria o rei do Sião.

– Mas então por que isso tudo não é amplamente divulgado?

– Muito já foi, e os homens de inteligência se recusam a aceitar.

– Por quê?

– Muito da história precisaria ser revista, muitas reputações cairiam por terra, teses universitárias se transformariam em cinzas. A humanidade gosta de viver na mentira, na ilusão, mas acontece que tudo isso faz parte de uma grande engrenagem, necessária. Até a ilusão.

Ante o assombro do adolescente, o Mestre continuou.

– E se eu lhe dissesse que Jesus não foi o único Cristo, que agora, neste exato momento, pode estar nascendo um outro Cristo no Oriente? Ou numa favela do Rio de Janeiro? Ele pode estar andando na Avenida Paulista, de terno e gravata. Ah, porque se ele estivesse vivendo entre os ocidentais não ficaria andando por aí de túnica, chamando a atenção das pessoas, como um ser exótico. Se quisermos, podemos dizer Buda Cristo. E Plotino também o foi, um Cristo. Também Whitman, esse grande poeta.

– …

– E Jesus não foi o único nascido de uma virgem, e não foi o primeiro nem será o último. A lenda diz que Platão também nasceu de uma virgem. E também Leonardo da Vinci. E Jesus não era analfabeto, nem um homem delicado, nem pobre, como querem as igrejas, e ele não morreu na cruz, viveu até os setenta anos, fazia parte da Irmandade Branca, estudou na Índia, Egito, Pérsia… Tudo isso está lhe parecendo extravagante?

– Não, é que…

Na girândola da cabeça, veio-lhe a imagem de um funeral. Poucas pessoas, simples, dia chuvoso em Paranaguá, o Mestre deitado, com as mãos postas, rodeado de flores amarelas, mal cheirosas. Depois de uma dessas doenças passageiras de inverno, ele saíra para dar uma volta, aproveitar o sol da manhã. Empolgou-se com a caminhada, e quando deu por si já era meio-dia; tinha de voltar, não levara chapéu, o buraco na camada de ozônio, maldito buraco na camada de ozônio. Fora longe demais, chegou em casa vomitando sangue. Foi o tempo de chamarem a ambulância, direto para a U.T.I. Desde então, o mundo ficara mais pobre, o mundo do velho bibliotecário ficara definitivamente mais pobre. Gabava-se o velho bibliotecário de que nos últimos anos não se passara um único dia em que não lembrasse do Mestre. E, agora, quantos dias, meses, tinham se passado sem que a amada figura lhe viesse à mente? Quando alguém morre, promete-se que jamais se esquecerá o ente querido. Durante certo tempo, a lembrança vem à tona, sem que se faça esforço, várias vezes durante o dia, à noite, nos sonhos, depois vai se espaçando, dia sim, dia não, esgarçando-se, rareando, menos densa, cada vez mais difusa, até que se tem de fazer esforço, buscando, rebuscando, e, culpado por ainda estar vivo, passa-se a percebê-lo somente como difusa silhueta num teatro de sombras. Num exercício desesperado, o velho bibliotecário começou a desenhar na tela da imaginação o seu instrutor: cabelos negros, alguns fios brancos, grisalho, a pele muito branca, onde o sol não tostara, baixo, quase atarracado, barrigudo, nariz grosso, a voz às vezes estridente, de descendência italiana. De onde os olhos amendoados? O riso franco que, muitas vezes, desembocava numa gargalhada, ante as inocentes perguntas do aprendiz. E a gagueira? Sim, o Mestre era gago e isso, por certo, não fica bem em alguém pressupostamente capaz de controlar os desejos humanos, ou grande parte deles. E a sua profissão, o que fazia ele para viver? O preconceito jamais deixaria supor um ser tão evoluído ganhando a vida como humilde vigia portuário. Além de tudo, o Mestre era banguela, sem um único dente na boca! Acontece que a vida, a vida real, não é um romance de capa e espada. Não há, após essa descrição, sem meias-tintas, alguém menos apropriado para encarnar um avatar. Pode-se encontrar um Mestre numa catedral gótica, assim como numa aparentemente insignificante aldeia indígena, em vias de extinção. Ou trabalhando anônimo, no cais do porto. O velho bibliotecário refez mentalmente os passos pelas ruas estreitas, de paralelepípedos, da velha cidade, lado a lado, mestre e discípulo, num aprendizado informal, as palavras calando fundo no coração do rapaz: a importância do místico sincero entender que não há mal nem bem, que tais conceitos são meras quimeras; que se o brasileiro adquirisse o hábito salutar de se banhar todos os dias, pela manhã, poderíamos sim construir uma nação, a tão sonhada nação brasileira; de que a humanidade está sempre reescrevendo o mesmo livro; sobre os registros acásicos; Swami Vivekananda; Ramacháraca; o plexo solar; o novo cristianismo; sobre os chacras; Madame Blavatsky; Krishna; o Livro dos Mortos, o egípcio e o tibetano…

Fechou a biblioteca, desceu a escada, degraus de madeira maciça, feitos de dormentes de trem, trancando a estação ferroviária. Na plataforma, veio-lhe a cena de um filme, em preto e branco: o cavaleiro jogando xadrez com a morte.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

A CASA DA MEMÓRIA

Edson Negromonte

Certas coisas são difíceis de explicar, mesmo tendo-as presenciado. Difíceis principalmente aos espíritos céticos. Como não tenho a mínima ideia de quem está por trás destas páginas, dou-me o direito de acreditar que seja alguém disposto a comigo compartilhar de uma experiência que até hoje me horroriza, após tanto tempo. Não peço que você, leitor, creia em meu relato sem questioná-lo. Dou-lhe plena liberdade de discordar, sorrir incrédulo ou até, quem sabe, abandoná-lo após as primeiras linhas. Certamente, não gostaria que isto acontecesse, pois não estaria, então, dividindo com alguém o terrível acontecimento do qual pretendo dar conta.

Em certa ocasião de minha vida, na adolescência (fase propícia a que sejamos enganados com certa frequência), correu, na cidade onde eu morava (lugarejo aprazível, na encosta da serra, em cuja baía as histórias de fantasmas são uma convenção), a notícia de que no terreno da casa de nhá Arminda vinha brotando um filete de sangue. Curioso, como qualquer garoto da minha idade, ao saber da insólita ocorrência, ouvida da boca de uma das empregadas de casa, abandonei à mesa o prato de comida e saí às carreiras em direção à casa dessa conhecida senhora. Somente quando estava longe e já não podia mais responder, foi que dei pelos gritos desesperados de minha mãe, chamando por mim. Não, eu não podia perder tal acontecimento, bálsamo para uma índole inquieta que se comprazia em buscar nos livros, mormente nas enciclopédias ao meu alcance, palavras como íncubos e súcubos; deleitavam-me as narrativas do grotesco e do arabesco. Onde houvesse alguém disposto a arrepiar os cabelos da nuca de uma criança, ou de espíritos infantis, tenha certeza você de que me encontraria entre os ouvintes. Assim, desde cedo, a convivência com as pessoas ditas incultas era-me muito mais agradável e proveitosa; essa gente traz, da tradição oral, casos que passam a nos acompanhar durante toda a vida. A eles sempre dei crédito, mesmo depois de ingressar na escola primária e os professores, esses estraga prazeres, acharem por bem acabar com minhas fantasias, na vã tentativa de me tornarem normal, mais um materialista.

Ao chegar à casa de nhá Arminda, encontrei-a cheia de curiosos que, assim como eu, queriam ver com os próprios olhos o filete de sangue que do chão brotava. Era uma casa de construção antiga, centenária, de janelas altas, portas dando direto para a rua, mas que, apesar do desleixo na conservação, ainda apresentava em sua aparência o fausto de um tempo há muito deixado para trás, da efervescência econômica de um porto que já foi considerado um dos mais movimentados do País. Entrei pelo portão lateral, no estreito corredor que dava acesso ao terreno dos fundos, tive que forçar passagem com os cotovelos para chegar ao local, onde os adultos analisavam silenciosos, doutorais, o filete vermelho. Sim, tenha certeza de que disso posso dar ciência, pois, com esses olhos que a terra há de tragar (desculpe o lugar-comum, mas não me ocorre no momento expressão mais apropriada), eu também o vi. Alguns cheiravam o ar como cães farejadores, concordando entre si, com movimentos de cabeça, que havia naquele cenário um evidente cheiro de ferrugem. Receosos, aspiravam o ar, mas nenhum deles teve peito de passar o dedo no filete de sangue e cheirá-lo. Devo aqui esclarecer que, apesar do ímpeto juvenil à flor da pele, também não me atrevi a tal ousadia.

Logo, chegou o responsável pelo laboratório de análises clínicas, cidadão respeitável, de paletó preto amarrotado e gravata cinza, torta, alfinete do Rotary Club na lapela. Abriu a maleta de couro, tirou de dentro, tal e qual um Lavoisier, as esperadas lâminas de vidro, dispondo-as displicentemente na calçada, encostou uma dessas lâminas no suspeito filete. Em seguida, guardou-a num reluzente estojo de alumínio. Procedeu assim com outras duas lâminas o nosso cientista de plantão. Sim, somente ele poderia esclarecer a população; era o responsável pelo exame das nossas fezes. E também pela qualidade da água que bebíamos; ele que esclarecera ao prefeito que a diarreia que acometeu, em certa ocasião, a grande maioria dos moradores fora causada pelo cadáver de Maneco Dondinha. Bêbados, seu Maneco e o cavalo teriam contaminado a água, após morrerem afogados no grande reservatório da cidade.

Perguntaram-lhe se era mesmo sangue o filete vermelho que ora brotava do terreno de nhá Arminda.

– Petróleo é que não é – respondeu empertigado, fechando a maleta, nariz empinado, olhando as pessoas do alto dos seus óculos de tartaruga, alisando o bigodinho fino.

– Ué, é sangue ou não é?

– Somente poderei dizê-lo após uma cuidadosa análise.

Nem bem o homem do laboratório se foi, o padre chegou. Pegou a sacola da mão do sacristão e, sem perguntar nada a ninguém, carrancudo, foi logo borrifando água benta em tudo: no terreno, nas árvores, galinhas, nos presentes, enquanto murmurava uma reza arrevesada em latim. Sem nada entender, fazíamos o sinal da cruz a cada parada que ele dava para respirar. Seguimos em direção à casa, nós atrás, a certa distância, o padre na frente. Não entenda isso como covardia da nossa parte, é que se alguma coisa pior acontecesse teríamos o rotundo representante do Senhor como escudo. Já entrou tudo aspergindo, e o povo, cauteloso, do lado de fora. Eu, junto com outro menino, encostado no batente da porta. Borrifou móveis, televisão, o cachorro velho e cego, até a pobre da nhá Arminda que, no momento, rezava um terço. A mulher, enfezada, fez que nem era com ela. Todos sabiam da sua briga com o pároco, não ia mais à igreja desde que ele se recusara a dar os últimos sacramentos ao marido, alegando que o velho Antenógenes era comunista, comedor de criancinhas.

Quando padre e sacristão se foram, muitos ainda ficaram por ali, cheirando o ar, fazendo piadas, bicando um café ralo e doce, surgido sabe-se lá de onde (de dentro da casa é que não tinha vindo), filando cigarros, descontraídos, mas mesmo assim ninguém se atrevia a sequer relar o dedo mínimo no filete vermelho que continuava a escorrer indiferente pelo terreno. Nem mesmo Jesus, o intrépido filho de dona Mariazinha. Porque beber, Jesus bebia, e muito, mas fazia questão de declarar aos quatro ventos que jamais beberia o juízo, e que passar o dedo naquela coisa vermelha, de aparência pegajosa, era uma temeridade brincar com as coisas do Além. Jesus curvou o corpo, em evidente desequilíbrio, na direção do filete, cafungou o ar (alguém fez menção de empurrá-lo), ergueu-se, perscrutou o vazio e disparou:

– Que se isso for sangue, eu como é cum farinha!

– Então, come, se tu é homem! – exclamou um gaiato.

– Eu não, que sangue não se come, se bebe. E, de mais a mais, eu num sou vompiro!

Às seis da tarde, hora da Ave Maria, o ar se tornou mais denso, o odor de ferrugem mais intenso. Com a carícia repentina das franjas do manto da noite, achou-se por bem ir cada um para a sua casa; ninguém é besta de ficar num lugar amaldiçoado quando chegam as trevas. Nem a surra que levei de minha mãe, com galho de goiabeira, foi capaz de acalmar meus nervos. Sem pregar os olhos, aguardei a chegada dos primeiros raios da manhã. Antes que alguém em casa acordasse, saí pé ante pé e retornei ao mistério da casa que vertia sangue. Ao chegar, encontrei ali o carro do Diário do Paraná. Devia ser mesmo um mistério de grande monta, pois mobilizara até um dos jornais da capital. Dentro da casa, dois repórteres falavam com dona Arminda, enquanto a fotógrafa batia várias chapas do intrigante filete vermelho. Coçou ela a cabeça, quando eu lhe disse que cheirasse o ar para perceber o forte odor de ferrugem.

– Enxofre não seria mais apropriado?

– Não, enxofre é catinga de quando o Bode tá por perto. O cheiro de ferrugem vem do corpo de seu Antenógenes, marido da viúva, a quem o padre se recusou a dar extrema-unção. Ele era comunista... – expliquei à moça do jornal.

Depois destes, vieram outros; até gente que não falava a nossa língua, duma fala diferente, polacos, gente da Europa e até da Cortina de Ferro, os tais estrangeiros. Meu tio, entendido em inglês, disse que um dos jornalistas era do New York Times. Imagina só, nossa pequena aldeia ia sair até na imprensa gringa.

Quinze dias depois, seu Bertolotto, o das análises clínicas, informou ao prefeito, que informou à população (embora já soubéssemos), que ele, no seu laboratório, não tinha aparelhagem suficiente para dizer, nem para desdizer, se aquilo que agora escorria pela calçada em frente à casa de nhá Arminda era sangue ou groselha. Inspirado, seu Bertolotto, conhecido como Bebê Babão, invocou as sábias palavras de um filósofo baiano do qual não lembro mais o nome.

– "Dizem que o mel é doce. Se o mel é doce, isso é coisa de que me nego a afirmar, mas que parece doce parece. Isso eu afirmo plenamente".

Daí, foram colhidas novas amostras da substância vermelha e enviadas para um grande laboratório. Como a vida é dinâmica, enquanto o resultado não chegava, os jornalistas voltaram para as suas redações, inclusive os estrangeiros, e os curiosos voltaram aos seus afazeres: jogar sinuca, conversar fiado na barbearia, na farmácia, assistir a uma pelada no campinho. Ah, alguns trabalhavam, mas esses eram tão poucos que nem têm peso nas estatísticas. Eu, por minha vez, apesar da diferença de idades, tornei-me amigo de seu Bertolotto, embora fosse muitas vezes enxotado do laboratório, quando atrapalhava as suas palavras cruzadas com as minhas insistentes perguntas sobre o filete vermelho de sangue, que continuava a verter, sim, com menos intensidade, mas continuava lá, brotando, brilhante, ao sol, com cheiro de ferrugem, para quem quisesse ver ou cheirar. Como um detetive curioso, passei a frequentar a casa de nhá Arminda. Afeiçoou-se tanto a mim a solitária que cheguei a com ela compartilhar do chá com bolachinhas. De início, eu não aceitava. Tinha lá minhas razões: referiam-se a ela como bruxa, diziam que, em noites de lua cheia, a mulher podia ser vista voando numa vassoura de piaçaba, entre outras barbaridades que nem me atrevo a relatar, como rituais sabáticos, presididos pelo próprio Satanás em pessoa, essas perversões que só mentes desocupadas são capazes de engendrar. Mas a doçura da mulher foi, aos poucos, amolecendo minha repulsa inicial, de tal maneira que eu já não compreendia o dia sem o chá de nhá Arminda e o seu sorriso bondoso quando ela me esticava, com mãos trêmulas, o prato com a última bolacha Maizena.

Sete meses depois, o laboratório da capital mandou para o prefeito, aos cuidados de seu Bertolotto, o parecer definitivo sobre o grande mistério da casa que ainda vertia sangue, embora ninguém mais, a não ser eu, o escrevinhador destas linhas, se ocupasse com o fato. Sim, era sangue mesmo! Reboliçou-se novamente o povinho. Por incrível que pareça, mesmo com a confirmação de que era, sem dúvida, um líquido vermelho e viscoso, idêntico ao do organismo humano, não tivemos mais a visita de nenhum jornal, a não ser o Notícias Populares. Notícia é que nem sangue: se é fresco, alarma; coagulado é sinal de que a ferida já virou cicatriz. Assustada com o parecer do laboratório, nhá Arminda consentiu que o terreno fosse cavado, escavado, cavoucado, revolvido para se chegar de uma vez por todas à origem do enigma. Benedito, um negão forte e alto, atlético, corajoso, destemido, trabalhou durante horas, sem descanso, como se estivesse cavando um poço para matar a sede de Nosso Senhor. E nada de chegar à nascente sanguínea, ao mênstruo da terra. Com o de repente da noite, achou-se por bem encerrar as atividades para retomá-las no dia seguinte; Benedito, o infatigável gigante negro teve que ser içado por uma improvisada escada de cordas, de tanto que o homem cavara, escavara, cavoucara e revolvera a terra.

Vó Arminda, assim passei a chamá-la, pediu-me que pernoitasse em sua casa. Devo esclarecer que nem precisei consultar minha família, que já me considerava caso perdido. Nas raras vezes em que eu dormia em casa, a única reação de meus pais era balançar negativamente a cabeça, para lá e para cá. O caso do filete de sangue tinha tomado tal proporção dentro de mim, alma que ameaças e surras já não me faziam medo. Assim, muitas vezes evitei voltar ao lar, dormindo em calçadas, em banco de praça, só para não me afastar do foco de minhas atenções, a casa. Sim, a casa amaldiçoada, pois minha mente suscetível era dada a sonhos diurnos, como se eu fosse usuário de alguma droga, um opiômano, já não sabendo distinguir entre os mundos real e irreal. Esses devaneios eram alimentados por uma droga que eu mesmo gerava dentro de meu ser, de meu corpo, em meu próprio sangue, e que talvez afetasse a capacidade de raciocínio coerente. Sei que não poderia me expor assim, se realmente quisesse a credibilidade do leitor. Estou a pedir demasiado de alguém que sequer me conhece?

Na manhã seguinte, sai do sofá, onde tentei esticar o corpo, conciliar o sono, estremecendo a cada pequeno ruído noturno, imaginando ver, na escuridão da sala, seres os mais escabrosos. Abri a porta da cozinha, lavei o rosto no tanque. Ao olhar em direção ao buraco. um calafrio percorreu a minha espinha de ponta a ponta, os cabelos se eriçaram e, quando dei por mim, estava apavorado, aos gritos, berrando, feito louco, ensandecido, dando socos em minha própria cabeça. Não, eu não podia, recusava-me a crer: o buraco aberto no dia anterior estava fechado, a terra batida, como se ninguém houvesse nela trabalhado. Sem saber o que fazer, corri ao quarto de vó Arminda, para acordá-la. Sem escrúpulos, sacudi-a pelos braços, arranquei-lhe as cobertas. Em pranto, puxei os seus cabelos brancos. Nada da mulher acordar, até que o corpo esquálido despencou da cama. Tudo apagou-se então.

Quando voltei a mim, estava detrás das grades, preso, suspeito de matar a pobre velha. O populacho me acusava de tê-la esfaqueado. Como, se o cadáver não tinha uma única marca de perfuração? À polícia, de tê-la envenenado. Sem provas, menor, boa família, fui liberado. O laudo médico, fornecido pelo Dr. Schölze, amigo de meus pais, atestara morte súbita, parada cardíaca. Durante alguns meses, amarguei os olhares enviesados de meus conterrâneos; com o tempo (este bálsamo que abranda todas as mazelas humanas), fui sendo admitido novamente nos círculos sociais, apesar de perceber que já não me tratavam como antes. Não podiam entender os amigos por que eu me recusara a comparecer ao enterro de dona Arminda. Nem eu mesmo sei dizer o porquê. Quem sabe, a recente experiência com as forças malignas já tivesse batido no limite dos meus nervos esfrangalhados. Ou não seria eu mesmo o culpado da morte da anciã? E se ela estivesse dormindo um sono pesado quando fui chamá-la e, ao despencar da cama, com o impacto da queda, o coração, frágil, gasto, tivesse parado de bater? Então, admitamos, eu posso ser o culpado pela morte da pobre senhora.

Hoje, nem o casarão resta, muito menos o filete vermelho que do terreno brotava. No mesmo local, ao lado da estação rodoviária e da colônia de pescadores, está o Banco Itaú, onde antes funcionou o Banco do Estado, no cruzamento da rua XV de Novembro com a Coronel Marçalo, num prédio novo, de repugnante arquitetura modernosa. Ninguém sequer comenta mais o caso da casa que vertia sangue na tentativa de exorcizar mais um dos nossos demônios urbanos. Sei que os moradores atuais não me dão crédito, mas não morreria eu em paz comigo mesmo e com o Senhor do Altíssimo, nem com o das Profundas, se deixasse o ocorrido por narrar, na qualidade de cronista um tanto apócrifo de uma época que muitos fazem questão de relegar a um passado obscuro e extravagante. Agora, já posso descansar, de consciência tranquila e alma banhada...