quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

RACONTO DE MEIA-QUADRADA


Por Edson Negromonte, à moda de João Guimarães Rosa.

E que açodamento é esse, Nhonhô? Ora, tirar alguém da cama ansim em trajes de dormir, no quase-meio da madrugada. Para que tanta celeridade? Eu, de minha parte, não disponho de nem nenhuma. Adespois, Nhonhô, antes-de-todo carece de esclarecer que toda estória tem um tanto, na maior das vez um tantão, de história, e o vice-verso não corresponde, pois se a história tiver um tantinho de estória, pode até inser bem tramada, fio por fio, até fios de ouro pode de ter, mas passa a ser farsa, passa a ser comédia das burlesca, coisa que só serve para fazer-se rir o povo e, ansim, anquizilar os poderoso. Nhonhô, já-que essa tua-vossa baleeira toda de negro vai cortando de devagar as água, vou aproveitar o ensejo para racontar uma quadrada da minha vida que nunquinha hei de confabular a ninguém, não por mim, mas pelos cabra que vinheram a fazer parte dela. Isso que ora vou racontar a ti e a vós é uma acontecência dos idos de sessenta, por tanto, pelo tanto, há muito tempo para detrás. Nós, os rapazelhos, chamava a ela, mesmo inhantes de nela pôr os pé, a casa do alto da colina. Adespois, quando a gente tava drento, virava logo a casa da colina, e um pouco-pouquinho mais adespois “a casa”, e só. Minha avó chamava à casa “conventilho”, minha mãe a reconhecia como o “conventículo”, já minha irmã dizia a ela “alcoice”, para não dizerem o verdadeiro nome às clara. Era o dito tempo dos temporal que desabava dos céu a qualquer hora, sem nem desencobrir o céu de chumbo, que era um só em todo o país. E a casa era onde os homem de Naufragados se arreunia pra arrespirar um bocadinho que fosse de ar menos impuro, sem luta de classe. A casa, a tal, nem mais inexiste, pruquê nesse mundão nada perdura, e nada há-de perdurar. A colina tamém inexiste mais, nem sobraviveu à casa. A ganância comeu, nessa ordem mesma, casa e colina, mesmo pruquê o inverso-contrário nem-não seria possíver, além de ser de uma incorreção tal e tamanha na ordem das coisa terrena. Nessa casa, presenciei, de olhozibugalhudos, o primeiro crime da minha vida, diz-que crime passional, executado a punhal. A lâmina brilhava que arrebrilhava sob a luz violácea, bem ali em meio do salão central, onde os casais dançava e a zabaneira agonizava. O criminoso, em lágrimas, jurava a ela o amor eterno, amor além da carne. O amor que só a morte evidencia, porque há, nesse orbe, amor de todo jeito, tem até amor que ama só a si mesmo. Pode isso, Nhonhô? E foi nessa casa de perdição que eu encontrei o grande amor, o amor que de tão graúdo pede inté renúncia para não ofender o próprio si-mesmo do amor. Não o amor próprio, mas o próprio amor que se-torna-se impropério de tanto amor. Não pense, Nhonhô, que não veja os seus lábio de mofa. Inhantes que eu contigo me amofine, foi nessa casa que eu arrevi Maia. E, quando eu a arrevi de novo, foi aí entonce que descompreendi o que era o amor. Dize que ela tava ali acoitada da baba de cadela raivosa da polícia. Muitosano despois, sube eu que “maya” é uma palavra do linguajar sagrado das Índia e que-quer dizer “ilusão”. Do muleque que eu era, de entonce, Maia me fez homem. E foi me fazendo homem a cada noite, bem de-vagarzinho, que um homem não se faz de uma noite só, é uma construção paulatina, maré que chega, maré que vai. Adespois, eu soube que Maia se esconderijava é da polícia política, do Exército, do Estado. E se-fazia-se de murixaba para não alevantar suspeita, dava a quirica pra quem pagasse, tal-qual vera-veríssima puta. E, mesmo-ansim, eu me-fascinei-me por ela, mesmo ela sendo mulher de horizontal. Eu bem-que quis fazer dela uma mulherminha, de papel passado; e ela nunquis. Só muito tempo adespois, eu entendi o pruquê que, niuma manhãzinha enregelada de outubro, na era dos 69 pra’os 70, o sol nem não tinha ainda nem renascido, depois de atender o último homem, pra não alevantar suspeita, Maia embarcou niuma baleeira negra que-nem essa e rumou para a ilha das Quantinga, inhonde Lamarca, o capitão-mor das guerra de guerrilha tava acoitado, à espreita. Nadadisso ela me-disse, finquei eu nium trapiche, entre desespero e desesperação, obediente ao pedido de não segui-la, “se vancê me ama”. Desse dia indelante, macambuz, garrei correr mundo, os campos gerais, por lugares tão ermos de se oír toque de viola sem viola. Nhonhô, não faça pouco da minha dor, Nhonhô. Adespois que ela se-foi, Nhonhô, passei a sozinhar inté os dia de inda-hoje, e de noite tamém, desinteirado, no pio do noitibó. A beleza dela era ansim que nem beleza de querubi, e eu que nunca avistei nem anjo nem arcanjo posso mesmo dizer que tinha em Maia um tanto demais de querubinage. Preambulei céu e ceinho, chão e chainho, inté riveira e riveirinha. Assubisserra, desdescisserra por esses campos generais, mas que nuncabandonei o mar, e trazia toda essa imensitude de água salgada nos meus ói, água que eu não chorava, mas que não podia impedir a minha pele de chorar, o choramingo do suor, que sudorar é o chorar disfarçado do homem, sem remandiolage. Ni quando arribei no finismundo, eu me-boquiabri-me de-que havia mais mundo, e que esse mundão inhé tão vasto e tão tamanho que nunca mais há de se acabar. Já chegamo, Nhonhô? Adevolta, eu te raconto o entrecho seguinte da minha desaventurança.

2 comentários:

  1. que legal!!
    é como se Riobaldo tivesse descido a serra!!

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  2. É bem isso! Como o leitor sensível vê coisas que o autor sequer imagina. Obrigado, Jeff!

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