quarta-feira, 2 de agosto de 2017
NO BAZAR CHAHRIAR
Edson Negromonte
Nesta cidade, surgem bazares do nada. E também desaparecem num passe de mágica. Estão ali um dia e, no seguinte, hocus pocus, ninguém sabe dizer onde foram parar. Assim, adentrei em um que eu nunca tinha visto. Sim, em bazares se adentra, não se entra simplesmente, embrenha-se. O bazar será sempre um local mágico, de sombras, digno das mil e uma noites da rainha persa Xerazade, um lugar ao qual se vai, não em busca de algo específico, mas esperando ser surpreendido por algum objeto que sua imaginação, por mais inventiva ou destrambelhada, jamais ousaria supor que encontraria ali, em meio a toda sorte de insignificâncias. Geralmente, são coisas pequenas, tão pequenas, quase diminutas, que somente a você mesmo dizem respeito. Ontem, tão importantes para alguém, que provavelmente já morreu, tornam-se invisíveis de um momento para outro, até que despertem o interesse de alguém capaz de vê-las: as pessoas de alma sensível às delicadezas da vida.
Assim, adentrei o Bazar Chahriar; por uma porta mais estreita que o geral das portas das casas de comércio deste lado do mercado, as quais já são de sobejo exíguas. Foi, então, que pude perceber o mais amplo salão, impossível de imaginar quando se está do lado de fora. Já outras pessoas estavam ali, conversando, trocando ideias, enfim, tagarelando, mulheres e crianças; o único homem no ambiente, munido de um plectro, feito de escama de peixe, tocava o saz, um tipo de alaúde turco, alheio a tudo, entretido com as sonoridades de si mesmo. A um bazar, as mulheres geralmente vão em busca de roupas, tecidos, utensílios de cozinha, peças de adorno, enquanto às crianças tudo interessa, tudo é novidade. Elas, as crianças, assim como eu, também se extasiam com os objetos que, anteriormente, dormiam nos desvãos das escadas das casas, esquecidos. Por isso, evito olhar diretamente para os olhos dessas crianças nos bazares, temos interesses comuns; elas são perigosas. Depois de andar pelo salão, fazendo-me de indiferente, sem nada ter chamado ou despertado minha atenção (sinto-me pesaroso quando isso acontece, é como ter ido a Istambul e não ter erguido os olhos para o céu e, por isso, e somente por isso, não ter avistado os altos minaretes da Mesquita Azul), eu estava pronto para sair quando o interior de uma cristaleira envidraçada chamou minha atenção. Dirigindo-me à cristaleira, magnetizado por algo que ali entrevi, abri primeiro uma das portas, a da direita, delicadamente, como abrisse o portão enferrujado de Firdous, o paraíso no Alcorão, evitando assim chamar a atenção de algum infante infiel. Deve-se proceder assim em bazares, e tome isto como um conselho valioso para o dia em que sua alma o surpreender com o desejo incontrolável de se aventurar nesse meandro de mistérios. Se eu houvesse aberto as duas portas do móvel ao mesmo tempo, elas certamente fariam um ruído característico, algo como um muezim cego anunciando do alto do minarete a prece diária (Alá é grande!), que poderia soar como convite a que alguém compartilhasse comigo daquilo que eu mesmo ainda não compreendia. Portanto, o melhor a fazer, nesse caso, é não chamar a atenção de ninguém para aquilo que pode vir a ser a revelação: o chamamento para a primeira prece da manhã, estritamente pessoal, entoado pelo escravo da Abissínia, Bilal ibn Ribah, aquele que vem a ser o primeiro muezim do Islã.
Vi, então, na estante, alguns discos de vinil. E,neles encostado, um pequeno volume que continha uma velha caderneta, de capa de couro marrom, com as beiradas gastas, além de algumas folhas à parte, enfeixadas por uma fita de gorgurão. Puxei os discos, para examiná-los e, para meu espanto, eram todos iguais. Ou melhor, quase todos. Um deles chamou minha atenção pela aparência, podendo-se dizer pela “versão original” Os outros eram reedições tardias e baratas daquele. O original tinha a capa um pouco maior, questão de centímetros (detalhe perceptível para os aficionados), de papelão mais encorpado e cores mais vivas (berrantes? Não, não chegavam a tal extremo), o amarelo tomava grande parte da superfície da capa. O disco em questão era a trilha sonora de um filme, sobre o qual eu nunca ouvira falar, e a ilustração da capa oscilava, com volúpia, entre um close de Judy Garland e uma saltitante Julie Andrews. Enquanto os outros discos exibiam o preço de dez reais, este tinha o absurdo valor de mil e quatrocentos e quarenta somonis, anotado na beirada interna da capa. De que país seria essa moeda? Mesmo intrigado com o somoni, separei o disco. Sem saber o valor em moeda corrente do país, eu me vi temeroso de pechinchar, apesar de ser o costume nos bazares: o comerciante sente-se ofendido se o cliente não regateia. Com certeza, era um disco muito raro (eu nunca tinha ouvido falar nada sobre ele, nem mesmo podia ser considerado “mosca branca”, pois não havia uma única linha, por mais vaga que fosse sobre tal preciosidade nos melhores catálogos oscilantes de trilhas sonoras do cinema americano). Mas não barganhar, deixaria o vendedor de orelha em pé. Enquanto admirava a capa, que continuava, como um pêndulo, indefinida, alternando-se, ora era “O Mágico de Oz”, ora “A Noviça Rebelde”, um 78rpm escorregou de dentro dela, direto para a minha mão. O velho disco de carvão continha a música-tema do filme (disso, não sei dizer como, eu tinha certeza, embora o selo tivesse sido borrado de propósito). Mais tarde, pude verificar que a letra fora vertida para o português, e era cantada divinamente por Francisco Alves, mas essa gravação apócrifa também não consta de nenhuma biografia do cantor. Junto com o 78rpm, veio, além do convite para a avant-première, que ocorreria dali a sete dias no Cine Ópera, uma filipeta, na qual estava escrito, em impecável caligrafia feminina, a seguinte advertência: “Aquele que esta chave encontrar, deve também levar consigo o meu diário e as notas esparsas, coletadas durante toda uma vida, para a compreensão do grande enigma do que pode vir a ser o ser humano, a partir da compreensão do que é um ser humano”. Evidentemente, verifique novamente, com muita atenção, todos os outros discos. Agora, as capas eram de um colorido tão esmaecido que não se podia definir sequer a ilustração e, muito menos, o título. E nada, absolutamente nada de extraordinário, continham. Eram simulacros, representações grosseiras do original, para confundir os falsos buscadores do vinil sagrado.
Fui até o balcão, pronto para a pechincha do dia, levando comigo disco e diário. A senhora que me atendeu, de maquiagem pesada e perfume extremamente doce, enjoativo, inebriante, de rosa musgosa do Tajiquistão, fez-me sinal de silêncio. E, tirando o dedo indicador dos lábios, disse:
– Este disco e o pacote que o acompanha pertenceram à dona Izildinha, e não se pode levar um sem o outro. Portanto...
– Eu...
– Ouça, somente ouça. O preço exorbitante é somente um artifício para afastar aquele que não fosse o iniciado, prestes a galgar mais um degrau na escada da fraternidade.
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continua? me deixou curioso por demais!!
ResponderExcluirEsse final enigmático causou o efeito esperado.Abraço, jeff!
ResponderExcluirCOM CERTEZA!!
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