domingo, 3 de setembro de 2017

UMA FABULAÇÃO DO SÉCULO PASSADO



Edson Negromonte

para a minha neta Ayana


Ela era tão pequenina que podíamos chamá-la de menininha, achávamos que ela jamais cresceria. Sofria muito no inverno, quando tinha de ir para a escola, pela manhã, pisando no chão quebradiço, congelado pela geada. Mas, mesmo com todo o frio que fazia, ela não parava um instante. Saracoteava o tempo todo. Nem quando a avó a chamava para limpar o nariz. Então, a vovozinha a fazia assoar em uma das suas anáguas. A avó vestia sempre várias anáguas, umas sobre as outras, como era costume naquela região fria, o sul do país. A menininha chamava carinhosamente a avó de Mãe Velhinha, era a mãe do seu pai, um tropeiro de boa cepa, duro como o cerne de um pinheiro solitário. Mãe Velhinha estava sempre atenta ás peraltices da menina, que gostava de se encarapitar na ameixeira. E, lá do alto, saboreando os frutos amarelos e suculentos, ela cantava bem alto “O Ébrio”, de Vicente Celestino, uma canção popular deveras triste para a pouca idade da menininha, mas era isso que tocava seu coração. Assim, encarapitada no alto da ameixeira, ela também gostava de ouvir as notícias da Segunda Guerra, no rádio ou da boca dos mais velhos, à roda do fogo, à roda do chimarrão. Ela e os irmãos brincavam de combater os adversários da liberdade. Um era o Churchill, outro o Stalin. À menininha, os irmãos impunham o papel do Tojo, o primeiro-ministro do Japão, só porque ela era a menorzinha e usava óculos de aro redondo, e eles precisavam de um inimigo. Seu herói favorito era o príncipe Namor, que combatia o nazismo nas páginas do Gibi Mensal. Ela era tão pequenina que, todas as vezes, precisava mostrar a certidão de nascimento à entrada do cinema, para poder assistir o capítulo semanal do seriado em cartaz. Depois, ela passava a semana com um cliffhanger na boca do estômago, embora não soubesse ainda o significado desta palavra. Ela gostava muito também do Capitão Marvel. E toda a família Marvel! A menininha nunca teve uma boneca. – Por que nunca lhe deram uma boneca? Então, ela dava um jeito: cantava cantigas de ninar para uma abóbora, a qual ela levava ao colo, enrolada em uma manta de tricô. Ela sonhava, talvez ainda sonhe, com um realejo, mas um realejo que fosse somente dela, com as notas metálicas de uma valsa vienense que jamais tem fim, com um macaquinho amestrado, de colete vermelho, de detalhes dourados. Vendo a tristeza da menina, tio João recortou para ela, de uma revista, importada da França, um realejo. E a menina andava para cima e para baixo com aquele realejo maravilhoso, de papel, sonhando a sorte de todos aqueles que a sonhavam. A menininha queria porque queria ir ao circo com seus pais, mas eles não queriam levá-la à sessão da noite. Então, ela enfiou um grão de feijão em cada buraco do nariz. Em vez do circo, foram todos parar no consultório médico, para a retirada dos grãos de feijão do narizinho da menina. Todas as vezes que a reencontro, ela aproveita a ocasião para recitar, cheia de graça, um reclame que se ouvia no rádio de então: “Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu lado. E, no entanto, acredite, quase morreu de bronquite, salvou-o o Rhum Creosotado”.

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