quarta-feira, 26 de setembro de 2018

ENROLANDO O ROCK - Parte 6: AS TRAPALHADAS DO ROCK'N'ROLL



Edson Negromonte

Muito antes dos megafestivais, na década de 80, o Brasil, valendo-se da sua tradição festivalesca, já tivera vários woodstocks, sonho de qualquer jovem daquele tempo, depois de 1969. A primeiríssima tentativa, em fevereiro de 1971, foi o Festival de Verão de Guarapari, no Espírito Santo, sem infra-estrutura nenhuma e organizado por Antônio Alaerte e Rubinho Gomes. Foi neste festival que, enquanto cantava o sucesso "BR-3", aconteceu o desastrado stage dive de Toni Tornado, que aterrissou sobre uma fã, deixando-a paralítica da cintura para baixo. No mesmo festival, convidado por Carlos Imperial, estava o aparentemente "estranho no ninho" Luiz Gonzaga, sanfoneiro que, na ausência dos roqueiros convidados, deu uma canja.

No Teatro João Caetano, na região central do Rio de Janeiro, aconteceria o show Abertura da Temporada de Verão, com várias bandas, em 31 de outubro de 1974. Entre elas, com performances sem hora para acabar, a nata do progressivo nacional: Veludo, Terço, Vímana e Mutantes.

No ano seguinte, em janeiro de 1975, aconteceria o primeiro Festival de Águas Claras, em Iacanga, na fazenda Santa Virgínia, propriedade de um hippie woodstockiano conhecido, na região, como Leivinha. As bandas revezavam-se, com shows tidos como memoráveis: Terço, Som Nosso de Cada Dia e Moto Perpétuo (banda progressiva de Guilherme Arantes), entre muitos outros. Sucederam-se outras edições, nos anos 80, contando com a presença, inclusive, do bossa novista João Gilberto, quase sempre avesso às multidões, um Raul Seixas bêbado, vomitando atrás dos amplificadores, a banda curitibana Blindagem e uma vaiada Tetê Espíndola, caracterizando muito bem a intolerância da juventude em relação ao novo. Nos três últimos dias de maio e primeiro de junho desse ano, São Paulo veria, no Teatro da Fundação Getúlio Vargas, o Banana Progressiva, com certa organização, realizado em local fechado, muito mais um show com várias bandas que propriamente um festival, com apresentações de A Bolha, Veludo, A Barca do Sol, Som Nosso de Cada Dia, Terreno Baldio, Vímana e Erasmo Carlos. Ainda, entre tantos outros, a figura inusitada do inqualificável Hermeto Paschoal e suas experimentações sonoras. Eram tempos de abertura, palavra tão em voga àquela época, quando os militares tornaram-se, aparentemente, maleáveis em relação a uma juventude aparentemente apolítica, que queria deixar o cabelo crescer, fumar maconha em paz e fazer música, muita música, a mais libertária possível, como um ato político muito mais abrangente e libertador. Evidentemente, muito antenada com o que se fazia lá fora. Ainda neste ano, outro evento importante foi o primeiro Hollywood Rock, de Nelson Motta, no campo do Botafogo, patrocinado pela companhia de cigarros Souza Cruz e ao qual a empresa do tabaco jamais se refere, retirando o patrocínio, em decorrência de um traficante, preso naqueles dias, "entregar" que venderia todos os seus singelos e inofensivos ácidos lisérgicos no dito festival. Apesar de todos os contratempos, chuva, queima de equipamento, transferência de local, é um marco na história do rock brasileiro, com um falso disco ao vivo "Hollywood Rock" e o filme "Ritmo Alucinante", além das presenças de Raul Seixas, Rita Lee e o Tutti-frutti, Veludo, Peso, Vímana, Cely Campello (a nossa primeira Rainha do Rock) e o tremendão Erasmo Carlos, com a recém-formada Companhia Paulista de Rock, banda que contava com o baixista Liminha e o baterista Dinho, dois ex-Mutantes cansados das firulas do rock progressivo.

Endividado até o pescoço com o fracassado show "Feiticeira", da sua mulher Marília Pera, o compositor e produtor Nelson Motta promove, em 1976, o desastrado festival Som, Sol e Surf, em um pequeno estádio de futebol em Saquarema, no estado do Rio de Janeiro, na esperança de ganhar algum para se ver livre dos credores. A ideia surgiu quando ele se encontrou, em Búzios, com um músico doidão chamado Flávio Spiritu Santo, que o convenceu das facilidades de realizar um festival de música naquela região tão aprazível. Na verdade, o dito estádio era apenas um campinho de futebol, murado. Ali estavam, então, os principais nomes da época: a obrigatória Rita Lee, Tutti-frutti, Raul Seixas, Vímana (com um baterista de 16 anos: João Luiz Woerdenbag Filho, o Lobão), o paulistano Made in Brazil, com o crítico Ezequiel Neves assumindo a persona de Zeca Jagger, fazendo backing vocal, o pesadíssimo gaúcho Bixo da Seda, um Ney Matogrosso solo, já sem o Secos e Molhados, e a estreante bluseira Ângela Ro-Rô, aos 26 anos, acompanhada por uma banda que tinha, entre outros, o lendário Zé da Gaita, do grupo Flamboyant, e ex-integrantes do Peso, em performance ensandecida de "Meu Mal é a Birita". Além de Flávio Spiritu Santo, é claro! Na ideia original cabiam um disco e um filme, que registrariam mais uma peripécia roqueira de Nelson Motta, que, segundo ele mesmo, não chegaram a público por causa das grandes estrelas terem tido uma atuação morna, não condizente com o que se espera de apresentações ao ar livre (o canal Brasil anuncia para breve a exibição do filme). Com previsão para dois dias, em decorrência das tempestades de verão, ficou reduzido a um único dia de lama, bebedeira e ácido. Além da música! Muita música! Na última hora, os portões foram franqueados ao público, quando verificou-se que a lotação do "estádio" não chegara à metade, em uma tentativa desesperada de atrair público para, pelo menos, salvar o filme. Ledo engano, a população local, por nada deste mundo, sairia de casa para prestigiar um festival de rock, justamente no horário do popularíssimo programa da TV: Os Trapalhões.

terça-feira, 11 de setembro de 2018

ENROLANDO O ROCK- Parte 5: E A MANHÃ TROPICAL SE INICIA



Edson Negromonte

O ano de 1968 daria a público três discos importantíssimos para a compreensão da Tropicália, nome pelo qual seria conhecido o psicodelismo no País, com inspiração na obra conceitual "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band", dos Beatles: os LPs de Caetano Veloso e Gilberto Gil, e o manifesto sonoro "Tropicália ou Panis et Circensis", com capa do artista plástico Rubens Gerchman, onde acontece a tão propalada mistura, às vezes mal resolvida, mas instigante, de tradição e modernidade, sob a batuta do maestro Rogério Duprat, envolvido com o rock desde 1963, quando arranjou a canção de Albert Pavão "Vigésimo Andar", versão de "20 Flight Rock" (Eddie Cochran e Ned Fairchild), sucesso dos Quarrymen. Duprat faria, ainda em 1966, outra incursão roqueira: o compacto do sexteto O'Seis, embrião do trio Os Mutantes. O conceito tropicalista de deglutição cultural deriva, principalmente, das experiências modernistas do poeta Oswald de Andrade, que defendia a importância do canibalismo cultural desde que os silvícolas brasileiros comeram o bispo Sardinha, e, também, das experiências plásticas do designer gráfico Rogério Duarte e do artista conceitual Hélio Oiticica, ambos criadores da palavra “tropicália" para designar uma instalação penetrável.

Em 1967, com um tanto de insatisfação, outro de provocação, Caetano e Gil participaram do III Festival.da Música Popular Brasileira, pela TV Record, incorporando a guitarra elétrica às suas canções, "Alegria, Alegria" e "Domingo no Parque", através do acompanhamento de duas bandas de rock, a argentina Beat Boys e a paulistana Os Mutantes, recebendo quarto e segundo lugares, respectivamente. Gil vinha de gravações de música tradicional, com vários compactos, por um selo local baiano, e o LP "Louvação", onde consta a antevisora "Lunik 9", além de parcerias com o poeta e jornalista Torquato Neto, figura importantíssima para o movimento, com uma coluna comportamental no Jornal do Brasil, a Geléia Geral, também título de uma canção dele com Gil. O baiano Caetano, crítico de cinema e dublê de pintor, gravara com a conterrãnea Maria da Graça, a depois famosa Gal Costa, o LP bossa novista "Domingo", na prática um comportadíssimo tributo a João Gilberto, além de ter sua "Pra Chatear" gravada por Ronnie Von, esta figura singular do rock brasileiro, de um mundo próprio, com formação erudita, principalmente música barroca, que faria dois discos clássicos da psicodelia brasileira, "Ronnie Von" e "A Misteriosa Luta do Reino de Parassempre Contra o Império do Nuncamais", com um dos títulos mais longos para uma canção popular: "De Como Meu Herói Flash Gordon Irá Levar-me de Volta a Alfa do Centauro, Meu Verdadeiro Lar". Em seus quatro primeiros discos, Gal Costa é uma autêntica roqueira psicodélica, escorada pela guitarra endiabrada de Lanny Gordin, transformando a mais simples canção em um hino ao instrumento. Este nosso primeiro guitar hero, ao se exilar em Londres, deslumbrou-se com as possibilidades do ácido lisérgico, usando e abusando da droga, até que desgraçadamente desaprendeu a tocar. Também os Mutantes, com sua irreverência adolescente, são vitais para o movimento, principalmente com a gravação iconoclasta de uma joia intocável da seresta parnasiana, "Chão de Estrelas", de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, com um arranjo literalmente arrasador, com peidos, aviões e gargalhadas, do enfant terrible Duprat. Outros maestros, como Júlio Medaglia, Damiano Cozzella e o sempre esquecido Sandino Hohagen, alunos de Pierre Boulez e Stockhausen, e discípulos de Anton Webern e John Cage, também deram sua contribuição. Fundamental foi o encontro dos músicos com a Poesia Concreta, dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, que daria uma cara altamente intelectualizada à Tropicália, tornando-a única em toda a psicodelia internacional. Seguramente, poucos são os países em que o movimento, além de flertar com a cultura folclórica local, ainda se deu ao luxo de letras que remetem aos grandes poetas nacionais e à grande poesia internacional, através de traduções de altíssimo nível.

Naquele tempo de efervescência cultural, onde até os mais velhos reviam seus conceitos de certo e errado, surgiram várias artistas e bandas com propostas radicais para uma nova arte e musicalidade. Muitas experimentações ficaram esquecidas, como o único disco de Os Brazões, com versões interessantes para composições de Gilberto Gil, como "Pega a Voga, Cabeludo" e "Volkswagen Blues", além de um arranjo soberbo para a metafórica "Gotham City", na qual a cidade do homem-morcego é a representação do próprio País, com caça às bruxas e morcegos na porta principal, de Jards Macalé, violonista erudito que aderiu ao movimento, e do poeta baiano Capinam, o segundo letrista em importância para a Tropicália. Uma linguagem cifrada que os ouvintes da época sabiam muito bem decodificar. A banda ressente-se das diatribes de um Duprat, figura fundamental para se compreender a riqueza do Tropicalismo. O maestro era a eminência parda, alguém que atuava nas sombras, e só recentemente teve o seu verdadeiro valor reconhecido, alguém que mudou-se para um sítio no interior do estado de São Paulo, em decorrência da pobreza musical da atualidade. O grande poeta Torquato, letrista de várias canções-manifesto, depois de ser internado em um hospício pela própria família, vendo-se abandonado pelos amigos e parceiros musicais, suicidou-se deixando um bilhete que termina com a lapidar frase "Pra mim, chega!".

Enquanto isso, a ditadura comia solta, com prisões, torturas à luz do dia e corpos que até hoje clamam por justiça. Não tardaria para que os militares instituíssem o Ato Institucional No. 5, calando, de vez, as bocas do País, exilando, em 1969, Caetano e Gil, vistos como os cabeças de um movimento pernicioso, de amplitude não só política, mas comportamental, de curtíssima duração, e fundamental para a geração seguinte, aquela que se aventurou a fazer música nos Anos de Chumbo.