terça-feira, 11 de setembro de 2018

ENROLANDO O ROCK- Parte 5: E A MANHÃ TROPICAL SE INICIA



Edson Negromonte

O ano de 1968 daria a público três discos importantíssimos para a compreensão da Tropicália, nome pelo qual seria conhecido o psicodelismo no País, com inspiração na obra conceitual "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band", dos Beatles: os LPs de Caetano Veloso e Gilberto Gil, e o manifesto sonoro "Tropicália ou Panis et Circensis", com capa do artista plástico Rubens Gerchman, onde acontece a tão propalada mistura, às vezes mal resolvida, mas instigante, de tradição e modernidade, sob a batuta do maestro Rogério Duprat, envolvido com o rock desde 1963, quando arranjou a canção de Albert Pavão "Vigésimo Andar", versão de "20 Flight Rock" (Eddie Cochran e Ned Fairchild), sucesso dos Quarrymen. Duprat faria, ainda em 1966, outra incursão roqueira: o compacto do sexteto O'Seis, embrião do trio Os Mutantes. O conceito tropicalista de deglutição cultural deriva, principalmente, das experiências modernistas do poeta Oswald de Andrade, que defendia a importância do canibalismo cultural desde que os silvícolas brasileiros comeram o bispo Sardinha, e, também, das experiências plásticas do designer gráfico Rogério Duarte e do artista conceitual Hélio Oiticica, ambos criadores da palavra “tropicália" para designar uma instalação penetrável.

Em 1967, com um tanto de insatisfação, outro de provocação, Caetano e Gil participaram do III Festival.da Música Popular Brasileira, pela TV Record, incorporando a guitarra elétrica às suas canções, "Alegria, Alegria" e "Domingo no Parque", através do acompanhamento de duas bandas de rock, a argentina Beat Boys e a paulistana Os Mutantes, recebendo quarto e segundo lugares, respectivamente. Gil vinha de gravações de música tradicional, com vários compactos, por um selo local baiano, e o LP "Louvação", onde consta a antevisora "Lunik 9", além de parcerias com o poeta e jornalista Torquato Neto, figura importantíssima para o movimento, com uma coluna comportamental no Jornal do Brasil, a Geléia Geral, também título de uma canção dele com Gil. O baiano Caetano, crítico de cinema e dublê de pintor, gravara com a conterrãnea Maria da Graça, a depois famosa Gal Costa, o LP bossa novista "Domingo", na prática um comportadíssimo tributo a João Gilberto, além de ter sua "Pra Chatear" gravada por Ronnie Von, esta figura singular do rock brasileiro, de um mundo próprio, com formação erudita, principalmente música barroca, que faria dois discos clássicos da psicodelia brasileira, "Ronnie Von" e "A Misteriosa Luta do Reino de Parassempre Contra o Império do Nuncamais", com um dos títulos mais longos para uma canção popular: "De Como Meu Herói Flash Gordon Irá Levar-me de Volta a Alfa do Centauro, Meu Verdadeiro Lar". Em seus quatro primeiros discos, Gal Costa é uma autêntica roqueira psicodélica, escorada pela guitarra endiabrada de Lanny Gordin, transformando a mais simples canção em um hino ao instrumento. Este nosso primeiro guitar hero, ao se exilar em Londres, deslumbrou-se com as possibilidades do ácido lisérgico, usando e abusando da droga, até que desgraçadamente desaprendeu a tocar. Também os Mutantes, com sua irreverência adolescente, são vitais para o movimento, principalmente com a gravação iconoclasta de uma joia intocável da seresta parnasiana, "Chão de Estrelas", de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, com um arranjo literalmente arrasador, com peidos, aviões e gargalhadas, do enfant terrible Duprat. Outros maestros, como Júlio Medaglia, Damiano Cozzella e o sempre esquecido Sandino Hohagen, alunos de Pierre Boulez e Stockhausen, e discípulos de Anton Webern e John Cage, também deram sua contribuição. Fundamental foi o encontro dos músicos com a Poesia Concreta, dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, que daria uma cara altamente intelectualizada à Tropicália, tornando-a única em toda a psicodelia internacional. Seguramente, poucos são os países em que o movimento, além de flertar com a cultura folclórica local, ainda se deu ao luxo de letras que remetem aos grandes poetas nacionais e à grande poesia internacional, através de traduções de altíssimo nível.

Naquele tempo de efervescência cultural, onde até os mais velhos reviam seus conceitos de certo e errado, surgiram várias artistas e bandas com propostas radicais para uma nova arte e musicalidade. Muitas experimentações ficaram esquecidas, como o único disco de Os Brazões, com versões interessantes para composições de Gilberto Gil, como "Pega a Voga, Cabeludo" e "Volkswagen Blues", além de um arranjo soberbo para a metafórica "Gotham City", na qual a cidade do homem-morcego é a representação do próprio País, com caça às bruxas e morcegos na porta principal, de Jards Macalé, violonista erudito que aderiu ao movimento, e do poeta baiano Capinam, o segundo letrista em importância para a Tropicália. Uma linguagem cifrada que os ouvintes da época sabiam muito bem decodificar. A banda ressente-se das diatribes de um Duprat, figura fundamental para se compreender a riqueza do Tropicalismo. O maestro era a eminência parda, alguém que atuava nas sombras, e só recentemente teve o seu verdadeiro valor reconhecido, alguém que mudou-se para um sítio no interior do estado de São Paulo, em decorrência da pobreza musical da atualidade. O grande poeta Torquato, letrista de várias canções-manifesto, depois de ser internado em um hospício pela própria família, vendo-se abandonado pelos amigos e parceiros musicais, suicidou-se deixando um bilhete que termina com a lapidar frase "Pra mim, chega!".

Enquanto isso, a ditadura comia solta, com prisões, torturas à luz do dia e corpos que até hoje clamam por justiça. Não tardaria para que os militares instituíssem o Ato Institucional No. 5, calando, de vez, as bocas do País, exilando, em 1969, Caetano e Gil, vistos como os cabeças de um movimento pernicioso, de amplitude não só política, mas comportamental, de curtíssima duração, e fundamental para a geração seguinte, aquela que se aventurou a fazer música nos Anos de Chumbo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário