segunda-feira, 30 de agosto de 2010
AS DEUSAS DO CINEMA AMERICANO
por Edson Negromonte
as deusas do cinema americano são mulheres de celulóide,
não têm mais carnes azuis, nem bocas vermelhas.
As deusas do cinema americano olham-me assustadas
como se eu fosse o canibal faminto de um desenho animado,
as deusas do cinema americano são belas e irreais
como uma tragada de rita hayworth.
Tetas enormes, tácteis, sedosas,
as deusas do cinema americano,
as mulheres das capas de revista, sempre sorridentes,
parecem infláveis e até confiáveis.
Ah, não são para o meu bico,
mesmo porque eu vou pelas ruas do terceiro mundo
e, a cada uma que passa, digo uma graça.
& o dia está ganho se ela se acha
quinta-feira, 26 de agosto de 2010
O RETRATO DE JOEY RAMONE
por Edson Negromonte
Acordara disposto a terminar o retrato. Olhando melhor, sentado em frente ao cavalete, a suspeita se confirmava: a madame estava a cara do Joey Ramone; só ele sabia o quanto lhe era custoso pintar retratos de gente esnobe que, só porque está pagando, pensa que pode comprar a beleza que, na realidade, não possui, transformando o artista em criminoso. Suspirou fundo, acendeu um baseado, entreabriu a janela da sala. Segurou a fumaça o mais que pode, precisava fazer logo a cabeça para encarar mais um dia. O prazo estava vencido, logo ela telefonaria para saber se estava pronta “a grande obra”, assim a madame se referia ao quadro, terminando a frase num cacarejo. De que os ricos riem tanto? Até que não estava mau... para um retrato de Joey Ramone. Ele precisava de grana, não podia se dar ao luxo de pintar o retrato de um roqueiro morto que não interessava a ninguém. Não tinha sido assim com as telas de Eros Volúsia, Boris Karloff e Tintim? Onde estariam esses quadros agora? Provavelmente esquecidos nos porões de uma galeria qualquer, amontoados como lixo. Poderia começar outro retrato da socialite, mas isso já estava dando nas nervos, não aguentava mais gastar a vida que sabia pouca pintando retratos da grã-finagem local, invariavelmente mal pagos. Como os maridos são capazes de pechinchar, depreciar, até o pintor se sentir mal e muitas vezes entregar o trabalho por preço de custo. Tá bom, não vamos discutir, me paga só o material. Era assim que se encerravam as negociações, o golpe de misericórdia, um pedido de clemência. O que ele faria com uma tela sob encomenda, de gente empoada? Pintar por cima? Não, recusava-se a isso.
O que fizera dos sonhos? Quem o conhecia, sabia que a vida não lhe fora madrasta, e o eterno problema de um teto estava garantido, morava de graça no antigo apartamento da irmã mais velha. As necessidades básicas de Artur Araripe eram poucas: uma substanciosa refeição diária, cigarros e maconha, sem a qual não conseguia se entender. Eventualmente um litro de Sangue de Boi, acompanhado da inevitável dor de cabeça do dia seguinte, que o deixava prostrado; então ele tirava o dia para dormir. Na pensão Vidor, onde fazia as refeições, gostava da companhia de Gilda à mesa; sempre calado, o travesti o fazia divagar, construir mentalmente uma caixa retangular, negra, a silhueta de Rita Hayworth recortada; no fundo da caixa, a foto de dois ciclistas desconhecidos. No alto, o bonequinho do Dick Tracy, de capa amarela, sugerindo o mistério a ser resolvido. Um crime? Tinha consciência da obviedade do título, “Nunca mais um traveco como Gilda”. Criaria as mais disparatadas teorias sobre o objeto, evocando o desesperado Glenn Ford. Ah, a infatigável arte de inventar teorias sobre os seus trabalhos, títulos que invariavelmente remetiam à literatura, música, cinema. E à própria história da arte. Não fora assim com “O Pássaro do Ciúme Sobrevoa o Paraíso”, “Drácula Mon Amour”, “A Mulher-Gorila Só Come Pipoca de Microondas”, “Solo de Sax para Doris Day”? Assim também com “A Felicidade”: sobre fundo vermelho, uniforme, dois revólveres, calibre 38, de frente um para o outro, a sugerir um 69. No vernissage, quando o banqueiro e a esposa aproximaram-se, intrigados com a tela, disparara “a felicidade é como a gota de orvalho”, o lapidar verso de Vinicius. Ou “happiness is a warm gun”, de Lennon, para a jovenzinha coquete, encantada por estar conversando com o artista arredio, avesso a aglomerações, mas que dera o ar da graça à coletiva. Por que ele agia assim? Autodestrutivo, Artur Araripe vivia com a arma apontada para a própria cabeça; antes que alguém pensasse em destruí-lo, ele já tinha apertado o gatilho.
Precisava terminar o retrato da madame, prometera a si mesmo não pedir mais um centavo à irmã, a única pessoa que ainda o compreendia. Desde a morte do pai, ela tomara a peito o encargo de cuidar do irmão. Pianista frustrada, o casamento abortara a carreira promissora de Mercedes, a vinda dos filhos, as responsabilidades domésticas, o dia-a-dia insípido. O irmão era tudo para ela, a oportunidade de realização, mundo ao qual só os dois tinham acesso. Com a mudança para o Alto da Glória e a boa situação do marido, Mercedes deixara o apartamento para Artur; no leito de morte, o pai pediu-lhe que jamais abandonasse o irmão, que não o deixasse à deriva, que o protegesse de si mesmo. O relacionamento de Artur e Mercedes era quase incestuoso, ela fora o seu primeiro modelo vivo, todas as mulheres que Artur pintava tinham um quê da irmã, ora os olhos claros, castanhos, quase verdes, ora a boca vermelha, entreaberta, convidativa. Os seios das musas eram sempre os seios pequenos e eternamente redondos de Mercedes. Bem que Artur tentou superar a fixação, casando-se. A primeira mulher não tinha nada a ver com ele, sabia que não a amava. Ela tentou inúmeras vezes compreendê-lo, a barreira era intransponível. Após quatro anos de tédio, separaram-se, sem brigas, nem recriminações, sem filhos, nada em comum, como se não tivessem passado pela vida um do outro. Apesar disso, sem saber porquê, choraram na despedida. Outros três relacionamentos amorosos aconteceram, mais fugazes ainda, rápidos como um ato sexual na zona, porque a fila anda, como diria a dona da casa. Vacinado, Artur não admitiu mais ninguém em seu mundinho particular. Como todo artista precisa de paixões para produzir, principalmente as platônicas, enamorou-se de Catherine Deneuve, Anita Ekberg e Marilyn Monroe, todas volúveis, fúteis, propensas à traição. Somente Mercedes era capaz de amá-lo sem nada pedir em troca.
Enganando a si mesmo, Artur precisava acreditar que realizaria a grande obra, digna da genuína aspiração de deixar um legado para a humanidade. Sim, “A Grande Ceia Marciana”! Por que não pensara nisso antes? Como ponto de partida, “A Santa Ceia” de Leonardo da Vinci; no lugar dos apóstolos, alienígenas como os dos cards “Marte Ataca”. Em primeiro plano, pelo chão, embalagens de sabão em pó Omo, Rinso, Minerva, latas de Nescau, Toddy, Ovomaltine, salgadinhos Elma Chips, salsichas Sadia, Sonhos de Valsa, Marlboro etc, os patrocinadoresdo encontro sagrado. Nas paredes, pôsteres de Jimi Hendrix, Che Guevara, Hitler, Ginger Rogers, Rasputim, Mary Osmond, Monkees, Garibaldo... À mesa, uma garrafa de Coca-cola. De grandes proporções, a garrafa, a tela. Tinha de pensar grande, como fazia Picasso. Reacendeu o baseado, a fim de clarear as ideias, ver mais longe. Sim, “A Grande Ceia Marciana” seria a sua obra-prima. Ah, utilizaria as várias referências de toda uma vida que até então lhe parecera insossa. Como Hitchcock, Artur também estaria presente ao inusitado banquete, disfarçado, nada evidente, talvez escondido em baixo da mesa, deixaria sim vários enigmas a serem decifrados pelos arqueólogos. Como na música eletrônica, agiria como um sampler, o mundo como um grande banco de dados. Sim, a verdadeira arte teria de atuar em consonância com o procedimento das outras artes, principalmente a música. Eureca, Leonardo, além de pintor, tinha sido músico, o inventor de novos instrumentos para a nova música. Dodecafônica, serial, tonal, atonal, aleatória, samplear o velho e o novo. Leonardo não tinha sido também cientista? Infatigável, descobrira a grande e a pequena circulações do sangue, dissecando cadáveres roubados, na calada da noite, dos cemitérios. Sim, Artur utilizaria as novas descobertas industriais, a tinta automotiva, de maior durabilidade e cores metálicas. Era isso, sim, o nome Artur Araripe estaria inscrito na história da arte mundial. Nenhum crítico mais poderia se referir à arte do século 21 sem citar Artur Araripe. Deu uma puxada profunda no fumo e teve, então, a grande, fenomenal ideia: a assinatura, para sempre indelével, seria uma esplêndida ejaculada sobre toda a obra, o gozo do artista incompreendido preservaria para toda a eternidade o seu DNA, com o qual os cientistas dos séculos futuros pudessem clonar um novo Artur Araripe, quem sabe, Araripes, sim, Araripes aos montes, às mancheias, indispensáveis à renovação de uma arte estagnada. Porque, após isso, a arte jamais seria a mesma. Daí, cortaria os pulsos. Não, isso não, cortar os pulsos é coisa de empregada doméstica. Quem sabe, cortasse o pau após a obra finda. Só, se esvairia em sangue, o grand finale. Não, isso não, não podia dar mais trabalho a Mercedes. Tinha de pensar numa morte limpa, não menos apoteótica. E se se enforcasse, como Ian Curtis? Com uma ponta de satisfação, imaginou a irmã lavando o sangue coagulado do assoalho, chorando a perda, maldizendo-o, a impossibilidade de limpar os vãos entre os tacos. Não, ela não se daria ao trabalho, contrataria uma faxineira. Pena que ele não veria a cena. O que estava dizendo? Não, não podia dar tal desgosto à irmã, a pequena Mercedes dos seios eternamente redondos. Embevecido, entorpecido, “A Grande Ceia Marciana”, a obra-prima, a glória eterna, Artur deambulava, viajava, arrastando-se pantanoso através do tempo espectral que nem as ampulhetas podem medir.
O toque insistente do telefone trouxe-o de volta.
- Alô?
- Oi, grande artista, o meu retrato está pronto?
- Quem é, Joey Ramone?
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segunda-feira, 16 de agosto de 2010
O NICROMANTE
por Edson Negromonte
cara a cara com o marítimo rocinante, remiro-me. Ora o mar é ocre, o ritmo monótono é ornato no cemitério interior. Antonina, eternamente momentânea. Na cama macia, antônima ao tormento, a amante amara contrai a cona e ri. Narcoticamente, recito à cítara e rio. Amortecimento, trapo roto é manto ao tétrico crime. O crânio, oco, retornará na maré e ecoará, na câmara arcana, o amor eterno. Nem no Antero inteiro, na camoniana, em Marino, Caeiro, Marinetti, encontrarei comércio. Nem na mão de Monet, no cinema, na cinira, nem no teorema, nem no teatro nô... A memória, caótica trará à tona o crânio e atônito encontrarei, na areia, a cimitarra. Miramarina Antonina, a coar o cancro mnemônico. O metrônomo no átrio é iminente a noite. Creio no crânio, a arca, mito e romance, o ícone em mármore. Camorra e mentira, retiniana Antonina. Errata, carma, carne iniciática, nomeio-te matéria. Macera a mirra, corrimento.
Cometi o crime: amei-te, amei o mar, o nácar, o oceano.
Toma, na areia, a arma tinta; corta-me. A mônada, imanente. No entreato,
retira-te. Irmana-me ao cimento.
Cão maior! Coroa! Carneiro! Octante! Câncer! Órion! Raptem-me! Naco a naco, raptem-me.
Anciã, rica em ócio, canaã-anã, trapaceira, irmã, onírica Antonina, a artrite
torna-te torta.
Ao oriente, a tormenta.
Ancora, cetácea, ancora!
Nem rota, nem timoneiro, nem carta, temo a cética e cretina Antonina.
No mirante, a mãe totêmica.
Âncora! Ática. América. Circe. Trácia. Criméia. Cananéia. Tera. Marte. Ciméria.
Terra, terra.
Atraca, Caronte, na terra acre e íntima, a coríntia Antonina.
No meretrício, intimo-te, rameira: ama-me. Catarro e amônia.
O retirante, errático, retorna a remo à mítica Antonina.
Reitera o crime.
Torre, minarete, mar ártico, antártico, titã, conto morar (ironia), na tetânica Antonina.
Não, ai, mãe, corta-me, então, a córnea, corta-me ao meio, torna-me areia marmórea, minério, átomo, matemática. Morto, cremem a mim, enterrem-me no camotim. Em amém, a monotonia teima em corroer a romã.
Rareia o carmim.
Cinéreo canoeiro...
Monocrômica, anacrônica, atraente, arcaica Antonina, não amei-te ao meio, amei-te à maneira inteira; tem-me em conta, atira-me ao trinta e cinco.
cara a cara com o marítimo rocinante, remiro-me. Ora o mar é ocre, o ritmo monótono é ornato no cemitério interior. Antonina, eternamente momentânea. Na cama macia, antônima ao tormento, a amante amara contrai a cona e ri. Narcoticamente, recito à cítara e rio. Amortecimento, trapo roto é manto ao tétrico crime. O crânio, oco, retornará na maré e ecoará, na câmara arcana, o amor eterno. Nem no Antero inteiro, na camoniana, em Marino, Caeiro, Marinetti, encontrarei comércio. Nem na mão de Monet, no cinema, na cinira, nem no teorema, nem no teatro nô... A memória, caótica trará à tona o crânio e atônito encontrarei, na areia, a cimitarra. Miramarina Antonina, a coar o cancro mnemônico. O metrônomo no átrio é iminente a noite. Creio no crânio, a arca, mito e romance, o ícone em mármore. Camorra e mentira, retiniana Antonina. Errata, carma, carne iniciática, nomeio-te matéria. Macera a mirra, corrimento.
Cometi o crime: amei-te, amei o mar, o nácar, o oceano.
Toma, na areia, a arma tinta; corta-me. A mônada, imanente. No entreato,
retira-te. Irmana-me ao cimento.
Cão maior! Coroa! Carneiro! Octante! Câncer! Órion! Raptem-me! Naco a naco, raptem-me.
Anciã, rica em ócio, canaã-anã, trapaceira, irmã, onírica Antonina, a artrite
torna-te torta.
Ao oriente, a tormenta.
Ancora, cetácea, ancora!
Nem rota, nem timoneiro, nem carta, temo a cética e cretina Antonina.
No mirante, a mãe totêmica.
Âncora! Ática. América. Circe. Trácia. Criméia. Cananéia. Tera. Marte. Ciméria.
Terra, terra.
Atraca, Caronte, na terra acre e íntima, a coríntia Antonina.
No meretrício, intimo-te, rameira: ama-me. Catarro e amônia.
O retirante, errático, retorna a remo à mítica Antonina.
Reitera o crime.
Torre, minarete, mar ártico, antártico, titã, conto morar (ironia), na tetânica Antonina.
Não, ai, mãe, corta-me, então, a córnea, corta-me ao meio, torna-me areia marmórea, minério, átomo, matemática. Morto, cremem a mim, enterrem-me no camotim. Em amém, a monotonia teima em corroer a romã.
Rareia o carmim.
Cinéreo canoeiro...
Monocrômica, anacrônica, atraente, arcaica Antonina, não amei-te ao meio, amei-te à maneira inteira; tem-me em conta, atira-me ao trinta e cinco.
sábado, 7 de agosto de 2010
TUBE, O PEQUENO NOTÁVEL
por Edson Negromonte
foto de Eduardo Nascimento
Ao saber do falecimento de Tube, em 17 de maio deste ano, através do blog do Jeff Picanço, não pude deixar de sentir que uma parte importante de mim estava se extinguindo também. Sim, sentimental eu sou. Veio-me, daí, a melodia esfarrapada de um tango antigo que o pândego cantava a plenos pulmões nas memoráveis madrugadas capelistas de minha adolescência.
tango, bandoneón, uma guitarra que geme
num ritmo de amor desesperado
um cabaré que fecha suas portas
uma rua de amor e de pecado
Ao chegar a Antonina, no último ano da década de 1960, foi ele o primeiro vagabundo original com o qual tomei contato. De estatura baixa, pernas curtas, franzino, pele morena, olhos verdes faiscantes, sorriso matreiro, Tube inundava os finais de noite com o seu vozeirão, cantando o primeiro tango que eu, roqueiro empedernido, fã dos Rolling Stones, viria a gostar, não tanto pelo ritmo ou letra, mas porque todas as vezes em que, perdido na azáfama da vida, necessitei de um fulcro, foi a essa grata lembrança que eu recorri. Em frente ao Cine Ópera, cinco amigos aproveitavam os últimos dias das férias escolares de final de ano quando uma sombra foi se agigantando lentamente. Ao erguer a cabeça em direção ao dono da sombra, dei de encontro com os olhos mais vivazes e intimadores que eu já tinha visto.
– Não vem de garfo que hoje é dia de sopa! – disse inopinadamente Tube, alcoolizado.
Esta era uma das tiradas prediletas dele, marcante; as máximas de Tube estão por merecer uma antologia, como está ocorrendo com as inscrições do Profeta Gentileza, no Rio de Janeiro, antes que se percam no torvelinho do dia-a-dia. Em outras ocasiões saía-se com “Não vem de escada que o incêndio é no porão” ou “Eu quero é comer o gorduroso” ou “Passarinho que dorme com morcego acorda de cabeça para baixo” ou “Não vou amadurecer banana pra morcego”, entre tantas outras. Entenda-se máxima pela ótica kantiana, ou seja, “princípio escolhido livremente para servir de norma de conduta”.
um guarda que vigia numa esquina
um casal que anda à procura de um hotel
um resto de melodia
um assobio, uma saudade imortal,
Carlos Gardel
Naquela inesquecível noite, no final de fevereiro, a primeira informação que tive sobre Tube é de que ele tinha sido um dos confeiteiros mais conceituados de Santos (além de marítimo, sapateiro, barbeiro, artista de circo etc., mas isso eu vim saber muito tempo depois). Como a grande maioria dos boêmios, a bebida lhe arrebatava as forças e, de uma hora para outra, ele mandava tudo pelos ares e caía de vez na gandaia.
Carlos Gardel,
Buenos Aires cantava no teu canto
Buenos Aires chorava no teu pranto
e vibrava em tua voz,
Carlos Gardel
Este é um dos casos mais notórios do anedotário do pequeno notável, contado e recontado por várias gerações. De madrugada, os companheiros de farra entraram num galinheiro, para afanar uma penosa. Na escuridão, às apalpadelas, escolheram logo a mais robusta e deram no pé, antes que o dono acordasse com a barulheira. Ao chegar em casa, descobriram que tinham roubado um galo mas, além do mais, o galo de briga, de estimação, do Acrísio. Sem pestanejar, ainda bêbados, mataram o campeão e o cozinharam. O que torna o caso hilário é que ainda tiveram o desplante de convidar o dono do galo para saborear o ensopado. Ao saber de tudo, o desespero de Acrísio deu origem a um chorinho, composto por Tube, que ele de vez em quando cantava, somente em ocasiões especiais, e a pedidos insistentes. A letra do chorinho eu não lembro mais, deixo o resgate para alguém de memória melhor, talvez Bozinho, o cronista oficial da cidade.
o teu canto era a batuta de um maestro
que fazia pulsar os corações
na amargura das tuas melodias
De outra feita, aconteceu de Tube desaparecer. Todos se perguntando por onde ele andaria, acabou gerando as mais disparatadas histórias. Algum tempo depois, eis que surge o gaiato, de terno e gravata, cabelo penteado, gomalinado, Bíblia debaixo do braço, olhos mais flamejantes que a espada do Senhor, como se tocado pelo Espírito Santo, recitando versículos do livro sagrado, muito bem colocados e condizentes com os comentários impertinentes de Maneco Diabo e Johnny Saci, dois galhofeiros de marca maior. A vida de pastor evangélico durou pouco, os fiéis acabaram descobrindo que os sermões inflamados de Tube eram feitos sob o efeito do álcool, da pinga que ele guardava no armarinho do altar. Assim, Tube viu-se forçado a retornar à convivência com os pecadores, seus semelhantes.
Carlos Gardel,
se cantavas a tragédia das perdidas
compreendendo suas vidas
perdoavas seu papel
Depois de mudar de Antonina, nunca deixei de visitar a cidade. Em uma dessas idas, perto das eleições municipais, fui presenteado com um “santinho” de Tube, o camarada era candidato a vereador. Pena que tenha perdido, o povo antoninense não teve sensibilidade suficiente para eleger um igual. De outra vez deparei com um quadro de Tube, e eu sequer supunha que ele tivesse aptidão para as artes plásticas: sobre uma prancha retangular de madeira tosca, ele colara várias cabeças de bonecas, envelhecidas, escurecidas, enfileiradas e rebocadas de tinta. Orgulhoso, o amigo Heráclito o exibia como um troféu. E eu, apressadamente, num átimo, o batizei de “O Encolhedor de Cabeças”, título que remetia ao meu recente interesse. A obra era, no meu entender afoito, de vanguarda, num procedimento muito próximo ao de Farnese de Andrade. Mais tarde, o associei às cabeças de chimpanzé de Júlio Lerner. E, indo mais longe, enquanto Artur Bispo do Rosário bordava a capa para a ascensão aos céus, também místico, Tube se travestia, no carnaval, de Caboclo Samambaia. Será que Tube sabia de tudo isso? Certamente não. Assim como Bispo do Rosário, ele era tão somente um homem do povo que sentia necessidade de se expressar através da arte autêntica, bruta, sem teorias, arte pela arte, ponte com a divindade.
por isso, enquanto houver um tango triste
um otário, um cabaré, uma guitarra
tu viverás também,
Carlos Gardel
Ao me mudar de volta para a pequena cidade, tive a oportunidade de ver, no Mercado Municipal, uma exposição de telas primitivistas de Tube, com barcos, trens, árvores, casinhas, muito distantes de “O Encolhedor de Cabeças”, nas quais o artista estava inteiro, íntegro, consciente de que a ingenuidade dos seus quadros é o que atraía os compradores. E por que não fazer o jogo do mercado? Estarei delirando, vendo tomada em focinho de porco? O que sei é que Tube era sábio o suficiente para pintar o que lhe pediam, desde que rendesse um troco, é claro. Na ocasião, alguém me contou que ele, já idoso, estava morando numa ilha próxima, recluso, aparecendo raras vezes para divertir os amigos. Muitas vezes pensei em ir vê-lo, mas acabei me mudando sem ter feito a visita.
Em tempo, o tango que perpassa este texto é uma composição de Herivelto Martins e David Nasser, gravado para sempre em minha memória na voz de Jobel Soares de Freitas, o nome de batismo de Tube, um dos heróis da minha vida, bem mais duradouro que Brian Jones.
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