terça-feira, 6 de setembro de 2011

RUA DO ESTEIRO, 54


por Edson Negromonte

Rodrigo era conhecido por todos como El Cuervo, talvez pelo avantajado nariz aquilino, a pele escura e a silhueta longilínea, ou, quem sabe, pela quantidade de urubus que faziam do seu telhado morada, onde permaneciam horas a fio de asas abertas, após pesada e repentina chuvarada de verão, como insólitos guardiães. O velho Rodrigo dava-se muito bem com essas aves de mau agouro, alimentando-as com as poucas sobras da sua cozinha e com tripas de galinha, divertindo-se com a feroz disputa pela apetitosa iguaria. Ele era mesmo singular, invariavelmente de terno e chapelão pretos, embora não lembrasse em nada, naquela época, para os meus olhos adolescentes, uma figura soturna. Grande contador de histórias as mais fantásticas, às quais seus ouvintes prestavam atenção redobrada, à procura de uma nesga qualquer de inverdade. Mas El Cuervo era hábil em estribar as narrativas em datas longínquas e em paragens as mais exóticas, como é próprio a um marinheiro que singrara mares tão distantes e dera de cara com os monstros fabulosos descritos pelos primeiros navegadores. Para ser honesto, não posso afirmar de sã consciência que ele fosse meu bisavô consanguíneo; talvez um parente distante, aliás, muito distante, pois o seu sobrenome não fora aportuguesado como o nosso houvera sido, desde os tempos do coronel Francisquinho da Gameleira. Rodrigo assinava Nigromonti, a antiga grafia original dos antepassados espanhóis. Recordo-me nitidamente da fachada da sua casa branca, de paredes caiadas, faiscantes sob o sol forte do meio-dia, das duas janelas frontais, a madeira escura, o verniz descascado da porta, lembrando o casco de uma maltratada baleeira.
– Este é Rodrigo, o seu bisavô Rodrigo – disse meu pai, apresentando-o a mim, sem muitas explicações, e com certa inflexão na voz.
Aquele homem trajado de preto, indiferente ao sol, sentado à porta da casa que dava direto para o rés da rua numa cadeira de palha, já despertara anteriormente a minha atenção. Não era essa a primeira vez que eu o via. Apesar do sorriso franco, sem mostrar excessivamente os dentes, e do forte aperto da mão magérrima, fomos nos aproximando aos poucos, como é apropriado às amizades duradouras, que se instalam nos corações lentamente, tal e qual os buracos que vão surgindo nas calçadas, sob a ação contínua das goteiras, chuva após chuva. E como chove em nossa aldeia...
Quando nos demos conta, eu e o velho já éramos companheiros de longa data, de longo curso, quase confidentes. Sentia-me perto dele assim como o magriço Jim Hawkins devia sentir-se em companhia de Long John Silver. Para compensar a falta do papagaio falastrão, tínhamos a companhia de inúmeros urubus a montar guarda silenciosa no telhado. Nos meus devaneios, a sua casa de pé-direito muito alto, sem forro, era sob todos os aspectos a encarnação do albergue Almirante Bembow. Morava com ele uma jovem (não tinha mais de vinte anos) que atendia pelo nome de Flor, a qual vim a saber bem mais tarde ele tirara da zona de meretrício para servi-lo, tanto à cama quanto à mesa. Ela era muito calada e reservada, de olhar sempre baixo. De seios fartos, pele clara, ancas roliças, vestia-se quase sempre de branco, e uma amarelada tiara de osso prendia-lhe os cabelos intensamente negros. Não que fosse carrancuda, talvez algo taciturna, provavelmente a melancolia intrínseca à alma feminina; mas nunca entrevi em seus lábios a mais leve sombra de um sorriso. Nem mesmo quando meu bisavô, num gracejo, agradecia a xícara de cevada que ela, sem que pedíssemos, trazia durante os nossos animados bate-papos.
– Obrigado, minha flor. Agora, pode ir cuidar dos seus afazeres – dizia ele, dando uma piscadela para mim.
As pessoas da nossa família, tendo-o na qualidade de aparentado, não encaravam com bons olhos essa mulher tão jovem na casa do homem velho, vendo-a como uma aventureira, uma golpista. Às vezes, as tias velhas usavam palavras mais pesadas quando se referiam a ela. Devo aqui deixar claro que ela foi sempre muito dedicada a ele, meu bisavô Rodrigo, não sabendo de nada que a desabonasse, desde que os dois passaram a viver sob o mesmo teto. E, após a morte do velho, Flor desapareceu de nossas vistas, da cidade, sem deixar rastros, como se nunca houvesse existido. Nem mesmo a casa ela reclamou, restando hoje da construção somente o paredão frontal, em ruínas. Ele, por sua vez, era muito cortês com ela. Nunca percebi nenhuma palavra rude ou animosidade entre os dois, mesmo no dia em que Flor tropeçou no tapete da sala e encharcou de cevada as páginas de um manual sobre a pesca de baleias, aberto sobre a mesa. Nele (após eu contar-lhe do presente que meu pai trouxera de uma das suas viagens: um belo volume encadernado de “Moby Dick”, a obra máxima de Melville), o velho orientava-me entusiasmado sobre os vários tipos de arpão usados na caça dos gigantescos cetáceos, sem a mínima preocupação com a preservação da natureza, com a vida sobre a Terra, o que inclui a própria vida humana. Outros tempos, quando nos deliciávamos sem culpa com uma saborosa sopa de tartaruga, as quais batiam com frequência à nossa costa. Com o velho homem aprendi a carnear tartarugas, a cortar primeiro a cabeça, separar o casco do peito, o plastrão, aprendi também a cortar a carne em pequenos cubos para a sopa, até o preparo da alfavaca, o tempero ideal. Era um tempo em que os homens eram forjados na violência, na visão do sangue, a morte presente, tempo em que homens de fibra não choravam, ou se choravam era somente na solidão do quarto, longe dos olhos dos outros e, muitas vezes, até de si mesmo, negando as próprias lágrimas. Era um choro surdo, pra dentro. Com o velho aprendi diligente a imitá-lo nos erres bem escandidos e os esses sibilantes, exercitando-os na leitura do jornal semanal, principalmente na seção criminal, quando o movimento intenso do porto trazia a Antonina gente de outros lugares, até de outros estados, gente violenta e afeita à bebida, em busca de trabalho. Ele fazia gosto que o rapazinho que então eu era lhe lesse sobre a chegada e a partida dos navios, tanto os de carga quanto os de passageiros, incluindo os mistos. Dava-me a impressão de que conhecia todos os nomes das embarcações que iam e vinham, os nomes dos comandantes, até os dos passageiros. Ria-se muito do meu embaraço para pronunciar, sem titubear, palavras como laranja e lareira, mas o que realmente o deixava apreensivo era a minha dificuldade com a palavra justiça, da qual eu invariavelmente comia o esse. Até hoje não consigo dizê-la corretamente.
Acostumei-me a ir vê-lo praticamente todos os dias (ele tornara-se, então, o bisavô que eu sempre quis ter). E, tenho certeza, El Cuervo fazia muito gosto nessas visitas. Quando precisava se ausentar, tinha a gentileza de deixar um recado com Flor para que eu regressasse no dia seguinte, para almoçarmos juntos. Sentia-me desorientado com a sua ausência. Até hoje não sei aonde ele ia, visto que não mencionava sequer o motivo das poucas saídas. Percebi também que, desde que comecei a frequentar a casa, os seus poucos amigos foram se distanciando cada vez mais. Durante algum tempo, me senti culpado por isso, até que externei a minha preocupação, coisa à qual ele pôs ponto final dizendo-me que, se isso era mesmo verdade, não eram então amigos dignos, asseverando que preferia muito mais a minha presença naquela casa, e que eu a enchia de vida. E que aqueles chacais, palavras suas, só sabiam falar de doença e dos velhos bons tempos. Ele detestava o chavão “meu tempo”. Para El Cuervo, o tempo de um homem é enquanto ele está vivo, embora se referisse à vida de embarcado como os melhores dias. Contava-me, assim, sobre a sua passagem pelo estreito de Gibraltar, sobre o oceano Índico, o golfo de Bengala, o cabo das Agulhas, as tempestades na ilha de Java, sobre o cabo das Tormentas, o cruel gigante Adamastor, o Bojador, a Tortuga, Madagascar, Port Royal, na Jamaica, como se realmente tivesse vivido tudo isso. E, cá entre nós, sou capaz de jurar que realmente vivera, tal a riqueza de detalhes dos vívidos relatos. Como é comum aos velhos, com o tempo, passou a contar-me quase sempre as mesmíssimas histórias, mas com tantas e tais minúcias, numa profusão de pormenores, às quais acrescentava novos personagens periféricos, mas de vital importância para o enriquecimento da narrativa. Ora conhecera pessoalmente o chefe Kilaeua, da ilha Ni’ihau, no Havaí; de outra feita, visitara o túmulo de Robert Louis Stevenson, em Vailima, nas ilhas Samoa, e que à noite o vira passeando de terno branco e chapéu panamá, ladeado pelos nativos. Ele bem sabia que a simples menção do nome do escritor escocês fazia arregalar os meus olhos de menino e a querer saber muito mais sobre as suas, talvez fictícias (que importa?), aventuras. Tudo isso só fazia-me querer cada vez mais bem ao meu perspicaz amigo. Às vezes, imagino que a sua cultivada arte de narrador tenha contribuído em muito para que eu me dedicasse de corpo e alma à literatura, contando histórias como se eu e o leitor estivéssemos de pé, lado a lado, no convés de um veleiro, entre o mastro grande e o castelo de proa.
Certo dia, ele cuidadosamente pegou da pequena estante, ao lado da única poltrona da sala, uma Bíblia, com a lombada já gasta, esfarrapada e, creia-me, com um cheiro característico. Asseguro-lhe que, naquele momento exato, senti vir do livro sagrado o cheiro dos oceanos, de salitre, homens rudes, ventos os mais diversos, trazendo no bojo o murmurar das lendas marítimas, as escamas dos monstros marinhos, argonautas, odisseus e odisseias.
– Vamos, leia o que está escrito a lápis na folha de rosto – disse-me, estendendo o livro.
Intrigado pela ordem repentina, tomei imediatamente o livro das suas mãos, aberto no local indicado, para encontrar inscrito ali o nome Zulmiro, o que para mim, até então, nada significava. Ergui os olhos interrogativos para o ancião, o meu capitão diante de mim. Ele abriu um leve sorriso, de contentamento; a atitude teatral e estudada de pegar o livro e estendê-lo para mim, o seu improvisado grumete, surtira o efeito desejado.
– Para você que se identifica tanto com o mar, com a vida dos homens do mar, que é capaz de ficar horas a fio sentado no trapiche, admirando o voo das gaivotas e o magnífico mergulho em meio ao cardume de sardinhas, vou contar, então, a verdadeira história de Zulmiro, coisa de um tempo em que eu era também menino, assim como você. Aliás, direi o pouco que sei sobre essa personalidade tão controversa que aportou em nossa baía no ano da graça de 1877, vindo sabe-se lá de onde. A única certeza é a de ele que vinha de muito longe, talvez do Oriente, da Ásia, das Filipinas, quem sabe, da África, em algum navio negreiro, mas de certo somente é que ele não podia mais retornar ao mar, o seu amado lar, o cemitério marítimo onde toda a poesia repousa, e onde Zulmiro gostaria de ter podido descansar. Não que tivesse perdido as graças do mar, como sói acontecer a muitos marinheiros. Não, isso é que não.
Ao ouvir essas palavras, meus olhos brilharam mais ainda, levando-me imediatamente, sem saber bem o porquê, a Joseph Conrad e seu “Lorde Jim”, do qual eu vira tantas vezes o filme no Cine Ópera e, logo em seguida, lera com avidez o livro, na requintada tradução do poeta Mário Quintana.
– Esta Bíblia, em inglês, pertenceu a ele, Zulmiro, o último pirata que a história registrou. Portanto, que fique esclarecido desde já que nem Don Pedro Gilbert e muito menos Benito de Soto, mas, sim, Zulmiro foi o último salteador dos mares. Por não se submeter às ordens da rainha Vitória, de abandonar a pirataria para se tornar corsário, esse homem passou a ser perseguido pelos navios da marinha britânica, com a incumbência de enforcá-lo na primeira ilha que fosse avistada. Aconteceu que o capitão que o encontrou tinha sido seu colega na escola naval e, resolvendo poupar-lhe a vida, abandonou-o na costa do Brasil, com trinta libras de ouro e esta Bíblia, prometendo que se o encontrasse novamente cumpriria com imenso prazer o decreto real. Não sei dizer por que cargas-d’água ele veio bater, no dia 13 de agosto daquele ano, à nossa porta, tarde da noite, a silhueta encoberta por uma gigantesca nuvem negra que momentaneamente encobriu a lua cheia, grávida de mistérios. Pediu-nos abrigo, um quarto, só um pernoite, como se nossa casa fosse algum tipo de pensão. Ou, quem sabe, um tipo de estalagem, pois não havia hotéis em Antonina àquela época. Não sei dizer também por que meus pais se apiedaram daquele homem. Talvez movidos pelo espírito cristão, não puderam negar um quarto e uma refeição àquela criatura que parecia beirar os 80 anos, tal o desgaste que o constante açoite dos vagalhões de água salgada provocara em seu corpo. Acontece, para nossa apreensão, que os dias foram passando e ele foi ficando, instalado no quartinho lá dos fundos. Sim, o mesmo onde hoje guardo as minhas redes, as tralhas de pesca. Talvez, no nosso íntimo, pensássemos em, um dia, botar as mãos no suposto tesouro, embora fôssemos incapazes de admitir tamanha perfídia, tão logo ficamos sabendo através da capitania dos portos tratar-se Zulmiro de um pirata. E, você sabe o que dizem, ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão. O homem estava acabado, com certeza não duraria muito tempo mais. Assim imaginávamos ou assim queríamos, e simplesmente resolvemos dar tempo ao tempo, em vez de sujar as mãos com ato tão ímpio. Se você o visse não acreditaria: tinha os poucos dentes que lhe restavam todos podres, as gengivas enegrecidas pelo escorbuto, o olho direito descaído, e o esquerduma mistura demoníaca de azul e vermelho, coxo, puxava de uma perna, a pele ressequida do sol, com algumas úlceras na face desnutrida. O hálito era dos piores, parecia vir das entranhas do inferno, tão nojento que me dava náuseas, vontade de vomitar. Seu amado John Silver não lhe parece agora uma singela estampa Eucalol?
Assenti rapidamente com a cabeça, para que o velho retomasse o quanto antes a história de Zulmiro.
– Diz a lenda que ele, antes de bater os costados em nossa cidade, enterrara a sua fabulosa riqueza em Cananeia. Devo admitir, somente para você, meu amigo, que muitas vezes fiquei tentado a revirar os seus pertences pessoais em busca de um mapa, ou coisa que o valha, uma indicação qualquer da localização do tal tesouro, mas a honra ou talvez a covardia tenham me impedido de cometer ato tão vil. Vendo aquele homem alquebrado, apesar de inicialmente repugnante, jamais se poderia admitir que o desgraçado tivesse sido tão sanguinário e violento quanto ficamos sabendo depois, após a sua partida, quando as autoridades marítimas reviraram a nossa casa em busca mais do mapa do tesouro do que propriamente do pirata, o qual, apesar do estado lastimável, ainda inspirava horror aos homens da lei. Ou melhor, a quem quer que o visse. Ele era de origem inglesa, ou irlandesa, sei lá. De certo ou incerto é que seu nome, ou sobrenome, era na verdade Summers, ou Sommers, ou Shulmmers, de onde provavelmente adveio a corruptela Zulmiro. Conviveu ele conosco, partilhando do nosso teto e da nossa boa mesa, o tempo de três meses, sem que tenhamos nos indisposto com ele uma única vez. Nem ele conosco, e isso é o que importa, quando se trata de dar guarida a um pirata. Era, sem dúvida, isso é certo, de origem nobre: formara-se na escola naval de Sua Majestade. Após o jantar, era capaz de ficar horas a fio fumando o cachimbo, com o olhar distante, como se pudesse entrever o mar oceano através da parede branca da sala, sem dizer uma única palavra. Vim a saber, muitos anos depois, já adulto, que o cheiro característico do fumo que ele usava era beladona, uma erva de origem asiática, altamente venenosa. De outras vezes, o homem desatava a falar com meu pai sobre filosofia, religião e outros desvarios da humanidade, mostrando uma erudição digna dos melhores acadêmicos. Meu pai, homem humilde, de parcos conhecimentos, deixava-o falar à vontade, fazendo poucos apartes, algumas poucas perguntas, aprendendo muito mais do que qualquer outra coisa, que tal atitude é de bom alvitre numa conversação com piratas. Lembre-se sempre disso. Um dia, Zulmiro subiu com a sua pouca bagagem em direção a Curitiba e nunca mais entrou em contato conosco, deixando como recordação, ou por esquecimento, por talvez não lhe ser mais de precisão, esta Bíblia, a qual está agora aberta à sua frente. No quartinho lá dos fundos, ele costumava folheá-la todas as noites, à luz de vela. Veja como as páginas estão manuseadas, ensebadas, engorduradas, pelos dedos dele!
Relanceei os olhos pelas páginas da Bíblia, conforme meu bisavô a ia folheando, sem ousar tocá-la, como se estivesse diante de um sortilégio.
– Depois de muito tempo, chegou-nos a notícia de que Zulmiro morrera nas Mercês, num sítio, no tempo em que tudo aquilo lá ainda era mato. Dizem que enterrou o tesouro no Largo de São Francisco, onde existem umas antigas catacumbas. Ultimamente, surgiu entre a gente do mar a notícia de que os tesouros do pirata encontram-se escondidos em Trindade, a ilha mais distante do nosso continente, a 300 léguas da costa do Espírito Santo, entre o Brasil e a África. O que se sabe de certo é que esse tesouro tem levado à desgraça muitos homens, inclusive um certo farmacêutico paulista, bem conhecido dos seus pais. Você sabe muito bem de quem eu estou falando. Então, esse boticário alegava ter encontrado, em meio às páginas de um livro imprestável, num sebo atrás da Catedral da Sé, o documento com a localização exata dos saques de Zulmiro. Conta-se que esse farmacêutico foi acorrentado, sabe-se lá por quem, ou por que forças extraordinárias, ao rochedo solitário da ilha da Trindade, e que as suas vísceras, expostas, são comidas diariamente por cangulos voadores; refazem-se elas às horas mortas da noite para serem impiedosamente devoradas no dia seguinte por esses estranhos peixes.

terça-feira, 3 de maio de 2011

ÁTOMO DE CORAÇÃO MATERNO


por Edson Negromonte

Todas as vezes que deparo com Flash Gordon, seja nas maravilhosas pinceladas de Alex Raymond, seja nas nostálgicas imagens em movimento dos seriados da década de 30 e 40, encarnado pelo campeão olímpico de natação Buster Crabbe, lembro-me dela, a mulher que me pôs no mundo, a qual, muitos anos mais tarde, serviu-me de inspiração para a obra “Ela é Doida por Flash Gordon”, onde reproduzi seu rosto angelical, aos 20 anos (grávida, uma fita de veludo verde amarrando os cabelos loiros, uma blusa de algodão branco, ombros juvenis à mostra), sobre um intenso fundo azul. Ela serviu-me ainda de modelo para o retábulo “Seja Você também um Cadete da Aeronáutica”. Lembro-me perfeitamente da primeira vez que assisti ao seriado do inesquecível personagem, ao qual os estudiosos afoitos atribuem erroneamente como o primeiro herói espacial dos quadrinhos. Esse privilégio pertence, na verdade, a Buck Rogers, uma criação de Dick Calkins.
O meu primeiro contato com Flash Gordon e a descoberta da televisão aconteceram ao mesmo tempo. Até aquele momento, esta grande novidade, pelo menos para mim, pertencia somente ao mundo da fantasia, da ficção, ou melhor, ao universo dos personagens de Walt Disney, particularmente às tiras de Chiquinho e Francisquinho, os sobrinhos do camundongo Mickey, onde o eletrodoméstico era objeto onipresente na sala de visitas. Deles, é claro.
Ao nos mudarmos da pacata São Francisco do Sul, em Santa Catarina, para a já agitada Niterói, na década de 60, uma das aquisições de meu pai foi o nosso primeiro televisor. À prestação, é claro, pois pertencíamos à classe média; ele era funcionário do Banco do Brasil. Evidente que essa maravilha do mundo moderno também ocupou o lugar mais nobre do apartamento onde morávamos, no bairro de Icaraí, a sala de visitas. As imagens em preto e branco sucediam-se vertiginosamente; tínhamos à disposição cinco canais, com a programação mais variada possível: desenho animado, filmes, séries, musicais, humorísticos e jornalismo, principalmente o Repórter Esso. Extasiados, assistíamos a tudo, indistintamente, inclusive aos comerciais, alguns em película, mas a grande maioria ao vivo. A minha sorte é que eu ia à escola pela manhã e a programação tinha início somente a partir do meio-dia, podendo assim deleitar-me com a variedade das ofertas televisivas, desde a hora em que voltava para casa até a hora de dormir, o que, naquele tempo, era muito cedo: as crianças iam para a cama por volta das sete horas da noite. Nos finais de semana, podíamos ficar até as oito. Quando meus pais iam dormir, eu, pé ante pé, escapulia da cama para assistir a antigas séries policiais americanas, como “Suspense”, “Nos Passos da Lei”, “Os Intocáveis”, “Na Corda Bamba”, “Peter Gunn”, “Cidade Nua”, entre tantas outras consideradas de temática adulta. Após o encerramento da TV Excelsior, à meia-noite, de posse de meu lápis preto, enchia folhas e mais folhas de papel em branco, desenhando as imagens do que vira: gângsteres, tiroteios, homens de sobretudo, mulheres fatais, graças a saudável insônia. Minha mãe conta que, aos três anos de idade, eu já tinha calo no dedo médio da mão direita, que até hoje me acompanha, de tanto rabiscar madrugadas adentro. Lembro-me da imagem dela, entrevista pela porta da sala de jantar, condoída com a minha falta de sono, balançando a cabeça e voltando inconformada ao quarto. Um dia, quando eu tinha 16 anos e já morávamos em Antonina, ela aprendeu uma simpatia, feita com uma folha de alface costurada entre a fronha e o travesseiro, que levou embora para sempre a minha velha companheira noturna, que me inspirava para, além de desenhar, escrever, ler, ouvir as vozes sutis dos fantasmas... Parafraseando o poeta Casimiro de Abreu: Ai, que saudade da insônia da minha vida.
Voltemos aos tempos niteroienses da descoberta da televisão. Havia, também, a TV Continental, a minha favorita, de parcos recursos, que exibia velhos faroestes do cinema, remontados para a televisão, como “Hopalong Cassidy” e “Durango Kid”, que não interessavam mais aos outros canais. Assim, meus olhos puderam despertar tardiamente para a novidade dos filmes mudos, para as esquecidas joias da sétima arte, guardadas no baú do tempo, como “O Fantasma da Ópera” e “O Corcunda de Notre-Dame”, com jogos apaixonantes de rembrandtesco claro-escuro, caras e bocas, olhos arregalados, a atuação característica de uma época em que o cinema ainda estava atrelado ao teatro, de onde viera a grande maioria dos atores. O grande atrativo nesse redemoinho que avassalava o meu ávido coração infantil eram os velhos seriados do cinema, principalmente “Os Perigos de Nyoka”, “Águia Branca” e “A Ilha Misteriosa”, mas foi “Flash Gordon no Planeta Mongo” que tocou profundamente a minha alma.
Como sempre, depois da escola, encontrava-me com o prato de comida sobre as pernas, em frente à TV, quando minha mãe veio da cozinha, enxugando as mãos pequenas no pano branco de prato, sentou-se ao meu lado e hipnotizada pela cena que, naquele momento, emanava do tubo de imagem, segredou:
– Esse é o Flásh Górdon... o imperador Ming, o terrível... a rainha Azura... o príncipe Bárin... a princesa Aura... O doutor Zarcóf... Larri Búster Crábe... eu era apaixonada por ele... não perdia um capítulo... todos os sábados... no cinema... depois, eu passava a semana toda imaginando como ele ia se safar do perigo... eu sonhava com ele.

terça-feira, 29 de março de 2011

O RETRATO DE JACK LONDON

por Edson Negromonte

Da ponta do trapiche, em frente ao Mercado Municipal, avista-se ao longe, em dia de sol claro e intenso, a cidade de Paranaguá, com navios cargueiros ao largo, à espera de um rebocador para conduzi-los através dos canais dragados até o cais. O grande drama de Antonina é essa lama que vai se acumulando na baía, conforme noticiado por Ermelino de Leão, em sua obra imortal, datada de 1918. Portanto, de muito tempo atrás vem a disputa entre as duas cidades portuárias pela riqueza advinda das cargas marítimas. O que é certo é que o desenvolvimento de Paranaguá aconteceu devido à incompetência dos homens públicos de Antonina, os quais, numa jogada política, puseram um parnanguara para administrar o porto, a sua única fonte de subsistência, ou seja, a raposa tomando conta das uvas. É a velha fábula de Esopo transcrita para a atualidade.
Quando aqui cheguei, no final da década de 1960, todos os antoninenses, independente da idade, lamentavam a perda da supremacia marítima, maldizendo os poucos navios, de procedência argentina e dinamarquesa, de baixo calado, que ainda se aventuravam, orientados por um velho rebocador, a enfrentar os canais sem dragagem, unicamente para carregar a madeira das nossas ainda fartas florestas. Várias companhias ainda resistiam heroica e impunemente à iminente ruína, como Sermara, Valente e, principalmente, a Matarazzo, cuja vila chamava a atenção pelos belos sobrados destinados à moradia dos trabalhadores. Foi neste porto que fiz os primeiros contrabandos de calça Lee e uísque escocês, inspirado pela leitura da biografia "A Vida Errante de Jack London", mormente pela passagem de pirataria de ostras. Assim, pensava eu, na inocência da adolescência, estaria cursando, às minhas próprias custas, a melhor escola preparatória para me tornar, na idade adulta, um verdadeiro escritor, imaginando que, em seguida, passaria também a viajar clandestinamente em trens de carga, enfrentando os cruéis guardas ferroviários, participaria de alguma corrida febril em busca de ouro, ouvindo o chamado selvagem, encontrando a filha das neves, sem deixar de me envolver em ferrenhas e incompreensíveis lutas políticas e, num futuro não muito distante, portador de uma invejável bagagem vivencial, estaria pronto a encetar a escritura das minhas rocambolescas aventuras. Assim, quase embarquei num navio dinamarquês, onde fiz amizade com os filhos do capitão, os quais me convidaram a seguir viagem com eles, como taifeiro. Meu pai não pestanejou em me emancipar para que eu pudesse embarcar, pois ele tinha servido a Marinha de Guerra durante dois anos e assegurava ter sido uma das épocas mais felizes de sua vida, conhecendo o Brasil de ponta a ponta, menos o Maranhão, onde não pudera descer por estar preso por insubordinação. Dois dias antes de embarcar, uma dor de estômago terrível tomou conta de mim e minha mãe suplicou que eu não embarcasse, que não a deixasse, ela ficaria muito preocupada em terra, assegurando que a minha saúde nunca houvera sido das melhores. O que sei e lamento até hoje é que o navio levantou âncora sem mim, que fiquei acamado durante um bom tempo, descortinando novas linhas do horizonte através das páginas encardidas de um grosso volume, em espanhol, sobre a cruel caça à baleia, emprestado pelo amigo Sven Andersen, um velho navegador. Nunca mais encontrei os filhos do Capitão Grant, mas recuperado dei continuidade ao tráfico de uísque, fornecendo produto da melhor qualidade para a granfinagem da capital. Como nunca fui bom comerciante, não fiquei rico, mas o lucro deu para comprar muitos livros mais e vários maços do meu cigarro favorito, Kent mentolado, além de poder emprestar dinheiro para os amigos e familiares sem a preocupação de recebê-lo de volta. Foi numa dessas investidas em busca de contrabando, na calada da noite, que travei conhecimento com o imediato sueco Nils, filho de mãe portuguesa, razão pela qual pudemos nos entender perfeitamente. Homem corpulento, de fala pausada e gestos curtos, que, com um sorriso largo, após horas de conversa, presenteou-me com um cachimbo feito por ele mesmo. Artesanalmente, não era grande coisa, pode-se dizer tosco até. Nossa conversa havia nos levado, aos poucos, entre tantos outros assuntos, à literatura, quando Nils, inesperadamente, remexeu no casaco, tirando de um dos bolsos uma surrada carteira de couro, cuidadosamente abriu-a e mostrou-me uma amassada fotografia, esmaecida e, falando mais baixo que o costumeiro, segredou:
– Guardo-a cá comigo, bem junto ao peito.
Olhei-a demoradamente, tentando identificar algo, um rosto conhecido, talvez o próprio imediato, ainda criança, junto à mãe, mas em vão (eram dois adultos, lado a lado, abraçados), quando percebi um misto de contrariedade e decepção no semblante do amigo.
– Quem são? – perguntei, então.
Sem responder à minha pergunta, Nils continuou falando mansamente, mas com vivacidade.
– Encontrei-o já idoso, numa das minhas viagens aos Estados Unidos da América. Este cachimbo que acabei de dá-lo a ti é uma réplica daquele que, na ocasião, ele fumava e que lhe havia sido presenteado por um esquimó.
A quem ele estava se referindo? Ao perceber a interrogação estampada em minha testa, fez um gesto elíptico e largo, tal e qual um vento alísio engordando a bujarrona.
– Jack London, Jack London! Repare bem na sua mão direita; o cachimbo está ali.
Para não faltar com a verdade, devo dizer que, antes de tudo, sou um crente, disposto a acreditar em qualquer patacoada dos homens do mar, matéria-prima das minhas escrituras. Mas, apesar dos esforços, não consegui ver nenhuma fisionomia conhecida, nem de Jack London ou de Nils, nem sequer um cachimbo na mão de alguém. Hoje, em idade avançada, essa passagem da minha adolescência remete-me lucidamente ao quadro de Magritte e, consequentemente, ao livro de Foucault, sobre a obra magritteana, "Isso Não é um Cachimbo".

gatos

por Edson Negromonte

gatos
são seres
de porcelana
às vezes
dão saltos
em direção
à lua,
a casa natal
mas, na maioria
das vezes,
deitam-se
ao sol,
esquecidos
de tebas
gatos
são
resquícios
de deus

quinta-feira, 17 de março de 2011

SUPOSTA CRÔNICA SOBRE OS AMIGOS SIAMESES

por Edson Negromonte

Os dois já se conheciam, mas não haviam ainda estreitado os laços de amizade, apesar de Gris ter sido frequentador assíduo da livraria de usados na qual Xul trabalhava. A maioria das vezes, Gris surgia no meio do expediente, vestindo o uniforme amarelo dos carteiros, carregando a pesada sacola de correspondência sob a qual parecia que o corpo franzino ia, de um momento para outro, vergar, desabar, como o personagem de um desenho animado. A identificação entre eles ocorreu justamente nesta livraria de usados, quando Gris entrou em busca de um livro de contos de Edgar Allan Poe. Adoradores das histórias aterrorizantes de Poe, a amizade iria se intensificar somente alguns anos depois, após Xul voltar de Antonina, onde fora recarregar as energias na casa paterna, devido ao fracasso do primeiro casamento.
O reencontro aconteceu por acaso, quando os dois atravessavam a Praça da Bandeira, nos fundos da antiga rodoviária. Xul, então, aproveitou para convidar o amigo, casado recentemente, para uma exposição que faria por aqueles dias no mezanino da Livraria Don Peiote. Seria, para Xul, a retomada da pintura, com a participação da banda de rock Charlie Toast, mas principalmente a presença de José Mojica Marins, um dos poucos gênios do cinema nacional, mais conhecido pelo personagem Zé do Caixão. Mojica aproveitaria para autografar a biografia “Maldito”, recentemente lançada. Uns dias antes do vernissage, Gris surgiria na casa de Xul com um presente de inestimável valor: um pincel de pelo de marta, da marca Rembrandt. Entre xícaras de café preto, durante a tarde, os dois foram descobrindo pontos em comum, além dos interesses artísticos, culturais; os nomes das mães eram muito parecidos: Maria Dolores e Maria das Dores, a descendência nordestina: o pai de um, de Pernambuco, do outro, do Ceará, números telefônicos, sobrenomes muito próximos etc. A animada conversa avançou pela noite, quando Gris lembrou-se, alarmado, que a mulher já devia ter chegado em casa e podia estar preocupada com a sua ausência. Nessa época, Xul ainda lecionava na rede estadual e vivia no subsolo de um sobrado, abaixo do nível do chão, com os quatro filhos. Despediram-se afetuosamente, combinando o próximo encontro para breve, o dia seguinte.
O encontro ocorreria somente alguns dias depois, num bazar cuja renda era destinada às prostitutas da cidade.
– O que você encontrou aí? – perguntou Gris, olhando para a mão do amigo.
– “Leão de Chácara”, do João Antonio, autografado – respondeu-lhe, orgulhoso do achado, sem deixar de notar a beleza da tímida jovem, de sorriso franco, que acompanhava Gris.
– Essa é Dália, minha... namorada.
– Você quis dizer “sua mulher” – disse Xul, de inopino.
A garota sorriu ruborizada, Gris também. Talvez achassem a palavra “namorada” mais adequada aos dias atuais, sem o peso da tradicional, pesada e possessiva “esposa” ou, pior, “mulher”. Não era o caso de Xul, de uma geração anterior. Não havia como não simpatizar com o casal, o retrato vivo de pessoas felizes, prazenteiras, descobrindo a beleza insuspeitada de um simples pano bordado em ponto cruz ou de um encardido bichinho de pelúcia ou uma velha sombrinha, decorada com corações.
Voltaram a se encontrar na barafunda da exposição na Livraria Don Peiote, local ao qual parecia estar presente toda a população de malucos da cidade. Para tal sucesso, concorreu a presença cativante de Mojica, em primeiro lugar, depois a zoeira da banda de rock e, por último, os quadros de Xul, os quais eram elogiados mais como uma obrigação do que realmente apreciados. O título da exposição, “Xazã! Apropriações Indébitas”, é elucidativo do que o artista entendia sobre arte: de que tudo já fora feito, o mundo entendido como um grande banco de dados, à disposição, de que o artista que ainda se quer original está fadado ao desapontamento, ao fracasso consigo mesmo. Então, poderia misturar tudo, todas as influências, num grande caldeirão e dar às pessoas a alegria enganosa do mundo moderno, embaralhando os procedimentos dos quadrinhos, mais Warhol e Miró, Rauschemberg e Joan Brossa, rock, valsa, sertanejo, blues, propaganda, capas de disco, rótulos de embalagens, pop e vanguarda, afro e retrô, Da Vinci e Duke Lee, bossa nova, Baravelli e Jayme Cortez, Benício e Nico Rosso, Chang e Eng, cartazes de circo, de cinema, pitadas de literatura boa e ruim, um grande sarro de tudo, de todos, de si mesmo. Por que continuar pintando, à saúde de quê? De quem? Samplear era a palavra-chave da exposição, procedimento caríssimo à vanguarda da música de consumo dos anos 90. Portanto, nos delírios de grandeza, Xul via-se como o Grande Sampleador, capaz de agitar o mercado de arte, ao botar todas as influências em um caótico liquidificador anarquizante.
Na semana seguinte, Xul foi à casa de Gris, que o convidara para ver os seus quadros. O que viu deixou-o entusiasmado, o amigo tinha o mesmo procedimento artístico, embora não criasse teorias estapafúrdias sobre isso e aquilo, mas também Gris sampleava o mundo à sua volta, o mundo que o cercava, à sua maneira, mas sem os sonhos de grandeza; a arte, para Gris, era vital, simples, questão de vida ou morte. Aliás, Gris vivia em estado de arte, tudo era para ele passível de se transformar em objeto artístico, o seu dia-a-dia era um fazer artístico contínuo, a delicadeza do mínimo gesto, o batimento cardíaco, a própria respiração, como se pedisse licença a seres alados invisíveis, às sílfides. Decidiram trabalhar juntos.
Um dia, durante uma das muitas conversas, os dois redigiram um manifesto onde expunham o que entendiam como a arte dos novos tempos. O nome do grupo ficou sendo Projeto Amigos Siameses, já que os dois tinham se tornado, em pouco tempo, poucas semanas, um mês, dois talvez, tão próximos um do outro; não se passava um único dia sem que se vissem, quando estavam próximos as ideias vinham à tona, aos borbotões, um copiava o outro, sampleavam-se enfim. Embora já tivessem exposto em Paranapiacaba, a brumosa vila dos ingleses no alto da serra, onde esperaram em vão, na estação ferroviária, o surgimento do fantasma de Jack, o estripador, o ponto alto das suas aspirações estava prestes a se concretizar: a exposição na Funarte. Depois disso, diziam, fariam uma coletiva na Transilvânia, no castelo do Drácula, outra na Antártida, na Terra do Fogo, os locais mais improváveis, outra na Lapônia, com curadoria do Papai Noel etc.
Para a exposição “Para o Alto e Avante!”, o conhecido brado do Superman, na Funarte, os Siameses conseguiram duas caixas do absinto Lautrec, nada mais apropriado já que a deusa verde era a bebida favorita do grande artista francês que primeiro compreendeu que não há dissociação entre arte e propaganda. Os dois ficaram radiantes ao descobrir que o espaço a eles destinado, além de ser o maior do núcleo, levava o nome do antropólogo Darcy Ribeiro, um dos seus ídolos, embora tenham enrabichado os olhos para uma sala menor, a Jorge Mautner. Ao descarregarem as obras para a coletiva, mais de 60 telas e objetos, os montadores, de aparente má vontade, asseguraram que seria impossível acomodar toda aquela tralha naquele espaço, por maior que fosse. Desconsolados, Xul e Gris exultaram quando Giorgy, um sujeito muito prestativo, assegurou-lhes que ele mesmo se encarregaria da montagem. Dito e feito, uma hora antes da abertura, todos os quadros e objetos estavam magicamente dispostos no salão que agora já não parecia tão grande. Então, os dois amigos, suados e cansados de correr para lá e para cá, ajudando o bom Giorgy, puderam sair em busca de gelo no posto de gasolina mais próximo, lavar o rosto, as mãos e o sovaco na pia do banheiro para poderem cumprimentar os convidados que já começavam a chegar.
A novidade do absinto nacional, produzido pela Cinar, foi a sensação da exposição, atraindo o público da sala ao lado, de quadros acadêmicos e vinho branco, inclusive o próprio diretor da Funarte, o poeta beat Dagoberto Pirelli, que, em determinado momento, já alto, conclamava os passantes a entrar, assegurando que ali, naquela sala, sim, estava sendo exposta a “verdadeira arte”. A pouca familiaridade com a deusa verde levou as pessoas a darem vexames homéricos; enquanto um casal de namorados, abraçado, vomitava no jardim, uma elegante senhora, próxima dos 70 anos, muito bem arrumada, colar de pérolas, de cabelos brancos como a neve, trançava as pernas pela sala, dizendo a todos que estava gostando de tudo, mas principalmente da bebida. Em dado momento, ela perguntou a alguém que passava quem eram os artistas. Então, a respeitável senhora de colar de pérolas e cabelos brancos aproximou-se de Xul, cumprimentou-o e pediu, de olhar beatífico, mais uma dose de absinto.
O ponto máximo da exposição foi a chegada de Lucho Sagaz, o enfant terrible das artes, como se Roberto Carlos tivesse chegado, na festa de arromba, em seu novo carrão, arrancando do público ohs de espanto. No folder da exposição, Lucho apresentava os Siameses nos seguintes termos: “ATENÇÃO TODAS AS VIATURAS! Denúncias anônimas avistaram dois elementos na Alameda Nothman, 1058. Tratam-se de Xul Monte e Gris Montez, perigosa dupla conhecida por suas artes modernas, apropriação e processamento plástico de imagens, humor patafísico, jogos pictoverbais, ilusionismo, viagens sem passaporte, composição transgressiva e muitas outras condenações que afrontam a moral e os bons costumes. Muito cuidado ao se aproximarem deles, pois andam sempre armados de boas ideias e seus golpes poderão mudar sua maneira de ver o mundo. Lucho Sagaz, delegado de plantão”. No livro de presença, Lucho deixou gravada a saudação que para sempre definiria os Amigos Siameses: VIVA A BARBÁRIE!
Depois desta coletiva, Gris e Xul ainda fizeram outras exposições, com os sugestivos títulos “Cucamonga Seja Aqui”, “Seria Comix Se não Fosse Sírius” e “Zona Fantasma”, esta em parceria com o quadrinista Zodiak, mas, definitivamente, os dois amigos não estavam dispostos a fazer o jogo do mercado, muito embora tenham pretendido. Só eles sabem quanto tentaram conviver com a alta sociedade, a burguesia que compra obra de arte como investimento. Os dois sentiam satisfação mesmo, além de pintar, em ver as galerias cheias de amigos, se divertindo, bêbados, falando besteiras, os comentários no dia seguinte. O que lhes dava satisfação era vasculhar os bazares espalhados pela cidade, assaltar caçambas em busca de madeiras velhas, armarinhos de banheiro, anões de jardim, certos de que tudo é passível de ser transformado em arte. Numa das últimas exposições, convidados pelo Núcleo Olho Latino, os Siameses tiveram o desplante de utilizar a caixa plástica de um televisor, virada de costas e pintada de preto,“O Filho Bastardo de Dart Vader” seria a última obra conjunta dos dois inseparáveis. Mas o ponto alto da coletiva foi o guarda-roupa que Gris fez transportar da área de serviço da sua casa para a galeria, no qual ele guardava os produtos domésticos de limpeza, sem sequer tirar as teias, nem as pequeninas aranhas de poeira que davam mais vida à obra, que tinha o significativo e duchampiano título “O Coração Verde dos Pássaros”.
Abaixo, encerrando a crônica, segue transcrito o manifesto (retificado), para melhor compreensão, principalmente das gerações futuras, da seriedade do Projeto Amigos Siameses:
“Assim como Humpty Dumpty ou Juca e Chico ou os Sobrinhos do Capitão, os Amigos Siameses são dois cronópios perdidos no Trópico de Capricórnio e caminham pela estrada de tijolos amarelos que nem Dorothy Lamour ousou caminhar, ao som da sanfoninha de oito baixos do Tio Bilia. Eles estão enfrentando (de corpo fechado) o Dragão Vermelho da Maldade, a Bruxa do Mar Morto, encarando de frente o Gargamel e qualquer Houdini sem freio na Ladeira da Preguiça macunaímica, sem pedir licença ao Diabo Loiro e muito menos ao Capitão Virgolino. Os Amigos Siameses não vieram esclarecer nada, eles são nadadores contra as correntes de vento. Muitos pelos contrários, vieram comer a vovó, Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Mau, mijar no urinol de porcelana do velho Duchamp, além de roubar a barra de chocolate premiada Wonka escondida no pote de biscoitos finos Oswald. Nosso objetivo principal: não enxergar um palmo além da própria nuca, fazer mau uso da terceira visão interiorana, descobrir a cor da calcinha da Mary Poppins, pintar o submarino amarelo de verde e amarelo, servir brioches aos retirantes de Portinari, cheirar o cangote da Betty Boop, atrasar o relógio do Coelho Branco, festejar com o Chapeleiro Maluco o dia do nosso desaniversário, comer sucrilhos com o Dr. Kellog na varanda da casinha da sapé, chutar a bunda gorda da lua e dar uma pitada no cachimbo do Saci Pererê. A Terceira Guerra Mundial não veio, nem o caminhão do gás e estamos exilados numa Zurique de plástico reciclável, bebendo absinto com paçoca no Cabaré Baudelaire, ouvindo no rádio de pilha Eveready a canção Pisa na Fulô, na voz de Ivon Curi, o menestrel do duplo sentido da vida. Quem vai dormir na torre de vigia? João Gilberto Gil ou Bob Dylan Thomas? E, como diria o filósofo chinês Tsé Tsé Tunga, prenhe de razão: macaco velho não usa fio dental”.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

ENROLANDO O ROCK

por Edson Negromoonte

– Vocês pensam que o rock começou agora? Pensam que o mundo começou quando vocês nasceram? Esse é o mal da humanidade! Vocês precisam se situar historicamente!
Reunidos na sala da casa, os meninos se entreolharam, não entendendo o que estava acontecendo com seu Guiga, sempre tão cordato, o pai que todos gostariam de ter, que gostava de Pink Floyd e Deep Purple. Mas o que o irritara tanto para que eles estivessem levando aquela bronca? Será que fora o disco novo dos Mutantes que estavam ouvindo a todo volume?
Foram então convocados por ele para subir ao sótão, o local mais misterioso de um lar, onde as tralhas vão se acumulando e com o decorrer dos anos adquirem uma insuspeitada aura que na vida mundana nunca tiveram. Os cinco o seguiram, entre risinhos de mofa. Quando chegaram ao quartinho no alto da casa, cheio de quinquilharias, o irritado senhor já estava à espera, brandindo um velho disco de carvão, como se empunhasse um tacape, parecendo um burlesco troglodita.
– Então, vocês agora estão interessados em música brasileira, isso que chamam de rock tupiniquim?! Louvável, muito louvável! Mas, por acaso, já se perguntaram de onde veio o tal do rock nacional, se é que isso existe? – disse seu Guiga, desafiador, sacudindo ainda mais o quebradiço 78 rpm.
Coniventes, os meninos olharam ao mesmo tempo para um ponto qualquer no espaço, disfarçando o riso, lembrando-se do outro apelido de seu Guiga: Reizinho – o irritadiço personagem dos quadrinhos: baixinho, barrigudo, de bigode e cavanhaque. No cais do porto, onde seu Guiga trabalhava, só os amigos mais íntimos tinham peito de chamá-lo assim, Reizinho. Por causa do chapelão de caubói que usara durante algum tempo, os mais antigos ainda o conheciam como Buck Jones. Ser chamado pelo nome do antigo caubói das matinês não o incomodava tanto, mas de Reizinho era pedir briga na certa.
Aproximaram-se de seu Guiga, o qual já estava com um meio sorriso, como era de costume quando a ira inicial começava a se dissipar.
– Olhem isso aqui! Vamos, olhem! Esta é a primeira gravação de um rock no Brasil, quando ainda não se tinha essa intimidade com o ritmo. Era chamado respeitosamente de rock'n'roll, tinha nome e sobrenome, queria dizer, numa tradução bem livre, algo como "rebolar no duro".
– Rebolar no duro?! Tás doido, meu pai? O que que é isso? – perguntou Nico, malicioso.
– Ora, sexo! Apenas sexo! Sacanagem! – respondeu seu Guiga, aceitando a provocação.
Risada geral.
– Vejam bem, está aqui no selo: "Ronda das Horas", com Nora Ney – disse ele, enigmático, olhando os garotos, de um por um.
– Nora Ney, aquela de "De Cigarro em Cigarro"?
– Sim, ela mesma! – respondeu.
Estudadamente, seu Guiga foi até uma estante perto da porta e puxou do alto uma caixa vermelha, tirando a poeira com a manga do blusão de lã. Deu uma gargalhada gostosa, como só ele sabia dar, antevendo a cara de espanto dos fedelhos. Abriu o estojo, onde tranquilamente dormia durante anos e anos um toca-discos portátil, de piquenique. Ligou a engenhoca na tomada, provocando um ruído estranho, parecido com uma caixa de abelhas em fúria, trocou para a agulha apropriada e, triunfante, pôs o disco no prato.
O que se seguiu foi uma inusitada chiadeira, sob a qual percebia-se uma melodia conhecida. Ora, era "Rock Around the Clock", de Bill Haley e seus Cometas! Mas cantada por uma voz feminina.
– Neste exato momento, vocês estão tendo o privilégio de ouvir a primeira gravação de um autêntico rock'n'roll no Brasil. Em inglês, é claro! Este é o primeiro rock gravado no Brasil. E por Nora Ney, uma cantora de sambas dor de cotovelo, aquelas chorumelas que vocês tanto detestam. Sabem a história de se estar no lugar certo na hora certa? Foi justamente o que aconteceu: Nora Ney gostava muito de jazz, frequentava as reuniões do fã-clube Sinatra-Farney, onde vários jovens, que adoravam o "velho olhos azuis", reuniam-se para ouvir não só as novidades do jazz, mas de qualquer outro gênero musical, e cantavam e tocavam, imitando os cantores norte-americanos.
– Dick Farney, aquele de "Marina, Marina morena, você se pintou”? – perguntou Gê.
– Ele mesmo! – respondeu seu Guiga, satisfeito. Afinal, seus pupilos não eram tão desinformados, como ele supunha.
– Ô, velharia! – cortou Maquiné.
– Psst, você não sabe o que está dizendo! – retrucou prontamente Rique, o mais novo da turma e o de maior conhecimento musical; tinha um pai seresteiro, que, na mocidade, chegou a se apresentar em programas de calouro da extinta Rádio Antoninense.
– Vamos lá, voltando ao rock!... acontece que o filme "Sementes da Violência" tinha "Rock Around the Clock" na trilha sonora. O filme estreou no Brasil em 1955, no mesmo ano que...
– Ah, não! Eu ainda nem tinha nascido! – interrompeu Nico.
– O que isso interessa pra gente? Estamos em 76! – completou Maquiné.
– É justamente isso que eu quero mostrar para vocês! Que ninguém nos ouça, porque hoje em dia até as paredes têm ouvidos, mas se tivéssemos conhecimento histórico o golpe militar não teria sido vitorioso.
Seu Guiga falou com tal convicção que a gurizada, embora não entendesse direito o que vinha a ser golpe militar ou, como já tinha ouvido outras vezes, ditadura dos generais, achou melhor se calar e deixá-lo continuar, porque a coisa parecia ser realmente séria.
– É melhor voltarmos ao rock. O filme deixou os jovens alucinados! Antes pacatos consumidores da música comportada dos nossos pais, nós
queríamos a eletrizante novidade estrangeira. Queríamos fazer parte do mundo! No filme, os alunos desafiam a autoridade do mestre... Naquele tempo, isso era o máximo que se podia almejar. Notem que a escola já era uma coisa muito chata, aliás, sempre foi maçante, com seu autoritarismo e a eterna defasagem em relação ao dinamismo da vida.
Lá fora, começava uma garoa fininha, que foi aos poucos transformando-se em chuva; os meninos foram se acomodando, um no chão, outro na velha cadeira de palha, quase sem assento, o restante no sofá esburacado, indiferentes à poeira, mas evitando as pequenas goteiras. A apreensão de seu Guiga diminuiu quando percebeu o pé-d’água providencial. Pode então, senhor da situação, falar pausadamente.
– Como sempre, a indústria do disco não poderia deixar passar mais uma chance de ganhar dinheiro, com aquilo que eles julgavam um modismo passageiro, como todos os outros anteriores, foxtrote, rumba, tango, e por aí vai. Os produtores espertalhões chamaram, então, a Nora Ney, a qual não se podia dizer uma jovenzinha, pois já estava com mais de 30 anos, mas era a única no elenco da gravadora a enrolar um pouco a língua inglesa. E isso fica bem nítido quando se ouve, com atenção, a gravação.
Botou para tocar, de novo, o velho bolachão, com o qual comicamente ameaçara os meninos.
– Ouvidos atentos, agora!
Sem esperar a gravação terminar, baixou o volume e, apertando os olhos, perguntou:
– Perceberam?
Balançaram as cabeças, sem atinar com a intenção.
– Em vez de cantar "one, two, three o'clock, four o'clock, rock", ela comete um erro quase imperceptível e detona boleristicamente "one, two, three o'clock, floor o'clock, rock".
Os cinco, que se achavam entendidos em inglês, balançaram novamente as cabeças, agora afirmativamente. Como era do seu caráter, seu Guiga não deixava dúvidas no ar, matava a cobra a pauladas e fazia uma botina com o couro. Botou então, outra vez, o disco para rodar.
– Vocês devem ter estranhado a expressão "boleristicamente" que usei agora há pouco. Pois é, eu estava me referindo ao título em português da canção "Rock Around the Clock", que, aqui, passou a ser "Ronda das Horas". Não é só pela semelhança fonética das palavras "rock", "around" e "ronda", mas, também, pelo grande sucesso de um bolero do trio mexicano Los Panchos, "Noche de Ronda", no qual os produtores espertalhões pegaram carona. Viram? O rock entrou no nosso país por caminhos tortilhosos, perdão, tortuosos – disse, brincalhão, o professor.
Riram todos, com o espirituoso trocadilho.
– Que aula! – disse Gê.
– Porra! – exclamou Maquiné.
– Maçante... – disse o ciumento Nico, com um muxoxo.
– Ei, eu tô interessado! – exclamei.
– Eu também! – completou Rique.
Vendo que a chuva não cessava, e consciente do seu magnetismo, seu Guiga continuou.
– Contrariando todos os historiadores do rock brasileiro, vou contar um segredo para vocês e, vejam bem, não vão sair por aí espalhando porque isso é uma descoberta minha. Então, boca de retranca! Combinado? Todos os historiadores insistem em dizer que o primeiro instrumento solo do rock no Brasil é o saxofone. Sim, na grande maioria das vezes, pela dificuldade de se adquirir uma guitarra elétrica aqui na terra do samba. Mas, e como sempre há um mas, nesta pioneiríssima gravação de Nora Ney há uma guitarra. Sim, uma guitarra! E, além de tudo, solando, cuja sonoridade é a de uma Gibson Les Paul. E, digo ainda mais, acústica! Sabem quem era o único a ter uma Les Paul no Brasil? Betinho! Ele ganhara essa guitarra do pai, músico de Carmen Miranda.
– Betinho, quem é esse agora? – perguntou Maquiné.
– E Carmen Miranda, o que ela tem a ver com o rock? – perguntei, indignado.
– Pelo jeito, agora tudo tem a ver com rock... – resmungou Rique.
– Certo, certo! – concordou seu Guiga, percebendo que conseguira despertar ainda mais o interesse dos garotos, que não supunham que as pesquisas de pai de Nico pudessem chegar às raias da paixão. E, além de tudo, paixão pelo rock, coisa tão cara aos seus corações juvenis. Chegava a ser gostoso, até reconfortante, mas também assustador, saber que tudo estava interligado.
Dona Iva, madrasta de Nico, trouxe silenciosamente uma caneca de café com leite bem quente para cada um, acompanhada de um delicioso pão com manteiga, deixando-os entregues novamente à aula de rock’n’roll. Entre uma mordida e outra na bem-vinda iguaria, seu Guiga não perdia a chance de demonstrar a sua, até então, desconhecida erudição sobre assuntos musicais.
– Vocês sabem que o Brasil tem uma tradição de sanfoneiros, né? Antes de vocês nascerem, os lares brasileiros de classe alta tinham um piano e os de classe média um acordeom, nome chique, afrancesado, para a nossa sanfona, que vem a ser um piano portátil, de bolso.
Rimos da canhestra comparação.
– Assim, fazendo jus às nossas raízes, um sanfoneiro chamado Fronteira também gravou "Rock Around the Clock". Se vocês prestarem atenção, também há uma sanfona tocando na gravação de Nora Ney. Ouçam!
E, pela enésima vez, botou o disco gasto para tocar.
– Ah, não! Eu até gostava dessa música... – reclamou Gê.
– Tá bom, tá bom! – disse seu Guiga, baixando o volume, sem interromper a execução. – E por falar em sanfona, rock mesmo é Luiz Gonzaga, o rei do baião!
Outra vez, os garotos ficaram com a pulga atrás da orelha, mas não tiveram tempo de perguntar nada, pois a metralhadora verbal do mestre voltara a matraquear, dando continuidade à lição.
– Logo depois, a cantora Heleninha Silveira também gravou esse rock, com a letra finalmente vertida para o português por, deixe ver, Júlio Nagib.
– Ah, o filho do seu Nagib, da funerária? – perguntou Nico, fazendo graça.
Novas risadas.
– Vamos embarcar de volta na viagem aos primórdios do rock, na nossa máquina do tempo! – disse, fazendo o ruído de uma nave espacial, tentando pôr ordem no recinto e recuperar a atenção.
– Pera aí, pera aí! – cortou Nico, soltando um sonoro peido.
Alvoroço da molecada segurando a respiração, apertando o nariz. Para retomar as rédeas, seu Guiga ergueu o volume da vitrola, causando um estrondo, o que fez os meninos taparem os ouvidos e se calarem, assustados. Então, ânimos acalmados e fedor dissipado, a aula continuou.
– Ah, vocês não imaginam o que foi assistir a... no Cine Avenida... há tanto tempo... "Rock Around the Clock", batizado aqui de "Ao Balanço das Horas"... Este, sim, pode ser considerado o primeiro e autêntico filme de rock de toda a história. Foi o marco zero da minha juventude! – disse seu Guiga, com a voz embargada. – Saí do cinema, pedalando a minha bicicleta, sentindo-me jovem pela primeira vez. Saí da sessão transtornado... O vento batia na minha cara! O mundo era meu! E eu pedalava cada vez mais rápido! Era uma das noites mais geladas do inverno curitibano. O rock, direto na boca do estômago, como um gancho, levando-me ao pulsar do Universo. Tudo estava por fazer! Depois daquela maldita Guerra, podíamos reconstruir o mundo!
Surpresos, os meninos o imaginaram de topete, emplastado de brilhantina, e uma linda jaqueta de couro preta. Esperto, seu Guiga percebeu que a plateia estava aos seus pés.
– Meu tio contou que, em São Paulo, o filme chegou a ser proibido para menores de 18 anos. É verdade isso? – perguntou Gê.
– Sim, a porca torcera o rabo de vez, para desespero dos pais e das autoridades policiais. Os guardiões da lei temem sobremaneira a ação extremamente benéfica que mexe com os valores cristalizados da sociedade, que desmantela a ordem estabelecida das coisas. Os senhores do poder tentam pulverizar qualquer mudança. Todos nós dizemos querer o novo, mas somos os primeiros a nos acovardar. A mudança iminente virá, queiramos ou não. Daí, num gesto suicida, tentamos inutilmente destruí-la ou, pior, diminuir a sua importância. Vocês acreditam que antes da Segunda Guerra não existia a palavra teenager?
– Como assim? – perguntou Rique.
– Passava-se da infância direto para a idade adulta, os adolescentes não tinham cultura própria.
– E quem proibiu o filme?
– O político mais sinistro e inconsequente da história da nossa República: Jânio Quadros, quando governador de São Paulo.
– Aquele do "varre, varre, vassourinha", pai?
– Ele mesmo, que depois entregou o Brasil de bandeja para os militares, deixando o vice João Goulart no governo. Mas Jango era um fraco, não teve pulso firme, ou melhor, não tinha a credibilidade do povo para conter a marcha dos verdugos ao poder. Aí, caímos nessa ditadura odienta que conhecemos muito bem. Mas voltemos ao bom e velho rock'n'roll...
– É bom mesmo, esse papo de política é muito chato! – cortei.
– É por causa de gente que pensa assim que o país está desse jeito – retrucou Gê.
– Vá, vá, vamos voltar a falar de rock!
– É, vivemos em tempos bicudos, parece um pesadelo sem fim... mas não esqueçam que a música jamais existirá dissociada do fato político, social, econômico, comportamental.
– Vá lá! Rock'n'roll! – gritamos os cinco, em coro.
– Então, como é comum no mundo da música, ou melhor, da indústria fonográfica, tanto os produtores quanto os músicos pensavam que o rock era algo passageira, como todos os modismos. Daí, gente como Agostinho dos Santos, cantor romântico por excelência, gravou "See You Later Alligator".
– Em inglês? – perguntou Maquiné.
– Não, vertida para "Até Logo Jacaré".
– Que ridículo!
– Ridículo por quê? Porque é em português? Sabe que isso é uma atitude de dominação cultural?
– Não, eu não quis dizer isso... – desculpou-se Maquiné.
– Mas você externou o que todos os brasileiros pensam. Não entendemos nada do que os gringos estão dizendo e, muitas vezes, engolimos goela abaixo um monte de baboseiras. – disse taxativo seu Guiga.
– Falou bonito, hein?
– O nosso primeiro rock original, com letra em português, composto por um brasileiro, foi "Enrolando o Rock", que apareceu em abril de 57... – continuou.
– Numbers, numbers, numbers – retrucou Gê.
– Calma, números e datas são importantes para nos situarmos historicamente, porque vários estudiosos afirmam que o primeiro rock feito em português é "Rock'n'Roll em Copacabana", que só saiu em maio do mesmo ano. Acontece que a composição "Enrolando o Rock", do mesmo Betinho, saiu em abril, um mês antes. E este rock tem letra sim, contrariando mais uma vez os apressados historiadores de gabinete.
– Porra, o velho é foda! – disse Nico, orgulhoso.
– Vocês lembram da chanchada que passou esses dias na TV, "Absolutamente Certo"? Pois é, neste filme o Betinho aparece tocando uma Fender Stratocaster – provocou seu Guiga, indo direto na veia.
– Uma Fender, naquele tempo? Aí é demais, isso já virou piada! – exclamou Maquiné.
– Sim, uma Fender, essa mesma que vocês ficam babando quando veem o Jimi Hendrix tocando. Digo e repito: o mundo não foi inventado quando vocês nasceram, muito menos a Fender!
– E esse tal "Rock'n'Roll em Copacabana”, quem gravou então? – indaguei.
– Cauby, Cauby Peixoto.
– Ah, tomá na peida, aquele de "Conceição"?
– Sabem o que tinha do outro lado do disco? A música "Amor Verdadeiro", versão para "True Love". E Cauby ainda tiraria outra lasquinha do rock, cantando, no final de 57, agora sim, o tal "Enrolando o Rock", de Betinho. Perceberam onde começa a confusão? Portanto, sou categórico: Betinho foi o primeiríssimo a gravar um rock composto originalmente em português. Não sou nenhum Tinhorão, mas tenho os meus contatos. E, além do mais, sou um pesquisador de campo! Hahahaha! – disse seu Guiga, numa gaitada, botando para rodar as gravações, uma a uma, sobre as quais dissertara com tanta propriedade.
– Cauby... incrível! – resmunguei, inconformado.
– Ah, não fique assim, Neguinho. Tás triste por quê? Cauby é bicha, mas David Bowie também é – disse Gê, em tom de troça.
– E não é só! – continuou o improvisado educador. – Cauby ainda participou de um dos primeiros filmes de rock da história: "Jamboree", chamado aqui no Brasil de "Epopeia do Jazz". Perceberam como ninguém entendia nada de rock, nem mesmo nos Estados Unidos, o berço do movimento? Coisa que eu também contesto, mas isso fica para outra história... Este filme é um amontoado de números musicais, com verdadeiras estrelas do rock, como Fats Domino e Jerry Lee Lewis, mas tem também o jazzista Count Basie, além do nosso Cauby cantando a música "Toreador", algo meio flamenco... e, pasmem, travestido de toureiro.
– O nascimento do rock é um samba do crioulo doido! – atalhei, renitente.
– Que nada, eu acho tudo isso muito saudável! – provocou Gê.
– Sabem que até o Erlon Chaves... – seu Guiga voltou a explicar.
– Aquele chato da Banda Veneno? – interrompi novamente.
– Ele mesmo! Pois é, o cara também gravou "Enrolando o Rock", em 58.
– Porra! Ninguém levava o rock a sério?!
– E é para ser levado? Rock é diversão, brincadeira! – disse Gê, doutoral, por trás dos óculos fundo de garrafa.
– Quem não te conhece que te compre. – provoquei.
A chuva tinha cessado, o sol estava convidativo; os garotos não tiravam os olhos da janela. Percebendo que perdera a cumplicidade do céu, seu Guiga foi logo dizendo:
– Então, eu queria contar só mais uma coisinha para vocês. No início do rock brasileiro, os baladeiros também tiveram grande importância. Como o bolero ainda fazia muito sucesso, as nossas versões para as baladas americanas tinham sempre um sabor tropical, principalmente na voz de Carlos Gonzaga, que emplacava um sucesso atrás do outro. "The Great Pretender", dos Platters, virou "Meu Fingimento", mais "Diana", “Você é Meu Destino", "Oh Carol", "Rapaz Solitário", e muitas outras canções de Paul Anka e Neil Sedaka.
– Quem é Carlos Gonzaga, pai?
– Aquele que canta o tema do "Bat Masterson", em português: "No velho Oeste, ele nasceu e entre bravos se criou"... – cantarolou. – Pois é, do outro lado deste disco tem o rock "Diabinho", versão de "Little Devil".
– Roquinho água com açúcar.
– Cala a boca e ouve, orelhudo!
– E todo mundo ia tirando uma casquinha do rock. Dolores Duran gravou "Only You" e "Love Me Forever" – continuou seu Guiga.
– Dolores Duran, da pré-bossa nova? – perguntou Rique.
– Da pré-bossa nova... Ó, a do cara! – gozaram os outros.
– Até Os Cariocas gravaram "Allways and Forever"... Pianista de chorinho, dona Carolina Cardoso de Menezes gravou "Brasil Rock".
– Aquela velhinha?
– Ela tinha só 41 anos... É, tá bom, não era mais uma jovenzinha. No lado B do disco, havia "Samba no Rio" – continuou o mestre.
– Olha, eu só queria dizer que se isso tudo é rock, o cu da minha vó é piano! – disse Maquiné, injuriado.
– Agora, pasmem! No final da década de 50, ninguém menos que Bill Haley veio ao Brasil! – disse seu Guiga, tentando arrematar com chave de ouro a aula.
– Ah, mas esse não tinha nem estampa de roqueiro – comentou Rique.
– Como assim?
– Era gordinho e usava um pega-rapaz muito cafona, parecido com o do Super-homem..
– É verdade, é verdade! Sou obrigado a concordar – disse seu Guiga, coçando o queixo, depois de alguns segundos de reflexão.
O professor voltou-se para um armário, em busca de mais bugigangas para comprovar as singulares teorias. Aproveitando-se da distração, descemos pé ante pé os degraus de madeira, que insistiam em ranger a cada passo. Já na rua, ouvimos uma gostosa gargalhada. E nós, os cinco amigos inseparáveis, seguimos cantarolando, sob os raios avermelhados que entardeciam os escorregadios paralelepípedos:
– I know, it's only rock'n'roll but I like it!
– I like it!
– Like it, like it!
– Yes, I know!
– I like it!
Então, o velho Guiga botou a cabeça pela janelinha do sótão e gritou, de voz cavilosa, imitando o personagem de uma antiga novela de rádio:
– Só o Sombra sabe a maldade que se esconde nos corações humanos!

sábado, 22 de janeiro de 2011

DONA NILZA E SEU FILHO JOÃOZINHO

por Edson Negromonte

Dona Nilza, a mãe de João, era tão ou mais incomum que o filho. Manquitola, professora e diretora do Colégio Estadual Valle Porto, tinha dificuldade para trocar as marchas do fusquinha azul, a perna dura a impossibilitava de calcar o pedal da embreagem. Por causa disso, atravessava a cidade em primeira. Na volta para casa, a grande diversão dos alunos do noturno era pegar carona com a professora. No cruzamento da Avenida Matarazzo com a Rua Mestre Adriano, que dá acesso ao centro, Dona Nilza parava o carro e mandava que um deles, quase sempre o do banco da frente, na condição de co-piloto (e como o lugar era disputado!), descesse para ver se ela podia continuar o trajeto. Andava tão devagar que, às vezes, só por farra, saíam dois, três meninos e, enquanto o primeiro embarcava, os outros fingiam correr ao lado, fingindo emparelhar com o carro. De vez em quando, um engraçadinho, na corrida, ultrapassava o fusquinha para embarcar de volta, mais adiante. Tudo era uma grande brincadeira para os rapazes que, independente da idade, ela tratava por meninos.
Numa das suas inesquecíveis aulas de História (como ela amava a disciplina!), Dona Nilza estava a discorrer com propriedade sobre a Revolução Francesa, íntima de Robespierre, Danton, Jean-Paul Marat, como se do grande acontecimento tivesse participado de fato, quando foi interrompida por Zico, seu afilhado, bagunceiro de marca maior, dizendo qualquer besteira sobre a lição da aula anterior, só para atrapalhar a explanação da mestra. Irritada com o corte súbito em seu devaneio, Dona Nilza responde ríspida:
– Isso eu dei na semana passada!
– Se deu, eu não comi - retruca Zico, do fundão.
– O quê, menino?! – diz ela, surpresa, fazendo-se de surda.
Noutra aula, estava Dona Nilza empolgada com a peste negra que assolou a Europa na Idade Média, descrevendo os sintomas da doença, pulgas, ratos, mongóis, sangramentos, mortandade, inchaços, bubos,.. Foi aí, então, que eu, leitor de aventuras, levantei o dedo e a interrompi; eu tinha acabado de ler um romance juvenil ambientado na época da peste bubônica.
- Eu li um livro sobre isso, aparecem uns caroços pelo corpo, na cabeça, parecido com a boba que dá na cabeça do pinto...
- Deixe de besteira, menino!
Enquanto eu tentava consertar o mal-entendido, a classe vinha abaixo.
- É verdade, Dona Nilza, o pinto fica mole, todo mole, a cabeça pra lá e pra cá, e cai.
- Já disse para você ficar quieto!
- Mas, Dona Nilza, a senhora já viu como o pinto fica?
- Cala a boca, eu já disse!
Ainda tentei explicar que eu estava me referindo ao filho da galinha, que eu tinha conhecido a doença no sítio do meu avô, mas não teve jeito: mandou-me para fora da sala, sem conseguir disfarçar o sorriso nos lábios finos.
Certa vez, eu e Chico Liberato, companheiro de bagunça, fomos chamados à diretoria por termos ofendido o inspetor escolar. Na presença do inspetor, Dona Nilza perguntou por que tínhamos desacatado o inspetor, pronta para nos passar um sabão ou, pior, uma suspensão.
– Mas, Dona Nilza, a gente o chamou pelo nome, Seu Filhinho – disse Chico, fazendo uma voz fina e aflautada de mulherzinha ao pronunciar o nome do inspetor.
Não que Seu Filhinho fosse maricas, mas para nós, adolescentes descobrindo o mundo, prontos para gozar de tudo, soava muito estranho que um homem velho como ele fosse chamado de Filhinho.
– Saiam daqui, seus desordeiros! Da próxima vez, serão suspensos! – despediu-nos, sem poder disfarçar o riso.
Joãozinho, assim a mãe o chamava, assim ele era conhecido na cidade, apesar de ser grande e forte feito um touro, de peito estufado, briguento. De voz tonitroante, sabia ser delicado e afável, uma moça, quando necessário. Riso escancarado, passadas largas, os pés abertos, dez para as duas, espalha merda.
Uma vez, durante a sua festa de aniversário de 20 anos, Joãozinho tirou da gaveta um revólver e passou a aterrorizar os convidados, simulando uma roleta-russa. Apontava para a cabeça dos convidados e, click, ria às bandeiras despregadas. Encostava o cano na própria cabeça e click. Click, click!
– Deixa de ser louco! - diziam.
– Para com isso, Joãozinho! Para já! – grita dona Nilza, da cozinha.
– Mãezinha, a arma tá vazia – responde Joãozinho, divertindo-se.
– Olha, que o diabo atenta!
– Tá vazia, sem bala, mãezinha! Olha só, quer ver?
E Joãozinho, apontando a arma para a própria mão, aperta o gatilho. Click! Click, click!
Sabe-se lá, sem como nem porquê, o revólver dispara, e uma bala atravessa a palma da mão do aniversariante, e passando rente à cabeça dos convidados vai se alojar na parede. Segundos de silêncio, de descrença... Ao perceber o vermelho do sangue, do próprio sangue, Joãozinho começa a gritar desesperado, segurando a mão, choramingando. Por isso, e somente por esse pequeno incidente, Joãozinho, o filho da Dona Nilza Machado, a professora de História e diretora do Colégio Estadual Valle Porto, ficou conhecido para sempre como João Bang.
Para fechar a crônica, devo relatar também o enterro de Dona Nilza, embora isso me doa muito, assim como deve ter doído a todos os seus conterrâneos, assim como deve ter doído muito mais ao seu filho que, apesar da dor, teve que dar, ao telefone, a triste notícia ao irmão que morava no norte do Paraná:
– Joel, vem rápido pra Antonina, que a velha fodeu-se.
Ao sair o féretro, uma verdadeira multidão o acompanhava. No meio do caminho, uma chuva fininha foi engrossando aos poucos. Então, os condutores do caixão acharam melhor apertar o passo. Indignado, João Bang pulou na frente do carro funerário, de arma em punho.
– Devagar aí, miudinho, que isso não é enterro de vagabundo!