quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

EM QUE MUNDO VOCÊ VIVE?

Edson Negromonte

Gaetano Moricone chegara bem aos 70. Tinha saúde, embora o tabaco lhe cobrasse o preço: a voz enrouquecida, o pulmão esquerdo funcionando pela metade, perda do paladar, tosse. Menos a memória, esta continuava cumprindo seu papel: não deixá-lo só; era a fiel companheira. A chegada à idade avançada não era, para ele, motivo de comemoração. Os amigos, aqueles que lembravam ainda da data, quando o encontravam na rua, sequer lhe davam parabéns. Pouco importava; era melhor que o esquecessem. Estava bem assim, eximia-o de responsabilidade.

Gaetano não casara. Os parentes que lhe restavam (a irmã mais velha, dois sobrinhos), tinha-os banido, desde que tentaram se imiscuir em sua vida, importunando-o com conselhos baratos. Para que servem as pessoas? Para nos entediar com seus achaques, os mais velhos. E os mais novos, com a sua vivacidade, comprometem ainda mais o tempo que nos resta. Preferia assim, quisera o viver solitário. Tinha apreço pelos livros, pela poesia, independente de escolas, mas principalmente por Ovídio. Embora soubesse “Metamorfoses” de cor, a cada leitura descobria novas inflexões. Não se considerava um latinista. No início, para lê-lo no original, fez uso de dicionários, gramáticas, edições bilíngues. Leitor ávido desde a adolescência, agora fazia uso de uma lupa. O enfraquecimento da visão, o médico atribuía mais à constante fumaça do cigarro que à idade.

A monotonia da casa era quebrada somente pelo ronronar de Publius, pouco afeito a carícias. Gaetano jamais suportaria um gato se enrodilhando em suas pernas, carente. Entendiam-se bem assim e isso lhes bastava. Pela manhã, leite morno com pão picado; uma tigela para Gaetano, outra para o bichano. Publius surgira, vindo sabe-se lá de onde, de que becos, aparentemente sem dono. Como ninguém o reclamara, foi ficando. Gaetano tinha certeza de que Publius iria embora um dia, sem mais nem menos. Por quê? Pela simples razão de que tudo é transitório. Cortinas semicerradas, a sala da casa tinha uma mesa, atulhada de livros, duas cadeiras de palha, um pequeno sofá de dois lugares. E ironicamente, no canto, uma namoradeira, ocupada pelos 32 volumes da “História Universal”, de Césare Cantu. Nas paredes de madeira, verdes, descascadas, nem um único quadro, coisa que à primeira vista denota uma alma desprovida de encantos. No assoalho, um tapete descorado. As estantes exibiam um grande número de lombadas pardacentas. Gaetano gostava das coisas assim, cada qual no seu lugar, sem surpresas. De madrugada, mesmo com a luz da sala apagada, era capaz de encontrar o livro procurado: satisfação infantil de uma criança cega. Nessas horas insones, de leitura até altas horas, era grato à vida por lhe ter roubado a chance de uma família, uma esposa, filhos pequenos, essa minúscula oportunidade que entrevira certa ocasião: de ser um homem comum. Não, ele não legaria a ninguém a herança de suas mazelas quando atravessasse à outra margem do rio, obscura. Não teve nunca ninguém para incomodá-lo com a arrumação da casa, a poeira acumulada nos cantos, hora de dormir, de acordar, essa aporrinhação do dia-a-dia na qual o homem comum tanto se compraz. Mesmo assim, acordava todos os dias muito cedo. Escovava os dentes, aliás, a dentadura, lavava o rosto na água fria, bebia um copo de água fresca. Antes do banho matinal, religiosamente olhava para o céu e murmurava:

– Puta que pariu!

Por certo, não era blasfêmia. Aprendera com o agnosticismo caboclo do avô que, se um homem não tem nada a dizer, ao se levantar, que diga então qualquer coisa, para não deixar passar em brancas nuvens a ocasião de se mostrar vivo ao Criador. O avô lhe ensinara muitas coisas: encilhar cavalos, a longevidade do bebedor de mate, a carneação do porco, o ritmo dos trens, a linguagem dos apitos. Todas essas coisas, Gaetano fizera questão de esquecer, após a morte do velho. Para que cultivá-las, se não eram de serventia para o solitário que ele se tornara? Das lições avoengas, conservou somente a saudação ao dia.

Duas leves pancadinhas na porta. Quem seria? Gente boa, os vizinhos não tinham por hábito incomodá-lo, sabiam que ele não era afeito a visitas. Muito menos as inesperadas. Novas pancadinhas; agora três, breves, seguidas de outras duas, longas, como arte de telegrafista. Pensou em não atender, fazer de conta que não estava em casa. A pessoa do outro lado insistia.

– Quem é?

– Eu preciso falar com o senhor.

Abriu a porta, contrariado. A garota esboçou um risinho infantil.

– Posso entrar?

– O que você quer?

Ela continuou sorrindo.

– Eu vim saber se o senhor pode me dar aulas particulares.

– Aulas particulares?!

– É que eu vou prestar vestibular no ano que vem e... como o meu português não é dos melhores...

– Mas eu não sou professor de nada, me aposentei pela ferrovia.

– Eu sei, eu sei, mas não tem mais ninguém na cidade que possa me ajudar. Sabe como é, né?

– Não sei não, não sei mesmo.

Já tinham lhe dito do mau humor de Gaetano, mas ela estava disposta a tê-lo como mestre, ele era tido como o intelectual da cidade.

– Eu li o seu livro...

– Ah, é?

– Gostei muito, apesar de não entender grande coisa.

– E qual o título? – disse ele, em tom de desafio.

– “A Maldição da Poesia”.

– Não seria talvez “A Má Dicção da Poesia”?

– Posso entrar?

Sem esperar resposta, a garota embarafustou-se casa adentro; Gaetano teve tempo somente de dar um passo atrás. Ela sentou-se no sofá, indiferente à poeira, fez um breve cafuné no gato que languidamente virou a barriga para cima, à espera de mais afagos, os quais não se repetiram. Os olhos azuis da garota passearam pela sala, pelos móveis, os poucos objetos de adorno (Santa Clara, em gesso pintado; Leda e o cisne, de bronze; uma moldura pequena e antiga, com o retrato de um casal, talvez os pais dele), o prato sobre a mesa, fundo, a colher acomodada na beirada, a xícara de café, outra xícara, mais outra... A garota Imaginou uma marimba improvisada com o que restasse de café nas xícaras. Ela esboçou um lindo sorriso, ante o suposto disparate dos sons. Definitivamente, concluiu apressada, não havia há muito tempo, naquela casa, a presença feminina, nem mesmo de uma empregada. Deteve, então, o olhar na primeira estante.

– Quanto livro!

Gaetano não pode deixar de sentir orgulho. Então, as mulheres, enquanto meninas, são capazes de se interessar por livros? Os olhos sem descanso da garota percorreram as outras estantes.

– Mais livros? Para que tantos?

Por certo, são todas iguais, em qualquer idade. Gaetano não escondeu a irritação, num leve aperto dos lábios. Ora, para que tantos? A garota fez de conta que nem era com ela.

– Os livros...

– Não precisa explicar, eu também amo os livros. A meu modo, mas amo, assim como amei minhas bonecas um dia.

– Os livros são...

– Olha, eu vim aqui para saber se você... o senhor... pode me dar aulas particulares.

– Não sei.

– Como não sabe?

– Não sei, simples, não sei. Nunca dei aula particular. A minha vida foi sempre a ferrovia, detrás de uma mesa, carimbando, assinando papéis, documentos, a insensatez que é a vida de um...

– Mas o meu pai vai pagar.

Gaetano resmungou qualquer coisa sobre o valor do dinheiro, venalidade, a estupidez juvenil.

– Olha, eu ligo para o senhor amanhã, pra saber a resposta.

– Eu não tenho telefone.

– Em que mundo você vive?

– Humpf!

– Olha, amanhã eu bato aqui de novo.

Sem cerimônia, ela mesma abriu a porta e se foi, deixando na casa o cheiro nauseabundo da juventude. Gaetano permaneceu no meio da sala, estupefato. Que topete! Então, ela entrava assim em sua casa, sem ser convidada, e praticamente o obrigava a aceitá-la como aluna? Publius espreguiçou-se e voltou a dormir. Gaetano encheu uma xícara de café, acendeu um cigarro, com o pensamento longe. Mecanicamente pegou um livro qualquer de cima da mesa, capa vermelha, letras douradas. Não o abriu, era uma espécie de muleta, muito útil quando se via na iminência de tomar uma decisão, de atravessar a ponte pênsil que o conduziria a uma margem desconhecida. Deixou-se cair pesadamente no sofá, deu uma tragada profunda, observou os dedos da mão direita, nicotina, alcatrão.

– A impetuosidade da pouca idade.

Sentiu saudades de si mesmo, a primeira namorada, o primeiro beijo, o abandono, sentiu saudade da mãe. Divagando, deu com os olhos em “Cartas a Nora”, de James Joyce, a picante correspondência amorosa do grande escritor irlandês com a futura esposa. Ligou a TV: outro acidente com trens na Índia. Numa das estantes, deu com os olhos em “Lolita”. Por que os seus olhos o conduziam à sacanagem? Sentiu vergonha dos próprios pensamentos. Não, não a aceitaria como aluna. Ela não tinha mais de 17 anos. Dezesseis talvez. E ele? Um pé-na-cova. Era encrenca na certa. É sempre encrenca. Não era justo com a menina, e muito menos consigo mesmo. Abriu Ovídio, nada melhor que o amado poeta, companheiro das horas difíceis, de todas as horas, para distraí-lo do olhar insinuante da menina, dos seios adivinhados sob a camiseta branca, redondos, firmes, empinados, bicos apontando para ele. Gaetano sabia-se ainda charmoso, apesar da idade, da rabugice, que só o faziam mais misterioso e atraente às mulheres, principalmente às jovens. Um cigarro após outro; o gato dormindo, indiferente ao alvoroço interior de Gaetano. A mente divagando, nem Ovídio conseguia aquietar seu coração. Veio-lhe então a palavra “ninfeta”. Em seguida, sua consciência rosnou, entre dentes: – Velho sujo! Sentiu ódio. Preconceito? Ele nunca a vira antes, mas ela, com certeza, já andara se informando sobre ele. Até o seu livro ela lera. Bem, isso ela dissera. Teria lido mesmo? E, se fosse verdade, com que atenção? Passou a mão pela vasta cabeleira grisalha, outrora negra, quase azul. Não crê que uma menina seja capaz de se interessar por alguém de mais idade? A busca do amor? Uma aventura passageira para se gabar depois, isso sim. Ergueu-se. Era alto, ainda espigado. Os vincos da face davam-lhe uma aparência venerável, os olhos negros conservavam o brilho, a profundidade, nariz aquilino, lábios enérgicos. As mãos? Grandes, quase desproporcionais, angulosas, veias à mostra, apropriadas para pegar a vida pelos chifres, a qual ele sabia que não agarrara, falhara. As armadilhas do ego, o vampirismo dos mais velhos em busca do sangue dos jovens. Sentiu nojo de si mesmo. Teria ainda a aparência sedutora da meia-idade? Nas poucas vezes em que saía à rua, percebia envaidecido os olhares femininos. Amanhecera, e Gaetano ainda se debatia com os sentimentos. Afinal, conseguira tomar a decisão de não aceitar a menina como aluna. Sua vida estava muito bem assim, sem sobressaltos, sem novidades, sem ninfetas, nem paixões impossíveis, sem ervilhas abandonadas no campo de centeio. Mas Gaetano sentia-se, desde a visita da garota, mais vivo do que jamais estivera em toda a sua longa vida. Aguardou ansioso a manhã inteira que alguém batesse à porta, fumando um cigarro atrás do outro. Queria somente poder dizer não, como uma vingança, pelo desprezo. Cheirou as mãos e o fedor era para si mesmo insuportável, nicotina pura. Lavou-as com sabonete Lux. Por que Lux? Ora, porque nove entre dez estrelas do cinema usam Lux! Acendeu outro cigarro e se demorou olhando a chama intensa do fósforo, saboreou o fogo, o fogo da paixão... Virou o palito para cima, inclinou aos poucos a ponta enegrecida para baixo. Na pequena caixa sobre a mesa, lia-se Fiat Lux. Empilhou alguns livros, levou as xícaras para a cozinha, correu o dedo pela poeira dos móveis. Pensou em dar um jeito na casa, acabou deixando para lá. Engrolou “Fly me to the Moon”, e sentiu-se ridiculamente romântico. Meio-dia, e nada da menina. Arrastou-se a tarde, e ninguém. À noite, menos ainda. Cinzeiros, cheios. A sala, enfumaçada. Qual seria o nome dela? Vira-a somente uma única vez. Beatriz, a beata? Virgínia, do amor adolescente? Isolda, a lendária? Julieta, a dos espíritos? A proibida Júlia?

De manhã, insone, Gaetano olhou para o alto e, de punho erguido, gritou:

– Puta que O pariu!

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

O ESTRANHO

Edson Negromonte


À espera do trem que me levaria a Curitiba, folheava eu aleatoriamente as páginas de um volume ensebado de "A Cor que Veio do Céu", de H.P. Lovecraft, minha atenção foi repentinamente atraída por alguém que atravessava o portal da estação, dirigindo-se ao guichê de passagens. Trajava ele uma túnica de tecido simples, azulado, sandálias, e media aproximadamente dois metros de altura, de pele branca, olhos castanhos e cabelos negros, os quais trazia numa grossa trança que ia da nuca ao alto da cabeça e terminava em ponta na testa, quase à altura do nariz. Era de chamar a atenção em qualquer lugar do planeta.

Olhando melhor ao redor, só eu botava reparo na estranha figura. As outras pessoas passavam por ele como se fosse apenas um homem comum, um qualquer. Pior, como se ele não existisse, como se elas pudessem atravessar a estranha figura magnética, a qual fazia-me quase perder a respiração. Eu disse quase? Desculpe, mas meu coração ainda bate descompassado ante lembrança tão vívida, que o pensamento sai à frente das palavras, como um cavaleiro apavorado em frente à montaria. Há muito tempo eu abandonara os arroubos da juventude que me conduziriam às civilizações perdidas, às íntimas relações entre si, levando-me a defender uma inusitada tese, pela qual sofri o achincalhe de meus iguais, a de que os povos indígenas, sejam maias, astecas, toltecas, e mesmo os tupis e guaranis, são todos descendentes diretos dos atlantes. E que a grande civilização egípcia, muitas vezes supervalorizada, é somente a ponta mais visível das intensas navegações empreendidas por esse povo, o qual conseguira sobreviver à maior hecatombe nuclear de toda a história da humanidade, relatada de maneira irrefutável no Livro de Noé, o último dos dez patriarcas antediluvianos. Acontece que, empolgado, eu ia além e provava por A+B, pelo menos para mim, que os símbolos dessas civilizações ditas primitivas são os mesmos, com pequenas variações, alegando que a própria suástica é um signo anterior à civilização indiana. É mais que evidente que essas elucubrações foram rechaçadas pelo mundo acadêmico, razão pela qual abandonei-as; o que não me impede hoje, numa difícil e dolorosa autocrítica, de assumir que eu mesmo não acreditava plenamente em todas as minhas alegações, sendo mais fácil culpar os outros pelas minhas impossibilidades, por minhas desistências. Agora, eu não cria, estava diante de um dos mais dignos representantes da extinta raça lemuriana, contemporânea dos atlantes. Com o coração aos pulos, um frêmito sacudiu-me o corpo. Voltando rapidamente a mim, olhei em torno em busca daquele ser e avistei-o aguardando tranquilamente a chegada do trem, na plataforma. Além de mim, somente um garotinho, aparentemente com deficiência mental, observava-o curioso.

A primeira vez que ouvi sobre a Lemúria foi numa conversa rápida com o brilhante filósofo e místico Líbero Veloso. Era uma tarde agradável, num clube de cavalheiros, desses que hoje não existem mais, à rua Marquês do Herval, quando ele indicou-me o "Livro de Dzyan", de Madame Blavatsky. Segundo Veloso, eu estava naquele momento memorável recebendo um manuscrito, de próprio punho, cuja tradução ele mesmo realizara, a partir de um original russo, encontrado na biblioteca pública da capital, o qual nunca mais seria localizado, apesar das buscas incessantes, apesar da intercessão do próprio secretário estadual de Educação e Cultura. Senti-me o depositário de confiança do supremo hierofante do templo de Elêusis, na Grécia. Depois disso, eu e Veloso tornamo-nos quase inseparáveis, independente da diferença de idades. No entanto, hoje devo admitir minhas dúvidas quanto à veracidade desse texto, mas longe de mim imaginar que o nobre estudioso de ocultismo tenha mentido. Talvez ele mesmo estivesse equivocado em suas infatigáveis pesquisas, além da idade avançada, período que nos leva a confundir a realidade e criar mundos fantasiosos a fim de suprir as carências. Como disse anteriormente, as ideias vêm atabalhoadamente e sou obrigado a desdizer o que dissera, então, pensando melhor, não acredito em tal hipótese; Veloso era muito consciencioso, chegando às raias do ceticismo, e só dava a público aquilo que ele próprio já comprovara. Dele ouvi, em seu leito de morte, que outros autores, como Donnelly, Jacolliot e Lake Harris, serviram de inspiração à fundadora da respeitável Sociedade Teosófica, para a feitura do “Livro de Dzyan”. Mas esses três autores referiram-se somente de passagem, em seus escritos, à saga dos lemurianos. Em homenagem às agradáveis tertúlias com o meu mentor, dediquei-lhe o trabalho de minha vida, a repudiada tese sobre as civilizações desaparecidas, pois ele fora o orientador informal. Em seu leito de morte, quando o amado mistagogo abriu a boca em seu último alento, pareceu-me querer dizer que tudo fora uma farsa. Pensamento fortuito e passageiro, do qual temos a vida inteira para nos arrepender; só o estou expondo aqui, assim, tão abertamente, porque tenho certeza de que esta narrativa será lida somente após a minha possível passagem do Aquém para o Além.

Nesse seleto e, por que não, secreto clube de cavalheiros, reuniam-se aos sábados os estudiosos de filosofia e dos mistérios arcanos. Para mim, um jovem recém-saído da universidade, a convivência com essas mentes investigativas era extremamente enriquecedora. Tudo naqueles salões cheirava à cultura, desde os volumes encadernados a couro nas estantes de madeira escura às fotografias de personalidades ilustres da literatura universal, passando pelos objetos de adorno, onde incluo um romântico narguilé, que asseguravam alguns ter vindo diretamente de Paris e que nele pousara os lábios o poeta maldito Charles Baudelaire. Em meio a tudo isso, chamava-me sobremaneira a atenção a estampa de Bulwer-Lytton, de bigode e suíças, de vasta cabeleira, empertigado, sem olhar o retratista, e com uma pena à mão. Do consagrado autor de "Os Últimos Dias de Pompéia" e "Zanoni", constava de nossa biblioteca o raríssimo "A Raça Futura", sobre uma civilização subterrânea, também citada no romance espírita “A Lenda do Castelo de Montinhoso” e esmiuçada no imprescindível “A Terra Oca”. De posse de tal bagagem, e jogando ao sabor das leituras, minha atenção foi, um dia, atraída para o tomo "Lemúria – O Continente Perdido do Pacífico", de cujo autor não lembro mais o nome. Após repetidas leituras, dei asas à imaginação, quiçá ao delírio, e quase convenci os meus confrades a comigo embarcarem numa expedição ao monte Shasta, na Califórnia. A Providência quis por bem que a futura expedição não fosse além das nossas confortáveis poltronas, revestidas de veludo carmim, como tantas outras resoluções que tomamos com tal ímpeto que se desmoronam à primeira contrariedade. Agora, muito tempo depois, estou aqui nesta estação às voltas com as doces recordações daqueles anos, frente a frente com o que eu julgo ser um legítimo descendente de uma civilização dita extinta. Sei que isso vai contra toda a ciência, mas há neste mundo pessoas que fazem da especulação apenas o seu alimento preferido, como uma perversa geleia de língua de cotovias, apesar de ser considerada um requinte, pois o conhecimento não aplicado e o prazer mórbido da vaidade geram a pestilência.

Embarquei num dos vagões da classe popular, enquanto o alvo de minhas atenções dirigiu-se para o confortável vagão de primeira classe. Era uma composição mista, levando, além de passageiros, vários vagões carregados de sementes e grãos, principalmente soja. Estava envolto em minhas reflexões acerca da criatura, quando fui subitamente despertado pelo estridente apito da velha locomotiva a vapor, ainda em funcionamento e expelindo orgulhosa uma exuberante nuvem de fumaça. Estávamos em movimento, sacolejando para lá e para cá. Decidi então mudar de vagão para estar o mais próximo possível do estranho lemuriano. Sim, hoje ouso dizer com toda propriedade que era ele realmente um lemuriano. Ao chegar ao vagão de primeira classe, meus olhos deram diretamente com a sua elegante figura, contemplando a vigorosa paisagem que somente as serras de minha terra oferecem. Era ele realmente de chamar atenção, tamanha a beleza de seus traços, a placidez de seu semblante, além da inusitada trança, a qual descia até os olhos. Ninguém o olhava sequer de relance, como se ele fosse um homem comum. Ou seria uma atitude respeitosa com aquilo que desconheciam, atribuindo-lhe uma aura de divindade? Nós, humanos, fingimos não ver aquilo que não compreendemos. Penso que é uma atitude correta, pois assim evitamos pensar sobre coisas além da nossa compreensão, facilitando o cotidiano. Quão agradável deve ser a vida quando não queremos nada além das coisas comezinhas do dia a dia, mas devo acrescentar, com algum pesar, que isso é, na prática, impossível para aqueles que ousaram levantar o primeiro dos sete véus de Ísis.

Como o meu, somente um par de olhos permanecia fixo no estranho, o do garoto da estação, enquanto os outros pareciam trespassá-lo, admirando a paisagem lá fora através dele. Confesso que isso foi causando-me aos poucos certo desconforto, quando um leve movimento da trança descobriu uma pequena protuberância em sua testa. Assim como eu, inebriado, o garoto com problemas mentais continuava a olhá-lo. Num lampejo, veio-me à mente que aquela protuberância podia muito bem ser um sinal do que os antigos entendiam metaforicamente como o terceiro olho, a morada da alma, como bem o compreendera Descartes. Eu, num misto de curiosidade e medo, observava-o por cima dos óculos, fingindo ler o oportuno Lovecraft. Sobressaltei-me então com o fiscal, picotando os cartões e, para meu desespero maior, convenientemente ignorando o lemuriano. Por encontrar-me em outra classe, tive que pagar um valor a mais, o que fiz de bom grado, mesmo sabendo que não poderia mais me dar ao luxo de comer um pão com manteiga, acompanhado de uma média, após encerrar os afazeres na capital. Em momento algum, o estranho tirou os olhos da paisagem. Cheguei a imaginar que somente a sua carcaça estivesse ali, acomodada naquele banco de trem, tal e qual uma crisálida. O que estou pensando? Não posso deixar a fantasia tomar conta, sou um estudioso, um cético, só a concretude das coisas é digna do saber do homem.

As delicadas flores silvestres quase adentravam o vagão, obrigando os passageiros a se afastar das janelas, mas aquele estranho... Não, ele não movia-se um milímetro sequer, assustando-me mais e mais a sua serenidade.

– É um amongue...

Virei-me abruptamente para o banco de trás, de onde viera a voz. Meus olhos arregalados deram com um homenzinho franzino, de chapéu de feltro e paletó xadrez, de tweed. De bigode fino, óculos de fundo de garrafa e cavanhaque, tinha um quê de personagem de quadrinhos.

– Anda entre nós, mas poucos o percebem – disse o sujeitinho. – Meu nome é Astrogildo Bandeira, mas pode me chamar de Astro.

O quê? Astro?! – pensei eu. – Ora essa, chamar alguém que acabei de conhecer pelo apelido. Astro? Hahaha! Só se eu fosse lunático!

– Entendo que não tenha gostado da ideia – disse ele. – Não, não precisa se desculpar. Chame-me do que bem entender. O que é um nome? Não pude deixar de perceber o seu interesse no amongue e, como são poucos os que o veem, achei que podíamos então entabular uma palestra amigável, sabe, “uma conversação entre homens inteligentes”, como diria o poeta Ezra Pound.

Que pedantismo! – pensei com meus botões.

– Acha que só você leu Pound, e sobre lemurianos, atlantes, e tantas outras civilizações desaparecidas? Fique sabendo que, muito antes de você sair das fraldas, essa literatura já circulava entre os interessados. Veja bem, em momento algum eu direi “iniciados”. Se você pensa que Platão é o mais antigo a falar da Atlântida, é porque desconhece os autores árabes. Bem sei que não me dá crédito; é somente o ego a falar mais alto, você não consegue admitir que alguém externo ao seu distinto círculo de fumantes de cachimbo possa conhecer uma migalha sequer do que vocês desconhecem. Posso ler nos seus olhos a incredulidade. Poderíamos ser bons amigos, se não fosse a sua empáfia. Você é muito presunçoso! Da próxima vez que encontrar alguém de uma classe inferior ou que não fale tão brilhantemente quanto os seus amigos, segundo os seus parâmetros, por favor morda o lábio inferior em sinal de humildade. É o mínimo que um homem sensato pode fazer e, cá entre nós, como estamos carentes ultimamente de pessoas sensatas.

Dito isso, perscrutou-me. Antes que eu boquiaberto pudesse esboçar qualquer reação, ele recostou-se no banco, cruzou os braços sobre o abdômen, baixou a cabeça, como se estivesse há muito adormecido. Estávamos chegando à estação do Marumbi, o ponto mais alto da viagem, com o pico de mesmo nome erguendo-se altaneiro. Lembrei-me do ser iluminado e encontrei vazio o seu lugar. Descera na parada anterior? Impossível! O homenzinho não falara tanto assim. Ou falara? Antes de o trem parar totalmente, saí desabalado a procurá-lo pelos vagões. Nada, nenhum sinal. Busquei na plataforma, nos arredores, em todos os cantos, perguntando pelo estranho de trança, gesticulando, fazendo sinais com as mãos, como se estivesse num país estrangeiro, onde ninguém compreendesse a minha algaravia. Quando dei por mim, o trem já partira, deixando-me sozinho na gelada estação.

A literatura mística é useira e vezeira em confundir os caminhos quando o buscador não está preparado para continuar a ascensão; acontece que este não é um relato fantasioso, sendo tão somente as palavras sinceras de um devotado cientista, descrente de tudo e de todos. O que sei é que por culpa do tal homenzinho descuidei do ser fabuloso. Ou serei somente eu o culpado de minhas malfadadas ações? E o que vem a ser a culpa, essa gorda senhora sorridente que nos afasta da felicidade?

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

ÚLTIMO DEVANEIO DO VELHO BIBLIOTECÁRIO

Edson Negromonte

Chovia ainda, torrencialmente, qual lembrança de um inesquecível dilúvio, bíblico. Ou do cataclismo da Atlântida. Nunca mais o maldito aguaceiro iria parar? Sentiu a pele úmida ao toque dos dedos, pegajosa.

Levantou-se, então, da cadeira o velho bibliotecário. A solidão, sempre a solidão, apesar de conscientemente cultivada, fez com que acendesse um cigarrinho de maconha, apesar das promessas diárias de não botar mais aquela porcaria na boca, de que se desse mais uma puxada... Enfim, era fácil pôr a culpa na solidão, na chuva, no frio. No frio insuportável da solidão. Precisava se aquecer, e como não bebia mais (o cheiro do álcool tornara-se insuportável), fumava. Desbragadamente nos finais de semana e feriados, quando não tinha que ir ao trabalho.

Dirigiu-se à janela e, através do riscado uniforme da chuva, oblíqua, como no poema de Maiakóvski, de viés, viu a pequena igreja, a capela do Bom Jesus do Saivá. Ao lado, colado à igrejinha, o cemitério, em frente à praça. Seu corpo seria também enterrado naquele cemitério? E se o queimassem na praia, num ritual pagão, como fizeram com Shelley? E se o lançassem ao mar, repasto de siris e camarões, enrolado num lençol branco, alvejado especialmente para a ocasião? Nada mais adequado a um homem que passara pela vida como clandestino, quase invisível. Os amigos poderiam jogá-lo no mar. Sempre tão distantes, se preocupariam com a sua ausência? Dariam pela falta? Não, certamente não. Houve um tempo em que ele chegou a ser sociável, apesar de sumir da convivência das ruas durante semanas. Ficava em casa, ouvindo horas a fio o mesmo disco do Black Sabbath, introspectivo. Gê, grande artista, tornou-se professor universitário. Não o vira mais. Sabia dele pelos outros, sempre assoberbado por teses, de mestrado, doutorado, ph.D. Lembrou-se dos outros três camaradas, inseparáveis naquele tempo: Rique, hoje alto funcionário de uma estatal; Maquiné, agente penitenciário. Encontrara os dois; um na roda de samba dos sábados, na Carioca, o outro, em frente ao hotel que herdara dos avós, em eterna reforma. Convidara-os à sua casa, nunca foram, apesar das promessas.

E Nico, que fim levara? Foi, num domingo, procurá-lo; soube que estava morando em Pontal. Encontrou-o imerso no mundo da droga, expulsara a família de casa, trocara portas e janelas por um tanto de crack. Sentiu-se covarde por não tê-lo esmurrado. Traído pelos sentimentos, para não chorar de raiva, o bibliotecário relanceou os olhos pelo cemitério em frente. Quantos túmulos pintara, adolescente, para Finados?

– Não faça barulho que eles estão descansando – advertia o guardião, naqueles dias despreocupados.

E a chuva continuava, intermitente. Olhou para a esquerda e viu que, mesmo assim, apesar do aguaceiro, o movimento do supermercado não cessara. Logo, dali a uma hora, encerrado o expediente, ele iria para casa; tomada de cupins, e o vizinho tinha cimentado a manilha do esgoto, que passava pelo seu terreno. E a água do banho, da privada, as necessidades iam para onde? Uma noite, sonhou que o quintal inteiro vertia merda. Nos fundos da casa, uma mangueira centenária, que nunca dera um fruto sequer, rangia assustadora nas noites de ventania, esfregando os galhos no telhado e esfrangalhando-lhe ainda mais os nervos. No oco das raízes, morava uma insuspeitada família de lagartos. Pensou em dar nomes a eles; o pai, o rei lagarto, seria Morrison, evidentemente. Precisava mudar daquela casa, pressentia algo muito pesado, um crime ocorrido ali, sim, um crime bárbaro, sobre o qual não se falava, sobre o qual todos calavam.

Andava exasperado, estava emagrecendo a olhos vistos. Suas poucas carnes estavam dançando dentro das roupas, trêmulo o braço direito, os cabelos raleando. Às vezes, o telefone tocava, no avançado da noite. Do outro lado, ninguém, nem voz, nem respiração. Com certeza, precisava mudar dali. Lembrou-se, então, de um telefonema que recebera, há muitos anos atrás, em outra cidade, dizendo ser a Anastácia, prima do Antonio, pedindo-lhe que avisasse aos parentes que a Acácia tinha falecido. Ao dar o recado, quando o avô chegou da chácara, ele arregalou os olhos: a prima Anastácia tinha morrido muito tempo antes da tia Acácia.

A chuva amainara, precisava aproveitar a trégua para voltar para casa. Não apareceria ninguém mesmo; nunca aparecia ninguém na biblioteca, podia assim encerrar o expediente na hora que bem entendesse. Esvaziou baldes, torceu panos, recolocou tudo de volta no lugar, sob as goteiras. Ao se erguer repentinamente, deu com os olhos em “Meu Guru e Seu Discípulo”, de Christopher Isherwood. Apesar da vista toldada, sob efeito do fumo, tinha certeza do nome, sabia de cor cada título daquele lugar. Lembrou-se, então, do Mestre, que o despertara para os aspectos místicos da vida, através dele fora admitido na fraternidade dos rosacruzes, como neófito, onde permaneceu durante trinta anos ininterruptos. (Precisava retomar os estudos da cabala). Quantas conversas na penumbra… O mentor na poltrona verde, gasta, puída; o rapaz aprendendo, o homem mais velho falando-lhe de vidas passadas; da noite negra da alma; iniciações psíquicas no Tibete; vida após a morte; da morte; dos irmãos de branco; da vida mística de Jesus; da concepção de Maria, imaculada (se os homens são capazes de fazer o mal através da palavra dita, por que um arcanjo, um ser superior, não pode criar uma outra vida através do verbo?) sobre o príncipe Sidarta, o venerado Buda, envenenado por carne de porco; Ramakrishna; o Bhagavad-Gita; os Vedas; Zoroastro, a eterna luta entre o bem e o mal; Plotino; o Dr. Bucke; Francis Bacon (assegurava-lhe que Shakespeare era o pseudônimo de Bacon, o qual escrevera todas as obras atribuídas ao bardo inglês), et cetera, et cetera, et cetera, como diria o rei do Sião.

– Mas então por que isso tudo não é amplamente divulgado?

– Muito já foi, e os homens de inteligência se recusam a aceitar.

– Por quê?

– Muito da história precisaria ser revista, muitas reputações cairiam por terra, teses universitárias se transformariam em cinzas. A humanidade gosta de viver na mentira, na ilusão, mas acontece que tudo isso faz parte de uma grande engrenagem, necessária. Até a ilusão.

Ante o assombro do adolescente, o Mestre continuou.

– E se eu lhe dissesse que Jesus não foi o único Cristo, que agora, neste exato momento, pode estar nascendo um outro Cristo no Oriente? Ou numa favela do Rio de Janeiro? Ele pode estar andando na Avenida Paulista, de terno e gravata. Ah, porque se ele estivesse vivendo entre os ocidentais não ficaria andando por aí de túnica, chamando a atenção das pessoas, como um ser exótico. Se quisermos, podemos dizer Buda Cristo. E Plotino também o foi, um Cristo. Também Whitman, esse grande poeta.

– …

– E Jesus não foi o único nascido de uma virgem, e não foi o primeiro nem será o último. A lenda diz que Platão também nasceu de uma virgem. E também Leonardo da Vinci. E Jesus não era analfabeto, nem um homem delicado, nem pobre, como querem as igrejas, e ele não morreu na cruz, viveu até os setenta anos, fazia parte da Irmandade Branca, estudou na Índia, Egito, Pérsia… Tudo isso está lhe parecendo extravagante?

– Não, é que…

Na girândola da cabeça, veio-lhe a imagem de um funeral. Poucas pessoas, simples, dia chuvoso em Paranaguá, o Mestre deitado, com as mãos postas, rodeado de flores amarelas, mal cheirosas. Depois de uma dessas doenças passageiras de inverno, ele saíra para dar uma volta, aproveitar o sol da manhã. Empolgou-se com a caminhada, e quando deu por si já era meio-dia; tinha de voltar, não levara chapéu, o buraco na camada de ozônio, maldito buraco na camada de ozônio. Fora longe demais, chegou em casa vomitando sangue. Foi o tempo de chamarem a ambulância, direto para a U.T.I. Desde então, o mundo ficara mais pobre, o mundo do velho bibliotecário ficara definitivamente mais pobre. Gabava-se o velho bibliotecário de que nos últimos anos não se passara um único dia em que não lembrasse do Mestre. E, agora, quantos dias, meses, tinham se passado sem que a amada figura lhe viesse à mente? Quando alguém morre, promete-se que jamais se esquecerá o ente querido. Durante certo tempo, a lembrança vem à tona, sem que se faça esforço, várias vezes durante o dia, à noite, nos sonhos, depois vai se espaçando, dia sim, dia não, esgarçando-se, rareando, menos densa, cada vez mais difusa, até que se tem de fazer esforço, buscando, rebuscando, e, culpado por ainda estar vivo, passa-se a percebê-lo somente como difusa silhueta num teatro de sombras. Num exercício desesperado, o velho bibliotecário começou a desenhar na tela da imaginação o seu instrutor: cabelos negros, alguns fios brancos, grisalho, a pele muito branca, onde o sol não tostara, baixo, quase atarracado, barrigudo, nariz grosso, a voz às vezes estridente, de descendência italiana. De onde os olhos amendoados? O riso franco que, muitas vezes, desembocava numa gargalhada, ante as inocentes perguntas do aprendiz. E a gagueira? Sim, o Mestre era gago e isso, por certo, não fica bem em alguém pressupostamente capaz de controlar os desejos humanos, ou grande parte deles. E a sua profissão, o que fazia ele para viver? O preconceito jamais deixaria supor um ser tão evoluído ganhando a vida como humilde vigia portuário. Além de tudo, o Mestre era banguela, sem um único dente na boca! Acontece que a vida, a vida real, não é um romance de capa e espada. Não há, após essa descrição, sem meias-tintas, alguém menos apropriado para encarnar um avatar. Pode-se encontrar um Mestre numa catedral gótica, assim como numa aparentemente insignificante aldeia indígena, em vias de extinção. Ou trabalhando anônimo, no cais do porto. O velho bibliotecário refez mentalmente os passos pelas ruas estreitas, de paralelepípedos, da velha cidade, lado a lado, mestre e discípulo, num aprendizado informal, as palavras calando fundo no coração do rapaz: a importância do místico sincero entender que não há mal nem bem, que tais conceitos são meras quimeras; que se o brasileiro adquirisse o hábito salutar de se banhar todos os dias, pela manhã, poderíamos sim construir uma nação, a tão sonhada nação brasileira; de que a humanidade está sempre reescrevendo o mesmo livro; sobre os registros acásicos; Swami Vivekananda; Ramacháraca; o plexo solar; o novo cristianismo; sobre os chacras; Madame Blavatsky; Krishna; o Livro dos Mortos, o egípcio e o tibetano…

Fechou a biblioteca, desceu a escada, degraus de madeira maciça, feitos de dormentes de trem, trancando a estação ferroviária. Na plataforma, veio-lhe a cena de um filme, em preto e branco: o cavaleiro jogando xadrez com a morte.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

A CASA DA MEMÓRIA

Edson Negromonte

Certas coisas são difíceis de explicar, mesmo tendo-as presenciado. Difíceis principalmente aos espíritos céticos. Como não tenho a mínima ideia de quem está por trás destas páginas, dou-me o direito de acreditar que seja alguém disposto a comigo compartilhar de uma experiência que até hoje me horroriza, após tanto tempo. Não peço que você, leitor, creia em meu relato sem questioná-lo. Dou-lhe plena liberdade de discordar, sorrir incrédulo ou até, quem sabe, abandoná-lo após as primeiras linhas. Certamente, não gostaria que isto acontecesse, pois não estaria, então, dividindo com alguém o terrível acontecimento do qual pretendo dar conta.

Em certa ocasião de minha vida, na adolescência (fase propícia a que sejamos enganados com certa frequência), correu, na cidade onde eu morava (lugarejo aprazível, na encosta da serra, em cuja baía as histórias de fantasmas são uma convenção), a notícia de que no terreno da casa de nhá Arminda vinha brotando um filete de sangue. Curioso, como qualquer garoto da minha idade, ao saber da insólita ocorrência, ouvida da boca de uma das empregadas de casa, abandonei à mesa o prato de comida e saí às carreiras em direção à casa dessa conhecida senhora. Somente quando estava longe e já não podia mais responder, foi que dei pelos gritos desesperados de minha mãe, chamando por mim. Não, eu não podia perder tal acontecimento, bálsamo para uma índole inquieta que se comprazia em buscar nos livros, mormente nas enciclopédias ao meu alcance, palavras como íncubos e súcubos; deleitavam-me as narrativas do grotesco e do arabesco. Onde houvesse alguém disposto a arrepiar os cabelos da nuca de uma criança, ou de espíritos infantis, tenha certeza você de que me encontraria entre os ouvintes. Assim, desde cedo, a convivência com as pessoas ditas incultas era-me muito mais agradável e proveitosa; essa gente traz, da tradição oral, casos que passam a nos acompanhar durante toda a vida. A eles sempre dei crédito, mesmo depois de ingressar na escola primária e os professores, esses estraga prazeres, acharem por bem acabar com minhas fantasias, na vã tentativa de me tornarem normal, mais um materialista.

Ao chegar à casa de nhá Arminda, encontrei-a cheia de curiosos que, assim como eu, queriam ver com os próprios olhos o filete de sangue que do chão brotava. Era uma casa de construção antiga, centenária, de janelas altas, portas dando direto para a rua, mas que, apesar do desleixo na conservação, ainda apresentava em sua aparência o fausto de um tempo há muito deixado para trás, da efervescência econômica de um porto que já foi considerado um dos mais movimentados do País. Entrei pelo portão lateral, no estreito corredor que dava acesso ao terreno dos fundos, tive que forçar passagem com os cotovelos para chegar ao local, onde os adultos analisavam silenciosos, doutorais, o filete vermelho. Sim, tenha certeza de que disso posso dar ciência, pois, com esses olhos que a terra há de tragar (desculpe o lugar-comum, mas não me ocorre no momento expressão mais apropriada), eu também o vi. Alguns cheiravam o ar como cães farejadores, concordando entre si, com movimentos de cabeça, que havia naquele cenário um evidente cheiro de ferrugem. Receosos, aspiravam o ar, mas nenhum deles teve peito de passar o dedo no filete de sangue e cheirá-lo. Devo aqui esclarecer que, apesar do ímpeto juvenil à flor da pele, também não me atrevi a tal ousadia.

Logo, chegou o responsável pelo laboratório de análises clínicas, cidadão respeitável, de paletó preto amarrotado e gravata cinza, torta, alfinete do Rotary Club na lapela. Abriu a maleta de couro, tirou de dentro, tal e qual um Lavoisier, as esperadas lâminas de vidro, dispondo-as displicentemente na calçada, encostou uma dessas lâminas no suspeito filete. Em seguida, guardou-a num reluzente estojo de alumínio. Procedeu assim com outras duas lâminas o nosso cientista de plantão. Sim, somente ele poderia esclarecer a população; era o responsável pelo exame das nossas fezes. E também pela qualidade da água que bebíamos; ele que esclarecera ao prefeito que a diarreia que acometeu, em certa ocasião, a grande maioria dos moradores fora causada pelo cadáver de Maneco Dondinha. Bêbados, seu Maneco e o cavalo teriam contaminado a água, após morrerem afogados no grande reservatório da cidade.

Perguntaram-lhe se era mesmo sangue o filete vermelho que ora brotava do terreno de nhá Arminda.

– Petróleo é que não é – respondeu empertigado, fechando a maleta, nariz empinado, olhando as pessoas do alto dos seus óculos de tartaruga, alisando o bigodinho fino.

– Ué, é sangue ou não é?

– Somente poderei dizê-lo após uma cuidadosa análise.

Nem bem o homem do laboratório se foi, o padre chegou. Pegou a sacola da mão do sacristão e, sem perguntar nada a ninguém, carrancudo, foi logo borrifando água benta em tudo: no terreno, nas árvores, galinhas, nos presentes, enquanto murmurava uma reza arrevesada em latim. Sem nada entender, fazíamos o sinal da cruz a cada parada que ele dava para respirar. Seguimos em direção à casa, nós atrás, a certa distância, o padre na frente. Não entenda isso como covardia da nossa parte, é que se alguma coisa pior acontecesse teríamos o rotundo representante do Senhor como escudo. Já entrou tudo aspergindo, e o povo, cauteloso, do lado de fora. Eu, junto com outro menino, encostado no batente da porta. Borrifou móveis, televisão, o cachorro velho e cego, até a pobre da nhá Arminda que, no momento, rezava um terço. A mulher, enfezada, fez que nem era com ela. Todos sabiam da sua briga com o pároco, não ia mais à igreja desde que ele se recusara a dar os últimos sacramentos ao marido, alegando que o velho Antenógenes era comunista, comedor de criancinhas.

Quando padre e sacristão se foram, muitos ainda ficaram por ali, cheirando o ar, fazendo piadas, bicando um café ralo e doce, surgido sabe-se lá de onde (de dentro da casa é que não tinha vindo), filando cigarros, descontraídos, mas mesmo assim ninguém se atrevia a sequer relar o dedo mínimo no filete vermelho que continuava a escorrer indiferente pelo terreno. Nem mesmo Jesus, o intrépido filho de dona Mariazinha. Porque beber, Jesus bebia, e muito, mas fazia questão de declarar aos quatro ventos que jamais beberia o juízo, e que passar o dedo naquela coisa vermelha, de aparência pegajosa, era uma temeridade brincar com as coisas do Além. Jesus curvou o corpo, em evidente desequilíbrio, na direção do filete, cafungou o ar (alguém fez menção de empurrá-lo), ergueu-se, perscrutou o vazio e disparou:

– Que se isso for sangue, eu como é cum farinha!

– Então, come, se tu é homem! – exclamou um gaiato.

– Eu não, que sangue não se come, se bebe. E, de mais a mais, eu num sou vompiro!

Às seis da tarde, hora da Ave Maria, o ar se tornou mais denso, o odor de ferrugem mais intenso. Com a carícia repentina das franjas do manto da noite, achou-se por bem ir cada um para a sua casa; ninguém é besta de ficar num lugar amaldiçoado quando chegam as trevas. Nem a surra que levei de minha mãe, com galho de goiabeira, foi capaz de acalmar meus nervos. Sem pregar os olhos, aguardei a chegada dos primeiros raios da manhã. Antes que alguém em casa acordasse, saí pé ante pé e retornei ao mistério da casa que vertia sangue. Ao chegar, encontrei ali o carro do Diário do Paraná. Devia ser mesmo um mistério de grande monta, pois mobilizara até um dos jornais da capital. Dentro da casa, dois repórteres falavam com dona Arminda, enquanto a fotógrafa batia várias chapas do intrigante filete vermelho. Coçou ela a cabeça, quando eu lhe disse que cheirasse o ar para perceber o forte odor de ferrugem.

– Enxofre não seria mais apropriado?

– Não, enxofre é catinga de quando o Bode tá por perto. O cheiro de ferrugem vem do corpo de seu Antenógenes, marido da viúva, a quem o padre se recusou a dar extrema-unção. Ele era comunista... – expliquei à moça do jornal.

Depois destes, vieram outros; até gente que não falava a nossa língua, duma fala diferente, polacos, gente da Europa e até da Cortina de Ferro, os tais estrangeiros. Meu tio, entendido em inglês, disse que um dos jornalistas era do New York Times. Imagina só, nossa pequena aldeia ia sair até na imprensa gringa.

Quinze dias depois, seu Bertolotto, o das análises clínicas, informou ao prefeito, que informou à população (embora já soubéssemos), que ele, no seu laboratório, não tinha aparelhagem suficiente para dizer, nem para desdizer, se aquilo que agora escorria pela calçada em frente à casa de nhá Arminda era sangue ou groselha. Inspirado, seu Bertolotto, conhecido como Bebê Babão, invocou as sábias palavras de um filósofo baiano do qual não lembro mais o nome.

– "Dizem que o mel é doce. Se o mel é doce, isso é coisa de que me nego a afirmar, mas que parece doce parece. Isso eu afirmo plenamente".

Daí, foram colhidas novas amostras da substância vermelha e enviadas para um grande laboratório. Como a vida é dinâmica, enquanto o resultado não chegava, os jornalistas voltaram para as suas redações, inclusive os estrangeiros, e os curiosos voltaram aos seus afazeres: jogar sinuca, conversar fiado na barbearia, na farmácia, assistir a uma pelada no campinho. Ah, alguns trabalhavam, mas esses eram tão poucos que nem têm peso nas estatísticas. Eu, por minha vez, apesar da diferença de idades, tornei-me amigo de seu Bertolotto, embora fosse muitas vezes enxotado do laboratório, quando atrapalhava as suas palavras cruzadas com as minhas insistentes perguntas sobre o filete vermelho de sangue, que continuava a verter, sim, com menos intensidade, mas continuava lá, brotando, brilhante, ao sol, com cheiro de ferrugem, para quem quisesse ver ou cheirar. Como um detetive curioso, passei a frequentar a casa de nhá Arminda. Afeiçoou-se tanto a mim a solitária que cheguei a com ela compartilhar do chá com bolachinhas. De início, eu não aceitava. Tinha lá minhas razões: referiam-se a ela como bruxa, diziam que, em noites de lua cheia, a mulher podia ser vista voando numa vassoura de piaçaba, entre outras barbaridades que nem me atrevo a relatar, como rituais sabáticos, presididos pelo próprio Satanás em pessoa, essas perversões que só mentes desocupadas são capazes de engendrar. Mas a doçura da mulher foi, aos poucos, amolecendo minha repulsa inicial, de tal maneira que eu já não compreendia o dia sem o chá de nhá Arminda e o seu sorriso bondoso quando ela me esticava, com mãos trêmulas, o prato com a última bolacha Maizena.

Sete meses depois, o laboratório da capital mandou para o prefeito, aos cuidados de seu Bertolotto, o parecer definitivo sobre o grande mistério da casa que ainda vertia sangue, embora ninguém mais, a não ser eu, o escrevinhador destas linhas, se ocupasse com o fato. Sim, era sangue mesmo! Reboliçou-se novamente o povinho. Por incrível que pareça, mesmo com a confirmação de que era, sem dúvida, um líquido vermelho e viscoso, idêntico ao do organismo humano, não tivemos mais a visita de nenhum jornal, a não ser o Notícias Populares. Notícia é que nem sangue: se é fresco, alarma; coagulado é sinal de que a ferida já virou cicatriz. Assustada com o parecer do laboratório, nhá Arminda consentiu que o terreno fosse cavado, escavado, cavoucado, revolvido para se chegar de uma vez por todas à origem do enigma. Benedito, um negão forte e alto, atlético, corajoso, destemido, trabalhou durante horas, sem descanso, como se estivesse cavando um poço para matar a sede de Nosso Senhor. E nada de chegar à nascente sanguínea, ao mênstruo da terra. Com o de repente da noite, achou-se por bem encerrar as atividades para retomá-las no dia seguinte; Benedito, o infatigável gigante negro teve que ser içado por uma improvisada escada de cordas, de tanto que o homem cavara, escavara, cavoucara e revolvera a terra.

Vó Arminda, assim passei a chamá-la, pediu-me que pernoitasse em sua casa. Devo esclarecer que nem precisei consultar minha família, que já me considerava caso perdido. Nas raras vezes em que eu dormia em casa, a única reação de meus pais era balançar negativamente a cabeça, para lá e para cá. O caso do filete de sangue tinha tomado tal proporção dentro de mim, alma que ameaças e surras já não me faziam medo. Assim, muitas vezes evitei voltar ao lar, dormindo em calçadas, em banco de praça, só para não me afastar do foco de minhas atenções, a casa. Sim, a casa amaldiçoada, pois minha mente suscetível era dada a sonhos diurnos, como se eu fosse usuário de alguma droga, um opiômano, já não sabendo distinguir entre os mundos real e irreal. Esses devaneios eram alimentados por uma droga que eu mesmo gerava dentro de meu ser, de meu corpo, em meu próprio sangue, e que talvez afetasse a capacidade de raciocínio coerente. Sei que não poderia me expor assim, se realmente quisesse a credibilidade do leitor. Estou a pedir demasiado de alguém que sequer me conhece?

Na manhã seguinte, sai do sofá, onde tentei esticar o corpo, conciliar o sono, estremecendo a cada pequeno ruído noturno, imaginando ver, na escuridão da sala, seres os mais escabrosos. Abri a porta da cozinha, lavei o rosto no tanque. Ao olhar em direção ao buraco. um calafrio percorreu a minha espinha de ponta a ponta, os cabelos se eriçaram e, quando dei por mim, estava apavorado, aos gritos, berrando, feito louco, ensandecido, dando socos em minha própria cabeça. Não, eu não podia, recusava-me a crer: o buraco aberto no dia anterior estava fechado, a terra batida, como se ninguém houvesse nela trabalhado. Sem saber o que fazer, corri ao quarto de vó Arminda, para acordá-la. Sem escrúpulos, sacudi-a pelos braços, arranquei-lhe as cobertas. Em pranto, puxei os seus cabelos brancos. Nada da mulher acordar, até que o corpo esquálido despencou da cama. Tudo apagou-se então.

Quando voltei a mim, estava detrás das grades, preso, suspeito de matar a pobre velha. O populacho me acusava de tê-la esfaqueado. Como, se o cadáver não tinha uma única marca de perfuração? À polícia, de tê-la envenenado. Sem provas, menor, boa família, fui liberado. O laudo médico, fornecido pelo Dr. Schölze, amigo de meus pais, atestara morte súbita, parada cardíaca. Durante alguns meses, amarguei os olhares enviesados de meus conterrâneos; com o tempo (este bálsamo que abranda todas as mazelas humanas), fui sendo admitido novamente nos círculos sociais, apesar de perceber que já não me tratavam como antes. Não podiam entender os amigos por que eu me recusara a comparecer ao enterro de dona Arminda. Nem eu mesmo sei dizer o porquê. Quem sabe, a recente experiência com as forças malignas já tivesse batido no limite dos meus nervos esfrangalhados. Ou não seria eu mesmo o culpado da morte da anciã? E se ela estivesse dormindo um sono pesado quando fui chamá-la e, ao despencar da cama, com o impacto da queda, o coração, frágil, gasto, tivesse parado de bater? Então, admitamos, eu posso ser o culpado pela morte da pobre senhora.

Hoje, nem o casarão resta, muito menos o filete vermelho que do terreno brotava. No mesmo local, ao lado da estação rodoviária e da colônia de pescadores, está o Banco Itaú, onde antes funcionou o Banco do Estado, no cruzamento da rua XV de Novembro com a Coronel Marçalo, num prédio novo, de repugnante arquitetura modernosa. Ninguém sequer comenta mais o caso da casa que vertia sangue na tentativa de exorcizar mais um dos nossos demônios urbanos. Sei que os moradores atuais não me dão crédito, mas não morreria eu em paz comigo mesmo e com o Senhor do Altíssimo, nem com o das Profundas, se deixasse o ocorrido por narrar, na qualidade de cronista um tanto apócrifo de uma época que muitos fazem questão de relegar a um passado obscuro e extravagante. Agora, já posso descansar, de consciência tranquila e alma banhada...

terça-feira, 28 de outubro de 2014

MAIS ALGUMAS RECORDAÇÕES DO VELHO BIBLIOTECÁRIO

Edson Negromonte

Durante a convivência com Sven, ambos descobriram a poesia, o adolescente e o velho, embora este não perpetrasse versos, somente os lia, com uma entonação peculiar em determinadas palavras, às vezes em certas frases, inteiras, com a voz pastosa, sempre, como se estivesse cansado, num cantochão algo teatral, como se remoesse pequenas, pequeninas pedras entre os dentes amarelados pelo tabaco. Sua melhor interpretação acontecia em algumas passagens de “A Canção do Velho Marinheiro”, de Coleridge. Ao final, o jovem sempre o aplaudia. calorosamente; a brincadeira fazia parte de um acordo tácito. Apesar das orientações, os primeiros versos do velho bibliotecário ocorreram sob a influência da música popular, dos Beatles, de Dorival Caymmi, coisas como “The Fool on the Hill”, “The Long and Winding Road”, “O Mar”, “O Vento”, “Suíte dos Pescadores”, sem saber que assim estava se afiliando irresponsavelmente à tradição dos antigos trovadores provençais. Veio a descobrir isso somente muitos anos mais tarde, ao tomar contato com a poesia concreta, com as traduções de Arnaut Daniel e Rimbaut d’Aurenga.

Durante o tempo em que conviveu com o velho Sven, a sua paixão contagiou o adolescente (um vírus que não mais o abandonaria: a paixão pelo mar, fosse verde, azul, vermelho ou negro, lodacento ou de águas cristalinas), levando-o a ler obras clássicas na íntegra, dos grandes navegadores, as edições completas, não as recontadas, adaptadas, fáceis de encontrar. Saiu, então, à caça de “Vida e Aventuras de Robinson Crusoé”, em dois volumes, incluindo a breve passagem, como fazendeiro, por terras brasileiras, e “Viagens de Gulliver”, com a quase sempre extirpada passagem pelo país dos houyhnhnms. Viajou a bordo de “Marujos Intrépidos - Uma História dos Grandes Recifes”, lado a lado com Kipling. Deve-se acrescentar também que “Dois Anos de Férias”, de Júlio Verne, levou-o a devanear sobre as possibilidades de se refugiar numa ilha próxima, a do Cardoso, da Cotinga, dos Valadares... Pensando melhor, a ilha das Cobras seria ideal. Podia muito bem morar no farol e escrever, à imitação de Alphonse Daudet, “Poemas do Meu Farol”. Em meio a tais lembranças, veio-lhe, sabe-se lá de que meandros da memória, (ah, como essa fêmea, a memória, prega-nos peças), a palavra “faroleiro”, associada à figura do coelho Pernalonga, encostado num poste, de perna cruzada, roendo uma cenoura. Associou-a imediatamente com uma cena de “Aconteceu Naquela Noite”, com Claudette Colbert e Clark Gable, de orelhas enormes, camiseta e chapéu, também roendo uma cenoura, à imitação do coelho sacana. Assustou-se com a velocidade das imagens, achando que a sua propalada capacidade de fazer pontes entre informações colhidas a esmo, aqui e ali, lá e acolá, não estava assim tão danificada como pensara. Voltou, propositadamente, ao velho Sven, o qual não era tão velho assim quando o conheceu; talvez tivesse por volta de quarenta anos, um pouco mais, um pouco menos. Deu, então, com os olhos na estreita lombada de um livro, sabia que era dele, não conseguia lê-la, então puxou o cordame da memória. O título? Sabia-o perfeitamente, embora não pudesse lê-lo, a vista cansada, mas tinha certeza, “O Menino e o Mar”, sim, de Sven, do velho e bom Sven, todo ambientado na pequena cidade onde o velho bibliotecário voltara a morar após tantos anos de exílio voluntário. Não, jamais saíra do país por problemas políticos; era um exílio auto-imposto, sentimental, cultivado, uma forma de flagelar a si mesmo, entre a consciência e a inconsciência, dentro das fronteiras do próprio país, a terra dos homens-elefante, da elefantíase da memória. Quando, um dia, foi embora dali, no final dos anos 70, ainda não sabia disso. Agora, bem mais velho, estava pondo ordem na casa dos sentimentos, no palácio das emoções, no castelo das recordações, argamassa de areia, cal e óleo de baleia, e sangue, filetes de sangue; tinha agora todo o tempo do mundo naquele emprego, que conseguira graças à intervenção de Candinho.

“O Menino e o Mar” tornara-se um livro paradidático, da Coleção Jovens do Mundo Todo. Por que cargas d’água? Achava nociva a obrigatoriedade da leitura nas escolas. Antes, os meninos podiam sair em liberdade em busca das afinidades eletivas, da educação sentimental, e descortinar novos horizontes, sem as enfadonhas fichas de leitura.

– A leitura como obrigação só faz afastar os jovens dos livros – disse de si para si mesmo. – Hoje, lê-se muito mais nas escolas do que antigamente, mas com que peso a literatura é encarada por esses pequenos leitores, mentes em formação que na idade adulta estarão incapacitadas para abrir as páginas de um bom livro única e exclusivamente por deleite. Odiarão os livros, ao invés de amá-los.

Por sorte, pode se dar ao luxo de prosseguir em leituras erráticas (como um vagabundo tocando em surdina, título de um livro de Knut Hamsun; sua vida estava indissoluvelmente atrelada aos livros), descobrindo bons autores, de acordo com o próprio alvitre, tudo por sua conta e risco, embora Sven torcesse o nariz para certos nomes. O interesse podia vir através de títulos intrigantes ou, até mesmo, da ilustração da capa. Lembrou-se, então, de Monteiro Lobato, que na década de 40, recém-chegado dos Estados Unidos, passou a propagandear o livro como um produto, mercadoria exposta em mercados, farmácias, postos de gasolina, à disposição, como creme dental, sucrilhos e fiambrada. Daí, a ilustração e as cores da capa passarem a fazer parte do produto, diferentemente da política editorial anterior, herdeira da tradição européia, cujas capas eram ricas tipograficamente, mas de embalagem pouco convidativa. Depois de Lobato, a indústria editorial brasileira nunca mais seria a mesma. Digam o que quiserem sobre os seus quiproquós com os modernistas, mas o homem era um visionário. Pode-se até perdoá-lo por ter omitido em sua tradução de “Robinson Crusoé” a passagem do náufrago pelo Brasil.

A chuva não parava, o dia cinzento, convidativo à introspecção, o bibliotecário teve necessidade de firmar os olhos para ler algumas lombadas, numa conhecida brincadeira. Adivinhava-lhes os nomes e não podia mais enganar a si mesmo, sabia que precisava ir urgente ao oculista, lhe pingariam um colírio doloroso e depois o mandariam ler alguma coisa. Não conseguiria, evidentemente. Quem consegue? Lembrou-se então de Borges, o bruxo argentino, cego, pedindo às pessoas que iam visitá-lo no apartamento de Buenos Aires que anotassem os poemas que laboriosamente lapidara durante a noite eterna dos dias anteriores, lembrou-se da irônica personagem do bibliotecário cego do romance “O Nome da Rosa”. Não, não queria esse fim para si mesmo. Mesmo porque não haveria um Eco local para eternizá-lo. Amanhã, iria sem falta ao oculista.

Ao mudar-se para Curitiba, aos 20 anos, o velho bibliotecário passou a frequentar o único sebo da cidade (hoje, a capital paranaense conta com excelentes casas de livros usados). Assim, foi acumulando livros e mais livros no quarto de pensão onde morava. Ao mudar-se para Campinas, quatro grandes malas continham as suas preciosidades livrescas, grande parte em antigas edições de papel jornal, em meio a poucas peças de roupa: uma calça, cinco camisetas, cuecas e uns pares de meias. Esses volumes em papel jornal, que vão se desfazendo sob a ação do tempo, são o retrato da política de Guerra, quando o papel bom, de qualidade, era desviado para as frentes de batalha. Assim, os excelentes títulos da Editora Globo, do Rio Grande do Sul, são hoje encontrados em petição de miséria, desfazendo-se, e a preço de banana. Lembrou-se da gasta edição de “Um Gosto e Seis Vinténs”, a irretocável biografia de Paul Gauguin, de Somerset Maughan, comprada no Sebo do Mosquito, em Florianópolis, pela bagatela de um cruzeiro, na década de 80.

As estantes, em casa, tinham muitos livros de poetas, de poesia, de estudos sobre poesia, de biografias de poetas, em fileiras duplas, a casa era humilde, de poucas paredes, quase todas tomadas pelos livros. A solidão e o amor aos versos levaram-no a publicar dois livros de poesia, aos quais somente os mais chegados tinham acesso. Não que se envergonhasse deles, nem que modesto fosse, mais o medo de parecer arrogante, pois sabia, desde menino, que em terra de cego, quem tem um olho é caolho. Sempre em gestação, tinha um inédito que escrevera e reescrevera várias vezes, não por capricho, nem por excesso de zelo, mas por não ter encontrado editor que por ele se interessasse, também não saíra em busca. Achava o título o máximo: “A Tal da Poesia”, uma traquinagem com “O Tao da Física”, de Fritjof Capra. Agora, pensando bem, a graça do título se esvaíra com o passar do tempo, ninguém mais lançava o tao disso, o tao daquilo. Perdera a oportunidade. Como a poesia lhe era cara, não conseguia entender por que certos prosadores torcem o nariz para a arte poética. Novamente, a teia da memória fazia das suas: o grande escritor William Faulkner, em entrevista à Paris Review, afirmava que todo romancista é um poeta fracassado, que impossibilitado para escrever poemas, tenta a forma do conto e, fracassando na arte da narrativa curta também, faz finalmente a opção pelo romance. Onde lera isso? Será que a grande aranha estava jantando as moscas do seu cérebro? Tinha certeza de que a poesia, a verdadeira poesia, deveria ser, antes de tudo, a arte da concisão, a alta voltagem da palavra, o resgate da língua. Onde lera isso? Em certa época, deixou-se envolver pela poesia visual.

Não publicou nenhum desses poemas, devido ao alto custo dos fotolitos. Mas também ao excesso de elaboração que esse tipo de poesia exige. Passou dez anos burilando um único poema, tridimensional, feito a partir do rótulo da aveia Quaker, onde substituíra o tradicional quacre pela foto de Walt Whitman, descendente de quacres, trabalhando a mesma tipologia, criando outras palavras, outros significados, até completá-lo com chave de ouro. Em vez de “peso líquido: 250g”, “solo líquido: logo”. Extasiou-se ante a própria obra, explicando para si mesmo, como se conversasse com um igual (onde estariam os seus pares?), que o “solo líquido” é o terreno pantanoso da poesia, e “logo” remete ao logos filosófico e, ao mesmo tempo, à razão e ao advérbio de tempo. Tempo, essa abstração tão palpável, nada pantanosa, onde sempre sentira chafurdar os pés. Lembrou-se de um clube barra-pesada da cidadezinha, o qual só existe agora na memória de alguns habitantes, e muito poucos, o Não Tem Tempo, cuja placa encontra-se no gabinete do secretário de cultura, como a cabeça de um leão. Assim foram se atropelando trechos de música, tempo, tempo, tempo, és um senhor tão bonito, como a cara de meu filho, o tempo não para no porto, não apita na curva, não espera ninguém, tempo, tempo, falta um pouco ainda, eu sei, pra você correr macio. Durante certo tempo, também praticou poemas matemáticos, decompondo uma única palavra, trabalhando as inúmeras variações, associações, embaralhando-a, descobrindo novos vocábulos a partir da palavra-matriz. Por exemplo, a decomposição de poesia deu origem ao refrão: e Poe, após o ópio, passeia a pé. Noutra dessas elucubrações, feitas à noite, sob a inspiração de uma bruxuleante lamparina, durante um blecaute, quando toda a cidade ficara às escuras, a palavra nicromante fora decomposta em várias outras, dando origem ao verso "A memória caótica trará à tona o crânio e atônito encontrarei na areia a cimitarra". Ou "Monocrômica, anacrônica, atraente, arcaica, não amei-te ao meio, amei-te à maneira inteira". Percebe-se, assim, a que precipícios chegara a poesia do velho bibliotecário, às raias da rarefação. Sozinho, batera palmas de alegria, como uma criança ao receber um presente, quando descobriu na palavra nicromante o nome da cidade que lhe era tão cara, eternamente deitada aos pés da Serra do Mar, como uma baleia encalhada, decompondo-se, assim como o velho bibliotecário, cetáceo em decomposição; as entranhas, a primeira, a segunda pele, a mais exterior das peles, a mente, a memória, a perda da memória, feitas, construídas, do óleo daquela baleia que, desde o dia da sua chegada à cidade, ele, aos 15 anos, percebera ali parada, julgando-a adormecida, como se baleias pudessem adormecer impunes no raso da maré baixa.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

O DIÁRIO DE BORDO DO GRUMETE FERNANDO SEABRA, DADO À LUZ PELO PROFESSOR MODESTO CASTRO DA SILVA, NO ÚNICO INTUITO DE CLARIFICAR ALGUNS PONTOS OBSCUROS DA HISTÓRIA DO BRASIL

Edson Negromonte

Introdução

O pequeno diário de bordo, aliás, umas poucas folhas, do grumete Fernando Seabra foi encontrado há algum tempo, dois anos e cinco meses, para ser exato, na biblioteca de um amigo, descendente do Barão de Antonina, o mais ilustre historiador das quimeras capelistas, um apaixonado e contumaz colecionador de manuscritos e obras raras da nossa história, principalmente daquilo que se convencionou chamar de proto-história, que deseja permanecer incógnito. Paixão que levou-o já aos confins do mundo em busca das nossas raízes, a lugares ainda ermos e quase selvagens, mesmo nos dias de hoje, em que os homens entendem que já exploraram o que tinha de ser explorado no globo terrestre e se lançam agora a viagens interplanetárias. Assim, se há luz, com certeza a treva se manifestará. Aquilo que os homens de ciência julgam indigno de se debruçar pode ser o depositário mais fiel dos segredos da própria história, daquilo que buscam, e quando o roçam, escarnecem; um simples grão de areia encerraria toda a história da humanidade. O que não dizer, então, de documentos que se julgavam perdidos e, até mesmo, fictícios? Portanto, não me canso de enaltecer a paixão do amigo, a qual tornou-se, para mim, de grande valia.

Este diário de bordo (como resolvi chamá-lo, por conveniência) do dito grumete parecerá para muitos uma falsificação, para outros um engodo. Não pretendo aqui provar a autenticidade de coisa alguma. Para mim, é autêntico e é o que basta, mesmo porque a umidade e os bichos do tempo já se encarregaram de lhe comer boa parte, talvez as mais saborosas, as quais tratei de reconstruir como uma divindade qualquer no alvorecer do mundo, a quem tudo é permitido. Deve-se levar em conta que esta é a transcrição atualizada de um documento dito apócrifo, para leitura mais fluente.

Este pequeno diário de bordo, ou o que dele restou,, tornou-se desde então o meu mar oceano, ao qual dediquei anos a fio, de sonhos, pesadelos e delírios de náufrago, desde o intrincado cavername até o sonho líquido das palavras dos antigos homens marítimos, de delírio renascentista. É o testamento do salitre quinhentista às novas gerações que, assim como os seus antepassados, também passarão os dias nos trapiches, a observar a imensa massa de água salgada a fluir e refluir, no exasperante e monótono vaivém das garrafas lançadas ao mar. Deixando de delongas, passemos à leitura do diário do grumete Fernando Seabra.


Do ocorrido no domingo e na segunda-feira, 8 e 9 de março de 1500.

Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, venho dar conta ao sereníssimo Rei de Portugal D. Manuel I, mas principalmente à gente comum, meus iguais, de tudo quanto vi e ocorreu durante a viagem pelos mares e terras que a Portugal pertencem por ordem e graça do Santo Papa. Peço perdão a El-Rei se as palavras não são adequadas aos vossos finos ouvidos mas a minha escola é pouca e trairia a minha gente, a arraia-miúda, se de outro modo escrevesse, pois outros homens nesta nau; o escrivão Pero Vaz de Caminha ou o capitão-mor Pedro Álvares ou o piloto Pero Escolar ou o cartógrafo João Estrangeiro, dito Mestre João, poderão fazer melhor que este vosso humilde servo. Os homens citados estão melhor preparados a dar conta de melhor maneira sobre os acontecimentos, tanto à Vossa Alteza quanto aos homens cultos; assim sendo, eu, humildemente, peço permissão para relatar tudo o que vi e ouvi em minha viagem ao homem comum, meu igual, pois a palavra justa me faltaria, e não daria eu conta nem ao Senhor Sereníssimo e muito menos ao homem rude das ruas, ávido das aventuras e histórias do além-mar, de tudo quanto estou eu disposto a ver na viagem rumo ao desconhecido. E que a ignorância da pouca idade não me leve à pretensão de me achar tão ou mais importante que qualquer navegante anterior a mim.

Durante muitos dias e noites, e dias e mais noites ainda, como um espião do espírito, estive eu a rondar o porto, a observar o movimento dos barcos, das naus, dos que chegavam, mas principalmente dos que partiam. Os que chegam trazem as novas das terras ao longe, aonde os olhos, por mais que os esforce um forçado, não conseguem jamais divisar, mas toda a vez que uma nau deixava o porto um pouco de mim partia junto com ela. Velas enfunadas revelavam de pronto a agitação dos marinheiros, como se eu mesmo estivesse com eles partindo. De tudo, dos preparativos para a viagem a Calicute, fiquei sabendo pelo falatório das ruas, que meu ouvido é atento e nada perco do que se conta nos becos dessa Lisboa febril, com todo o tipo de gente que tal centro de comércio pode atrair, negociantes, banqueiros, espiões. Sei de tudo, pois ninguém liga muito para um menino curioso; aprendi a ouvir e deveras calar as coisas todas e muitas mais depois de ser abandonado pelo meu pai. Comentava-se nos cantos das hospedarias sobre uma armada de treze naves em direção às Índias e que o próprio Rei D. Manuel, em pessoa, iria à missa de embarque dos corajosos homens; dispostos à descoberta das novas terras, os novos mundos. Diz-se até que de novas gentes, diferentes da nossa. Apesar de isso ter ouvido da boca de marinheiros sempre bêbados, nas tavernas, todos eram unânimes em afirmar que o mundo não é só Lisboa e que essa é a maior armada que já atravessou o oceano, composta de uma naveta para os mantimentos, duas caravelas e dez naus . E disso já o sabia eu. Assim, acorri eu também ao porto de partida, já sentindo na boca o gosto do sal grosso. Lá estava, disso dou parte, o Sereníssimo Rei e creio não estar mentindo se dissesse toda a Lisboa. Como sou pequeno e magriço, fui me intrometendo por entre aquela gente de preto, a qual vai sempre de luto ao embarque dos que ousam enfrentar mares revoltos e monstros marinhos, em luto antecipado, mas nada disso me amedrontou. Apesar dos dezesseis anos, e não conseguindo mais ficar em terra enquanto via tantos conhecidos partindo, e sem conhecimento mínimo de navegação, não saberem sequer a diferença entre bússola e astrolábio, mas devo também dizer que nem eu o sabia até então. Dizem até, à boca miúda, na agora distante Lisboa, que mesmo o Capitão-Mor Pedro Álvares nunca pisara uma embarcação. Perdão a El-Rei se digo asneiras. À noite do dia oito, com lua e céu estrelado, prenúncio de tempo bom, enquanto faziam-se os preparativos para a partida, consegui burlar a vigilância da nau e me embarafustei, feito ratazana, nave adentro, o coração explodindo, mãos trêmulas, de suor pegajoso. Ainda agora, ao disso lembrar, as têmporas me latejam, tudo girava à minha volta na escuridão daquele lugar úmido, o porão. O cheiro do porão é muito forte e dá vontade de vomitar, não sei se por causa desse fedor nojento, pois já deve ter ratos e baratas aqui dentro, apesar de ser novo o navio. Devo confessar que o medo de ser descoberto, pois com certeza seria jogado ao mar, não deixava-me pregar os olhos. Se me descobrissem, sabe-se lá o que me esperaria, além das serpentes marinhas capazes de arrasar uma cidade inteira com um único movimento da cauda, ou coisa pior até. Devo novamente relatar que, antes mesmo da partida, já tinha coisa podre no porão e que o ar não se podia respirar de tão pestilento. A ânsia trouxe de novo o medo quando ouvi os passos de alguém descendo a escada e se aproximando, com uma lanterna na mão. Supliquei à proteção divina que me guardasse, mas a minha respiração ofegante estava muito alta. Tentei parar de respirar, sem erguer os olhos, acocorado num canto escuro. Eu precisava conhecer as terras novas. As histórias que os marinheiros contam das Índias são de encher os olhos do cristão: ouro, prata, especiarias, mulheres seminuas, dançarinas capazes de deixar o homem em êxtase só com um movimento dos quadris. Tantas são as riquezas que tornarão o nosso rei D. Manuel muito mais rico ainda. Para minha sorte, o desgraçado da lanterna acabou indo embora e tanto tempo passou-se que, apesar do cheiro ruim, acabei adormecendo.


Do ocorrido na terça, aos 10 de março de 1500.

Devo dar parte de que acordei com o despenseiro do navio brandindo uma grande faca em minhas faces e gritando para que eu saísse dali, perguntando-me o que estava eu a fazer ali escondido. Pedi que não me matasse, dizendo-lhe que meu pai fora copeiro de El-Rei, ao que ele olhou-me com fúria e disse que eu era o filho de uma rameira. Gritei então com todas as minhas forças que tivesse pena de mim, o filho de um copeiro e uma rameira, na esperança de que outros da tripulação ouvissem e em meu auxílio viessem. O rebuliço foi tal e tamanho que parte da tripulação acorreu ao porão. Não tardou para que um homem, em roupas de veludo e ar de fidalgo aparecesse e os marinheiros logo lhe dessem passagem. Moderado, o uchão falou-lhe que eu deveria ser lançado ao mar, ao que a marinhagem assentiu, temerosa do azar que um latebroso traz às naus. O fidalgo ordenou então que todos se calassem e voltassem aos seus afazeres. Eu fui levado à presença do Capitão-mor, o qual estava em sua cabine, em meio a uma azáfama de mapas vários, em conversação com um outro muito distinto, que depois fiquei sabendo se tratar de João Estrangeiro, dito Mestre João, homem que escreve fluente em variadas línguas e sabe de navegação muito mais que qualquer capitão em toda a esquadra. Pero Vaz, este o nome do fidalgo que trazia-me pelo braço, desculpou-se pela intromissão e apresentou-me como um rato de porão ao Capitão-mor e ao cartógrafo, um clandestino. O Capitão-mor Pedro Álvares olhou-me de cima a baixo, de olhos severos e sobrancelhas espessas. Devo aqui dizer que clamei por piedade que não me jogasse ao mar, porque o sabia homem de bom coração e que eu, na verdade, não queria trazer azar a ninguém, somente conhecer as novas terras de além-mar, pois a vida já tinha sido dura demais comigo, tomando-me cedo a mãe e que duplamente órfão fiquei quando meu pai, copeiro do rei, caíra em desgraça, sendo degredado sabe-se lá para onde, de que não queria mais andar pelas ruas de Lisboa, vivendo da caridade alheia, de que poderia na nau capitânia fazer qualquer tarefa, e compensar a minha fraqueza trabalhando dobrado, de que o capitão-mor me concedesse a chance de servir a El-Rei D. Manuel, o primeiro. Enquanto o Capitão Pedro Álvares observava atento a minha figura, os meus olhos não conseguiam se despregar de uns pedaços de presunto sobre a mesa, os restos do almoço. Enquanto os três homens se entreolhavam e decidiam, a fome era tanta e tamanha que eu ataquei as sobras da mesa do capitão-mor. O meu atrevimento por certo causou dó aos três homens, tanto que fui mandado a ajudar no convés, junto com os outros grumetes da marinhagem. Assim, tornei-me parte efetiva da nau capitânia, de três mastros, chamada São Gabriel.


Do ocorrido nos dias de março de 1500.

Dizem os capitães, que sou todo ouvidos, de uma terra nova antes de Calicute, a qual, segundo Mestre João, já está nos mapas de Pero Vaz Bisagudo. Isso eu sei porque tenho os ouvidos atentos e a boca fechada, sei tudo ouvir e tudo calar. Quatro dias depois da nossa partida, passamos pela ilha das Canárias e seguimos viagem até Cabo Verde, aos 22 dias deste mês de março, com mar calmo, sem contratempos. Mas no dia seguinte, uma das embarcações perdeu-se das outras, a do fidalgo Vasco de Ataíde, também chamado de Taíde e irmão de Pero de Ataíde, o capitão da caravela São Pedro. O capitão-mor Pedro Álvares fez várias buscas à nau do muito honrado Vasco de Ataíde, mas embalde. Era como se o mar houvesse tragado embarcação e toda a tripulação. Seguimos viagem, embora a marinhagem, principalmente o despenseiro, quisesse novamente me jogar ao mar, dizendo ser eu o culpado pela fatalidade de Vasco de Ataíde. Salvou-me ter caído nas graças do capitão-mor, mas principalmente nas boas graças de Pero Vaz, o qual me fizera o seu secretário. Isso quer dizer que eu já não fazia mais o trabalho pesado do tombadilho, o que me dava também certas regalias, como uma comida melhor. Às vezes, partilhava da mesa de Pero Vaz, chegando a beber com ele um copo do seu melhor vinho. Sobre certos homens da equipagem da armada é preciso dar conta à Vossa Sereníssima Majestade, mas principalmente à gente da minha laia, pois que estou cercado de grandes nomes da navegação. O primeiro, a quem muito me afeiçoei, é frei Gaspar, monge franciscano, meu confessor, homem culto, apesar da pouca idade; deve ter por volta de vinte a vinte e dois anos. É um dos religiosos preferidos de frei Henrique de Coimbra, também franciscano e confessor, dizem, de D. João II. Se não fosse a sua intervenção também a meu favor, frente à marinhagem, que o tem em muito boa conta, teria eu virado comida dos monstros marinhos, durante algum descuido noturno. Entre os capitães, tenho muito apreço por Bartolomeu Dias e seu irmão Diogo, ambos de muita fama por terem dobrado o Cabo da Boa Esperança, antes das Tormentas. Versado em matemática e astronomia, o intrépido Bartolomeu parece trazer dentro de si uma sombra que, mais cedo ou mais tarde, o levará à morte. Pelo menos, eu assim o vejo, assim como vejo uma grande sombra a pairar sobre as cabeças de quase todos os homens da armada, mas o que mais me causa apreensão é Bartolomeu Dias. Homem digno de ser imitado no trato com os homens, é o vice-comandante Sancho de Tovar, da sota-capitânia El-Rei, e digno de pena é Nuno Leão da Cunha, da Anunciada, visto de viés por toda a equipagem, por estar a serviço de banqueiros florentinos em busca do lucro advindo do tráfico das especiarias, embora todos estejam em busca de riquezas mas ninguém admita. O meu protetor Pero Vaz é homem muito letrado, tem por volta de 50 anos e participou da Batalha de Toro, aos 25 anos de idade; diz ele que fez de mim o seu grumete, o que quer dizer, segundo ele, um criado para lhe servir o vinho. Notícias sobre o capitão-mor serão dadas mais tarde que agora frei Gaspar está a me chamar para as rezas e as nuvens já encobrem a lua.


Do ocorrido a bordo.

A vida a bordo da nau capitânia deve ser a mesma das outras naus, quando o mar está calmo, como tem estado até o dia de hoje. Os víveres são racionados, e a cada marinheiro compete uma ração para a semana, de carne salgada de porco e peixe, sardinhas e esturjões, biscoitos, água e vinho, queijo, ovos, alho, cebola, uvas passas, às vezes algumas frutas, principalmente os figos, quase sempre destinados ao capitão, ao escrivão e ao piloto. A marinhagem, se comprime no convés à hora de dormir, cada um a seu turno, sendo que os melhores lugares são os mais próximos da proa, onde se está a coberto das vagas. Somente o capitão-mor Pedro Álvares e o escrivão Pero Vaz dispõem de cabines, cada um com a sua. Às vezes me é permitido dormir no chão da cabine de Pero Vaz, meu protetor, em uma alcatifa. O resto dos homens se acomoda como melhor pode, de acordo com a ordem e a hierarquia, sendo destinado ao baixo escalão, quer dizer, os grumetes os piores lugares, de geral próximos à popa, desabrigada e sob o açoite intenso das vagas. Na popa, fica também o balde no qual os oficiais aliviam as tripas, o qual é preso numa corda grossa e é arrastado pela água para a limpeza. À marinhagem são destinadas as assim ditas jardineiras, em número de duas, as quais se encontram na proa, uma de cada lado, e que vem a ser uma tábua com dois buracos onde sentam-se os homens para aliviar as tripas. Limpam-se eles com uma corda grossa, desfiada nas pontas, a qual está sempre limpa, devido a ação da água do mar. Muitos homens da tripulação estão já assados por causa da água salgada. A bexiga se alivia na amurada. Enquanto não se está trabalhando, os mancebos cantam sobre a terra, as saudades da terra, das cachopas, tocando as suas gaitas. A Mestre João apraz distrair a marinhagem com relatos de viagens e a orientação pelas estrelas. Aos marinheiros, apraz ouvi-lo quando não estão entretidos com jogos de dados, os quais são proibidos mas aos quais se faz vista grossa, desde que os homens não se desentendam entre si. Devo dizer que temos bons gaiteiros entre nós, os da tripulação da São Gabriel.


Do ocorrido aos 21 de abril de 1500, terça-feira.

A alegria dos marinheiros foi muito grande ao avistarem botelhos e rabos-de-asno, mais que evidente sinal de terra próxima, conquanto estivéssemos há mais de mês envoltos pela água salgada, em desespero, apesar do tempo quase sempre calmo.


Do ocorrido aos 23 de abril, uma quinta-feira.

Avistou-se terra e isso causou grande alvoroço entre os homens, depois de tanta água, mas de tempo quase sempre bom. Foi descido então um batel para ver que gente era aquela na praia, de corpos nus e pardos. As praias são de muita vegetação, abundante. Devo aqui dar parte que eu, o grumete Fernando Seabra, fui um dos primeiros a por os pés em terra, pois que estava eu no batel também, a mando do capitão-mor Pedro Álvares. À minha frente, somente Nicolau Coelho, experiente navegador que não pode se entender com as gentes do lugar, mais ou menos uns vinte homens, todos nus e de arcos e flechas. A um sinal de Nicolau Coelho, eles deitaram por terra as suas armas. Nicolau Coelho deu a um deles a sua própria carapuça, a qual tirou da própria cabeça, à guisa de entendimento. Deram-lhes eles em troca um sombreiro de penas de papagaio, creio eu, e um cordão de conchas miúdas. Nada nem ninguém conseguia entendê-los e creio que nem eles a gente. Permanecemos entre essa gente até perto do anoitecer, devo acrescentar que com alguma apreensão, posto que são homens muito bem constituídos e que facilmente nos fariam prisioneiros. No dia seguinte, levantou um vento quente, prenúncio de temporal, o que obrigou a armada a buscar abrigo melhor perto de um rio, num porto mais seguro.


Do ocorrido na sexta-feira, dia 24 de abril.

Dois dessa gente de pele parda foram trazidos a bordo da nau capitânia, sob ordens do capitão-mor Pedro Álvares. Eram gentis em gestos e tão inocentes que se assustaram à vista de uma galinha. O capitão-mor tentou com eles se entender através de gestos, embalde. Tentou-se também falar com eles em latim, mas nada nem ninguém pode lhes compreender. Ao cair da tarde, qual infantes, deitaram-se e adormeceram no convés, ao que o capitão-mor mandou cobri-los, posto que as suas vergonhas estavam à mostra e isso causava vergonha a nós, homens acostumados às vestes. Apesar do calor, o capitão trajava veludo, enquanto a marinhagem trabalhava de peito nu e pés descalços. Devo aqui dizer também que essa gente das novas terras parecia a mim tão atraente quanto uma bússola. Fiquei a admirar-lhes por muito tempo o sono calmo e profundo. No dia seguinte, foram levados de volta à terra, onde para pasmo meu estava uma multidão de homens. Entre eles, quatro moças, de vergonhas à mostra, as quais todos os homens se admiravam de olhar e a elas não causava-lhes vergonha o mostrar as próprias vergonhas. De não se poder despregar os olhos das suas vergonhas, e nem mesmo o escrivão Pero Vaz de Caminha, meu protetor, o qual assombrou-se, como nós, os da marinhagem, de serem raspadas. Uma delas chamava a atenção de meus olhos, por ser muito bonita, de cabelos negros, luzidios e longos, que lhe desciam pelas espáduas. Devo aqui dizer que voltei contra a minha vontade à nau capitânia, por ordem de Pero Vaz, e que mesmo ao degredado Afonso Ribeiro não lhe foi permitido o pernoite, por ordem do Capitão, entre aquela gente, que o trouxe de volta à praia. De volta à nau, não pude adormecer, com a vista tomada pela beleza das gentes da terra nova, de pele ora avermelhada, ora de bronze. Faz essa gente muito gosto nos guizos, com os quais são fartamente presenteados por aqueles que vão à terra, para saber do ouro e da prata que se supõe haver mais para dentro, apesar de não usá-los como adorno. Os seus principais enfeites são as penas de aves, várias e desconhecidas para nós, sendo que somente as dos papagaios conhecemos, de vários tamanhos, menores e maiores que uma galinha. Eles têm as penas de aves como uma grande riqueza. Creio que o seu adorno principal é um osso de animal que enfiam no beiço inferior, o qual o atravessa todo, não os impedindo de falar com desenvoltura. As mulheres não trazem adornos, somente poucas pinturas em algumas partes do corpo e nem em todo ele, somente partes dele, mas muitos homens têm o corpo todo pintado.


Do ocorrido em 26 de abril de 1500, no domingo de Páscoa, e nos dias seguintes.

O muito católico capitão-mor Pedro Álvares ordenou que todos os homens assistissem missa num ilhéu, oficiada por frei Henrique, sobre o achamento
dessa terra. Todos os homens lá estavam, ouvindo a pregação com devoção, enquanto a gente da terra folgava na praia. A gente do lugar é amigável e a mim parece o paraíso terrestre, com vergonhas à mostra e sem pecados. Fazem eles questão de nos oferecer os seus bens mais preciosos, como penas coloridas de aves, conchas muito brancas, pedras coloridas e frutas de sabores que nunca tínhamos provado. Em tudo nos imitam e alguns de nós os imitam também, principalmente quando fazem algazarra, o que não é do agrado do capitão Pedro Álvares. Vossa Alteza, creio eu, faria gosto em ver os homens de vossa marinhagem com os corpos também pintados de vermelho e preto, a folgar entre essa gente. A alguns dos vossos marinheiros é concedido pelos capitães permanecer em terra entre eles, o que eles não permitem. Não sei porquê, mas ao anoitecer, somos levados de volta à praia e obrigados a dormir em nossas naus. Assim, passo os meus dias entre a gente da terra, em companhia de outro grumete, da nau Trindade, chamado Simeão. O fidalgo Pero Vaz está a escrever uma longa carta destinada ao nosso Sereníssimo Rei, D. Manuel I, a qual será levada por Gaspar de Lemos, o comandante da naveta. Sobre o capitão Pedro Álvares, tenho intenção de escrever algo nos próximos dias, posto que, apesar de muito sério e de poucas palavras, somente as necessárias, é do meu agrado. A ele, há de se fazer justiça. Por crer que não me reste mais tempo, pois a minha fuga já está planejada, juntamente com Simeão, da Trindade, devo então dizer que o capitão-mor é homem de princípios, todos dele dependem, pois a todos ouve, sempre avaliando as palavras dos seus capitães, com dignidade e interesse. Assim, devo acrescentar que o honrado capitão-mor desta armada, Pedro Álvares, é digno representante de Vossa Alteza, D. Manuel I. Devo ainda aqui dizer que peço perdão pela imprecisão de algumas datas, apesar de Pero Vaz ter-me dando a honra de ser o responsável pela marcação do tempo no relógio de areia desta nau, o qual se encontra em sua cabine. Peço a Vossa Alteza que leve em conta a pouca idade deste seu servo, o grumete Fernando Seabra. Creio que a Mestre João, homem entendido nas estrelas, seria mais cabível essa atribuição do que a rapaz encantado com as belezas da terra.


Do ocorrido nos últimos dias de abril ou no primeiro dia de maio de 1500.

Foi erguida em sítio determinado pelo Capitão uma grande cruz de madeira, a qual contou, além da força de Vossos marinheiros, com a força dos homens da terra, para ser erguida. Entre nossos homens, havia a gente da terra para assistir a missa desta sexta-feira. Entre eles, uma única mulher que, assim como as outras vistas na praia, também trazia nua a sua vergonha. Bartolomeu Dias ordenou a um dos marinheiros que desse um pano para ela se cobrir, o que não foi de valia pois ao sentar-se a sua vergonha ficava à mostra e disso ela não dava conta. Devo aqui dar parte a El-Rei que eu, assim como muitos outros marinheiros, não pude tirar os olhos dessa mulher e da sua vergonha. Confessado o meu pecado a frei Gaspar, esse religioso homem não se mostrou surpreso com a minha atitude, asseverando que a inocência é um atributo do paraíso, o qual perdemos e jamais conquistaremos, posto que já nascemos com o pecado original. Por qualquer acontecimento, essa gente tem por costume cantar numa algaravia muito próxima a das aves. A eles, me parece, não lhes agrada o som das nossas gaitas, assim como o gosto do nosso vinho, o qual cospem logo fora, com repulsa. É essa gente de tamanha inocência que a mim aprazaria viver entre eles até o último de meus dias, nesta Ilha de Vera Cruz, por obra e graça de Nosso Senhor Jesus Cristo.


CONCLUSÃO

Essas são as últimas palavras escritas do grumete Fernando Seabra, em seu diário improvisado, finalizando este relato que será de grande valia para os estudiosos da história pátria. Num trecho da famosa carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel I, o escrivão oficial da descoberta do Brasil, diz o seguinte: "Creio, Senhor, que com estes dois degredados que aqui ficam, ficarão mais dois grumetes que esta noite se saíram em terra, desta nau, no esquife, fugidos, os quais não retornaram mais. E creio que ficarão aqui porque de manhã, aprazendo a Deus, fazemos nossa partida daqui". Este trecho corrobora a hipótese de que os dois grumetes que resolvem permanecer de livre e espontânea vontade em terras brasileiras são mesmo Fernando Seabra e o seu companheiro de aventuras e desventuras, Simeão, junto com os dois degredados: Afonso Ribeiro, citado nominalmente na carta de Caminha, e mais outro, do qual não se sabe o nome.

A mim, hoje o depositário de confiança deste documento, após a morte de meu amigo, cujo nome permanecerá incógnito, de acordo com a sua vontade, resta o orgulho de trazer alguma luz à problemática do descobrimento da terra brasileira, através das palavras de um mareante que, ao invés de seguir a viagem a Calicute, houve por bem se estabelecer entre os primeiros habitantes desta terra, indo assim contra a corrente histórica pessimista, a qual insiste em fazer do povo brasileiro somente o repositório da sífilis. Asseguro ainda às novas gerações que estes primeiros portugueses que aqui estiveram eram a nata da navegação da época, sendo que Pedro Álvares Cabral, apesar de não ser um navegador experimentado, como bem o mostra o diário do grumete, estava investido como diplomata, uma espécie de embaixador da boa vontade, às ordens de D. Manuel I, o Venturoso, para corrigir as barbaridades anteriores perpetradas pelo impiedoso e controverso Vasco da Gama na Índia. Nunca será suficiente destacar as personalidades de Pero Vaz de Caminha, o responsável pelas primeiras palavras sobre a terra brasileira e os seus primeiros habitantes, cuja carta tornou-se um documento monumental tanto da cultura portuguesa quanto da brasileira, e o grande herói camoniano Bartolomeu Dias, o retrato mais fiel do homem destemido de sua época, presente em “Os Lusíadas”, o grande poema épico português, que viria a falecer justamente nas imediações do Cabo da Boa Esperança, o qual lhe deve o nome, ao cruzá-lo pela segunda vez.




TRANSCRIÇÃO FONÉTICA DO DIÁRIO DE BORDO DO GRUMETE FERNANDO SEABRA


do ocurrido domingo e segda viii e xi de marzo MD

em nombre de noso sñor jesus xto ueño dar oõta ao serenísimo rey de portugal d manuel i pero princ aa jente comu mis iguales de todo o cuanto he visto e he ocurrido durante a viaje per mares y tierras que a portugal pertenecem bajo la ordre y graça do santo papa peso perdaum a el rey si las palabras no saum adecuadas a vosos finos oidos pero a mia escoola eh poca e traio aa mia jente la raia menuda si de otro modo escrepuo pois otros ombres en esa nao o escribaam pero vaas de camjnha o o capitaam moor pero alvares o o piloto pero escolar o o cartografo juan estranjero dito mestre juan poderaum hacer milhor q ese voso umilde seervo haceria os ombres citados estaum en milhor preparo pera dar cõta de milhor manera supra os ocurridos tanto aa vossa alteza cuanto als ombres cultos de la nobresa asi sendo eu umiude pido premisaum pera relatar todo o q he visto e oído em mia viaje al ombre comu meo igual pois o mote justo a mi me fautaba e no dava cõta ni ao sñor serenisimo e mui meno al ombre rude das ruas avido de aventuras y istooreas de alem mar de todo cuanto estoy eu disposto a veer nessa viaje rumo ao desconocido y q a jnoramcia da poca edade no me leve aa pretemsaum de me creer taum o mas jmportante q cual qr marinero anterior a mi mui dias y noutes y dias y noutes mas aymda como um espiaum do spiritu estibe eu a rondear o porto a observar o movimento dos barcos das naos dos q chegabaum pero princ dos q partiaum os q chegaum traem as novas das terras al lomje a onde os ollos por mas q esforse un forsado nõ consegem jamas divisar pero tooda a vez q ua nau dejaba o porto un poco de mi partia yunto co ela velas efunadas revelavaum de pronto a agitasaum dos marineros como se eu mismo estuvisse co eles partindo de todo dos preparativos para a viaje a calecute fiquee sabendo per o falatoorio das ruas q mi oido eh atento y nada perdo do q si cõta en becos desa lisboa febril co todo tipo de jente q tal centro de comeercio pode atraer negociantes banqueros espiaums sei de todo pois ningum liga mui pera um menino curioso apreendi a oir e deberas calar as cosas todas y mui mas despues de seer abandonado por mi padre comentaba se nos cantos das ospedarias de ua armada de xiii naos em direcion aas indias y q o propio rei d manuel en persona ia aa misa de embarque dos corajosos ombres dispostos aa descoberta das novas terras os novos mondos dis se ateh q de novas gentes diferentes da nosa a pesar de iso ter oido da boca de marineros sempre bebedos nas tabernas mas todos eraum unanimes en afirmar q o mondo nõ eh soh lisboa y diso ya o sabia eu asi acurri eu tbm al porto de partida ya sentindo na boca o gusto do sal groso lah estaba disso dou parte o serenisimo rei e creo no estar mentindo si disese toda a lisboa como sou pequeño y magriso fui intromisando me por entre aqela gente de preto a qual vae sempre de luto al embarqe dos q osaum enfrentar mares revoltos y monstros mariños en luto antecipado mas nada diso me amedronta apesar dos xvi anos y no consegindo mas ficar en iterra encuanto veia tantos conocidos partindo y si conocimento de bussula o astrolabio mas debo tbm decir q ni eu lo sabia ateh entaum dicem ateh aa boca menuda na aora distante lisboa q mismo o capitaam moor pedralvares he pisado ua embacassaum perdaum a el rey si digo asnises aa noute do dia viii con luna y ceo estrelado prenuuncio de tempo bom encuanto haciaum se os preparativos pera a partida comsegi burlar a vijilancia da nao e embrafustei me hecho ratazana nave a dentro o corasaum esplodindo maãos treemulas de soor pegajoso aun aora ao de eso lembrar me as teemporas latejaum todo gira aa mia volta na oscuridaum dese logar humido o poraum o olor do poraum eh mui forte e da me voluntad de vomitar no see si por causo dese fedor nojento pois ya debe teer ratos y baratas aqi dentro a pesar de seer nueva a nao debo confesar q o medo de seer descuberto pois o medo de seer jugado al mar no dejava me pregar os ollos si discubrisen me sabe see lah o q ocurria alem das serpientes mariñas capazes de arasar ua ciudade inteira con u so movimiento de cauda o cosa peor ateh debo tbm relatar q amtes mismo da partida ya tenia cosa podre no poraum y q o ar no se podria respirar de tan pestilento a aansia tras de novo o medo cuando oi os pasos de algem descendo a escala y aprosimando se co ua lanterna na maum supliquee aa protesão divina q gardase me pero a mia respirasaum ofegante estaba mui alta tentei parar de respirar sin erger os ollos acocorado nium canto oscuro eu precisaba conocer as terras novas as istooreas q os marineros contaum das indias saum de encher os ollos do cristaum oro prata espesiarias mulleres semi nuas dansarinas de dejar o ombre en estasis soh co un movimiento dos cuadrjs pera mia sorte o desgrasado da lanterna acaboo indo imbora e tan tempo pasoo se q a pesar do olor ruim acabee drumindo


do ocurrido terza x de marzo MD

debo dar parte de q acordee co o dispensero do navio brandindo ua gran faca en mis fauces y gritando pera q eu saise de ali preguntando me o q estaba eu a hacer ali esconsido pedi q no matase me decindo a ele q mi pae tenia sido copeiro de el rey al q ele olloo me co furia e dise q eu era o fillo de ua ramera gritee entaum co todas mi forsas y dise q tuvisse peña de mi o fillo de uu copeiro e uua ramera na spransa d q otros da tripulasaum oisem y en mi ayuda venisem o ribuliso foi tal y tamaño q parte da tripulasaum acorreu ao poraum no tardoo para q u ombre en roopas de veludo y ar hidalgo aparesese y os marineros logo deesee a ele pasaje moderado o uxaum faloo a ele q eu debria ser lansado al mar al q a marinage asentio temerosa do asar q um latebroso trae aas naos o hidalgo ordenoo entaum q todos eles se calasee e voutasee als seos afaseres eu fue levado aa presensa do capitaam moor o cual estaba en su cabina en meo a uma asaafama de variados mapas en conversasaum con uu otro mui distinto q despois fiquee sabendo tratar se de juan estranjero dito mestre juanhombre q escrepue fluente em variadas lengoas y sabe de navegasaum mui mas q cual qr capitaam em toda escuadra pero vaaz ese o nombre do hidalgo q trahia me pelo braso escusoo se a intromisaum e apresentoo me como uu rato de poraum al capitaam moor e al cartografo uu clã destino o capitaam moor pero alvares olloo me de cima a bajo de ollos severos e sobrencellas espesas debo aqi decir q clamee por piedade q no jugase me al mar por q sabia a elehombre de boo corasaum y q eu na verdade no quereia traer mala suerte a ninguna persona somente conocer as novas terras do alem mar pois a vida ya tenia sido dura demas com migo tomando me cedo a madre e q a segda vez orfaum fiquee cuando meu pae copeiro do rey cahiu en desgrasa sendo degredado sabe se lah pera a onde de q no queria mas andar pelas ruas de lisboa vivendo da caridade alleia de q podria na nao capitanea hacer cual qr tarefa y compensar mi tibiesa trabajando dobrado de q o capitaam moor concedese me a cheance de servir a el rey d manuel o primero en cuanto o capitaam pedralvares observava atento mi figura mi ollos no consegiam despregar se de uu pedasos de presunto supra a mesa uu restos do almoso encuanto os iii ombres entre ollavam se y decidiaum a fome era tan y tamana q eu ataqei as sobras da mesa do capitaam moor o meu atrevimento por certo causoo do als iii ombres tanto q fue mandado a ayudar no conves yunto co os otros grumetes da marinage y asi tornee me parte efetiva da nao capitanea de iii mastros llamada san gabriel


do ocurrido nos dias de marzo MD

Dicem uus capitaaes q sou todo oidos de ua terra nova de amtes de calecute a cual seg mestre juan ya esta aas cartas de marear de pero visagudo eso eu see pur q tengo os oidos atentos y a boca hechada see todo oir y todo calar iv dias despois da nosa partida pasamos por la isla das canareas y segimos viaje ateh cabo verde als xxii dias dese mes de marzo co mar calmo sin contra tiempos pero no dia seg ua das embarcasaums perdeeo se das otras a do hidalgo vasco de atayde tbm llamado taide y hermano de pero de atayde o capitaam da carabela san pedro o capitaam moor pedro alvares fes variadas buscas al honrado vasco de atayde pero em balde era como si el mar ouvese tragado embarcasaum y toda a tripulasaum segimos viaje em bora a marinage princ o dispenseiro qisese nov jugar me al mar decindo ser eu o culpado da fatalidade de vasco de atayde salvoo me ter cahido nas gracias do capitaam moor mas principalmente nas boas gracias de pero vaas o cual hiciera me secretario suyo iso qr decir q eu ya no hacia mas o traballo pesado do tombadillo o q me daba certas regalias como ua comida milhor aas veces partillaba tbm da mesa de pero vaas llegando a beber co ele uu copo de seu milhor vino


do ocurrido nos dias de marzo MD

supra certos ombres da eqipage da armada eh presiso dar conta aa vossa serenisima majestade pero principalmente aa gente da mia laia pois q estoo cercado de grandes nombres da navegasaum o primero a q mui afeisoee me eh frei gaspar monje franciscano mi confesor ombre culto a pesar da poca edade debe tener por volta de xx xxii anos eh uu dos religiosos preferidos de frei amriq de coimbra tbm franciscano y confesor dicem de d juan ii si no fose a suya intervesaum tbm a mi favor frente aa marinage q o teem em mui boa conta tenia eu virado comida dos monstruu marinos durante algun descuido noturno amtre os capitaaes tengo mui apreso per bertolomeo dias y seo ermaum diogo ambos de mui fama per haber dobrado o cabo da boa spransa amtes das tormentas versado em artes de mathematica y estremonia o intrepido bertolomeo parece traer dentro de si ua solombra q mas cedo o mas tarde leva ele aa morte pelo menos eu asi vejo a ele asi como veo ua gran sombra a pairar supra as cabezas de casi todos ombres da armada mas o q mas me causa apreesaum eh bartolomeo dias ombre digno de see jmitado eh o capitaam sancho de tovar da sota capitanea el rey y digno de pena eh nuno leo da cuña da anunciada visto de vies per toda a eqipage per estar a serviso de banqeros fiorentinos en busca do lucro ad vindo do trafego das espesiarias em bora todos estejaum em busca das riqesas mas ningun admite o meu protetor pero vaas eh hombre mui letrado tem per volta de l anos e participoo da batalla de toro als xxv anos de edade dice ele q fez de mi o seo grumete o q qr decir seg ele uu criado pera servir le o vino novas sobre o capitaam moor he dadas mas tarde q aora frei gaspar estaa a llamar me pera as rresas y as nubes ya encubreem a luna


do ocurrido a bordo

a vida a bordo da nao capitanea debe ser a misma das otras naos cuando o mar estaa calmo come he estado ateh o dia de hoj os viveres saum racionados y a cada marinero compete ua raçaum para a setimana de carne salgada de porco y pexe sardinas e sturjaum biscoutos agua y vino queso uevos allo cibolla uva pasa aas veces uuas frutas princ os figos casi sempre destinados al capitaam al escribaam y al piloto a marinage comprime se no conves aa ora de drumii cada uu a su turno sendo q os milhores logares saum os mas prosimos da proa onde esta se a coberto das vagas so o capitaam moor pedralvares y o escribaam pero vaas disponem de cabinas cada uu co a suya aas veces eh me permitido drumii no chao da cabina de pero vaas meu protetor em uua alcatifa o resto dos ombres acomoda se como milhor poode en acordo co a ordre y hierarqia sendo destinado ao bajo scalaum qr decir als grumetes os peores logares en general prosimos aa popa sin abrigo y al açote intenso das vagas na popa fica tbm o balde no cual os oficiais aliviam as tripas o cual eh prendido en uua corda grosa e eh arrastado per a agoa pera a limpesa aa marinage saum destinadas as asi llamadas jardineras en numero de duas as cuais jardineras encontraum se na proa uua de cada lado y q veem a ser uua taboa co dous buracos a onde sentaum se os ombres para alivar as tripas limpaum se eles co ua grosa corda desfilada en as pontas a cual estaa sempre limpa debido aa agoa do mar mui ombres da tripulasaum estaum ya asados per causo da agoa salgada en el cuu a vexiga alivia se na amurada emcuanto no estaa se traballando os mancebos cantaum supra a tierra as sodades da tierra das cachopas tocando as gaitas al mestre juan apras distraer a marinage co relatos de viaje y a orientasaum pelas estrelas als marineros apras oir a ele cuando no estaum entertidos co juegos de dados os cuais saum prohibidos mas als cuais hace vista grosa desde q os ombres no desentedaum se amtre eles debo decir q hemos gaiteros buenos amtre nos otros os da tripulasaum da san gabriel


do ocurrido als xxi de abril MD terza

a alegria dos marineros he sido mui grande ao avistar se botellos y rabos de asno mas q evidente synaes de terra prosima com cuanto nos otros hemos estado mas de i mez en meo aa agua salgada en desespero a pesar do tempo casi sempre calmo


do ocurrido als xxiii de abril ua qinta

avistoo se terra e eso causoo gran alvoroso amtre os ombres despois de tãta agoa mas de tempo casi sempre boo foi desido entaum uu batee pera ver q jente era aqela na praya de corpo nudo y pardo as prayas saum de mui vegetasaum abundante debo aqi dar parte q eu o grumete fernando seabra fue uu dos primeros a poner uu pies en tierra pois q estaba eu no batee tbm a mando do capitaam moor pero alvares aa mia frente somente nicolao coello esperiente navegador q no pode se entender co as gentes do logar mas o menos uus xx ombres todos nudos y de arcos y frexas aa uu synao de nicolao coello eles dejaram per terra as armas suyas nicolao coello dee a uu de eles a propia carapusa suya a cual he tirado da cabeza propia aa gisa de entendimento deram eles en troca um sombrero de penas de papagayo creo eu e uu cordaum de aljojas menudas nada ni ningun consegia entender a eles e creo q ni eles aa jente permanecemos amtre esa jente ateh perto da noute debo a crecentar q co alguna aprensaum posto q saum ombres mui bien costituidos y q facil hariam de nos otros prisioneros no dia seg alevantoo se uu vento qente prenuucio de temporal o q obrigoo a armada aa buscar abrigo milhor perto de uu rio en uu porto mas seguro


do ocurrido na sesta, dia xxiv de abril

dous desa jente de piel parda foraum trahidos a bordo da nao capitanea so ordre do capitaam moor pedro alvares eraum jentis en jestos e taum jnocemtes q asustaraum se aa vista de uua galiña o capitaam moor tentoo co eles entender se a traves de jestos de balde tentou se tbm falar co eles en latim mas nada ni ninguno poude a eles entender al quedar a tarde cual infantes deitaraum se e drumiraum no conves al q o capitaam moor mandoo a eles cubrir posto q as vergonzas estabaum aa mostra e eso causaba vergonza a nos otros ombres acostumbrados aas vestes a pesar do calor o capitaam trayaba veludo en cuanto a marinage traballava de pecho nudo e pies descalzos debo aqi decir tbm q esa jente das novas terras parece a mi tan atraente cuanto uua busula qedei a admirar a eles por mui tempo o soño calmo y profundo no dia seg foraum levados de volta aa tierra a onde pera mi pasmo estabaum mas de uua multitude de ombres amtre eles iv moças de vergonzas aa mostra as cuais todos os nosos ombres admiravaum se de ollar y a elas no causaba vergonza oo mostrar as propias vergonzas de no poder se despregar os ollos das vergonzas suyas y ni mismo o escribaam pero vaas de camjnha meu protetor o cual asombroo se como a nos otros os da marinage de he sido çaradas uua de elas llamava a atensaum de meos ollos per ser mui bonita de cabelos neros lusidios y longos q deciaum aa espadoas debo aqi decir q voltee contra mi vontad aa nao capitanea per ordre de pero vaas y q mismo al degredado affonso ribeyro no foi permitido o pernoute per ordre do capitaam amtre aqela jente q trove affonso ribeyro de volta aa praya de volta aa nao no he podido drumir co a vista tomada da belesa das jentes da terra nova de piel ora bermeja ora cor de bronço faz esa jente mui gosto en cascavees co as cuais saum fartamente presentados per aqeles q vaum aa terra pera saber do oro y da plata q supoeemse haber mas por a dentro a pesar de eles no usar ni oro ni plata como adorno uus seos principales enfeites saum as penas das aves variadas y desconocidas para nos otros s q somente as dos papagaios conocemos de vaiados tamaños minores y maoores q uua galiña eles teem as penas das aves como ua grande riquesa creo q o seo adorno principal eh uu oso de animal q enfiaum no beço inferior o cual atravesa o beço todo no impedindo eles de falar co desevoltura as mulleres no trahem adornos someente pocas pitturas en uuas partes do corpo e ni en todo ele somente en partes mas mui ombres tenem o corpo todo pittado


do ocurrido als xxvi de abril MD domingo pascoale y seg

o mui chatholico capitaam moor pedro alvares ordenoo q todos os ombres asistaum misa en uu ilheo oficiada per frei amriq supra o achamento de esa terra todos os ombres lah estabaum oindo a plegasaum co devosaum en cuanto a jente da terra follgaba na praya a gente do logar eh amigaveo y a mim parece a visaum do paradiso co as vergonzas aa mostra y sin pecado hacem eles qestaum de ofrecer a nos otros suus bens mas preciosos como penas coloridas de aves conxas mui blancas pedras coloridas y frutas de sapores q jamas teniaum nos otros probado en todo jmitaum a nos otros y algun de nos otros imitaum a eles tbm princ cuanndo hacem asuada o q no eh do agrado do capitaam pedralvares vosa altesa creo eu haria gosto en veer os ombres de vosa marinage co uus corpos tbm pittados de bermejo y prto a folgar amtre esa gente a algunos dos vosos marineros eh concedido pelos capitaams premanecer en tierra amtre eles o q eles no permitem no see pq mas al anoutecer hemos sido levados de volta aa praya y obligados a drumir en nosas naos asy paso os meos dias amtre a jente da terra en compania de otro grumete da nao trindade llamado simeao o hidalgo pero vaas esta a escrepuer ua longa carta destinada al noso serenisimo rey d manuel i a cual ha de seer levada per gaspar de lemos co mandante da naveta supra o capitaam pedro alvares tengo intensaum de escrepuer algo nos dias prosimos posto q a pesar de mui serio y de pocas palabras somente as necesarias eh do meo agrado a ele haa de hacer se justisa por no creer q reste me mas tempo pois mi fuga ya esta planeada yunto co simeao da trindade debo entaum decir q o capitaam moor eh ombre de pricipios todos dependem de ele pois a todos he oido sempre avalia as palabras dos capitaaems suyos co dignidad y interese asi debo acresentar q o honrado capitaam moor desa armada pedro alvares eh digno representante de vosa altesa d manuel i debo aynda aqi decir q peso perdaum pela imprecisaum de alguuas datas a pesar de pero vaas ter a mi dado a honra de seer o responsavel por a marcaçaum do tempo no reloj de arena desa nao o cual encontra se na cabina de ele peso aa vosa altesa q lebe en cõta a poca edade deste seervo suyo o grumete fernando seabra creo q a mestre juan ombre entendido en estrellas hee mas açertada esa atribuisaum do q a moço encantado co as belesas da terra


do ocurrido nos findos dias de abril o no primero dia de mayo MD

foi ergida en sitio determinado por o capitaam ua gran cruz de madera a cual coontoo alem da forza de vosos marineros co a forza dos ombres da terra para seer ergida amtre nosos ombres habia a jente da terra pera asistir a misa desa sesta amtre eles ua unica muller q asi como las otras vistas na praya tbm trahia nuda a vergonza bertolomeo dias ordenoo a u dos marineros q dese uu pano para ela cobrir se o q no foi de valia pois al sentar se a vergonza suya ficaba aa mostra e diso ela no daba cõta debo aqi dar parte a el rey q eu asi como mui otros marineros no he podido tirar os ollos de supra esa muller y da vergonza suya al confesar mi pecado al frei gaspar ese piedoso ombre no mostroo se sorprendido co mi atitude aseverando q a inocensia eh um atributo do paradiso o cual nosotros perdemos y jamas ha de seer conqistado posto q ya hemos nacido co pecado original por qq acontecimento esa gente teem por costumbre cantar ua algarauja mui parecida co as aves a eles parece me no agrada o soo das nosas gaytas asi como o gosto do noso vino o cual cuspem eles logo fora co repuusa eh esa jente de tamaña jnocemsia q a mi apraz viver amtre eles ateh o ultimo de meos dias en esa isla de vera cruz per obra e gracia de noso sñor jesus xto