por Edson Negromonte
Acordei pensando em Linne... O que terá acontecido com ela? Terá sido adotada por madame Sénégal, a zeladora? Por que eu acordaria preocupado com uma gata mourisca, mesclada de amarelo e branco, que viveu há mais de cem anos? Só porque ela pertencia a Claude Debussy? Bem, sim e não. Alguns dirão que a minha preocupação é apenas uma artimanha, ou quem sabe “pose”, em busca da inspiração que não vem; outros, os de veia literária, me compreenderão, assim espero. Linne presenciou os acontecimentos da posição mais privilegiada, a de voyeuse. Quisera eu ter estado no seu lugar e presenciado todas as cenas de amor entre Claude e Gabrielle Dupin, a doce Gaby, a quase sempre doce Gaby, que surgiu na vida de Claude em um desses acasos que o destino é tão hábil em criar. Antes de Gaby, a única companhia feminina do músico era a gata Linne, resgatada do latão de lixo logo que ele se mudara para o velho prédio, no número 42 da Rue de Londres, próximo à Estação Saint-Lazare, onde alugara o sótão. É claro que, como todas as fêmeas, Linne fez-se notar com um lânguido e cativante miado; Claude, carregado de partituras para transcrição, abraçou-a e, desde esse dia, passou a dividir com ela o seu mísero lar, no segundo andar, cheio de goteiras e nenhuma calefação. Agora, num surto metempsicótico, é melhor deixar que Linne conte a maravilhosa história do tempo que conviveu com Claude Debussy, o mais brilhante e inventivo compositor da música erudita francesa.
“Desde a manhã em que o vi, apaixonei-me por ele, perdidamente, o ar romântico, o andar com a cabeça nas nuvens e, principalmente, as duas suculentas sardinhas que me oferecera logo no primeiro dia. Após essa lauta refeição, eu me enrodilhei na sua cama, ainda desfeita, aliás, sempre desfeita (mesmo após a chegada de Gaby) e ali adormeci, ronronando de felicidade e satisfação. Felicidade por ter encontrado um lar aconchegante, depois de tanto perrengue, e a satisfação da barriga cheia. Ou seria o contrário: a felicidade da barriga cheia e a satisfação de um lar? O que sei é me resolvi a nunca mais sair dali, daquela cama quentinha, do aconchego dos braços de Claude, a segurança de um lar. Sim, a segurança de um lar! Muito embora os poetas apregoem a independência dos gatos, nós também precisamos nos sentir seguros, ter um lugar quentinho para as noites frias de inverno, para nos abrigarmos principalmente da chuva, das nevascas.
“O primeiro Natal que passamos juntos, eu e Claude, fazia um frio terrível, o vento entrava assobiando pelas frestas do sótão, o qual Claude insistia em chamar de mansarda; as goteiras chegavam a congelar, formando, no meio do cômodo, duas horrendas estalactites que mais pareciam os caninos medonhos de um canzarrão. Em meio a isso tudo, reclinado na cama, ao meu lado, Claude musicava uns versos de Paul Verlaine, acho que 'Arietes Oubliées'. Quando o inverno abrandou, Claude pode sair de casa para visitar os editores. Voltou radiante, conseguira vender algumas das suas composições. Como a chegada da primavera deixa as pessoas melhores... Não mais as caras enfezadas do inverno, esse inverno lamacento de Paris. Apesar de prometer a si mesmo que, desta vez, seria previdente, sem torrar em poucos dias o pouco que recebia, chegou em casa, trazendo um vaso com as mais belas tulipas que eu já vi, em vez de comprar um guarda-chuva. Mas quem precisa de guarda-chuva na primavera parisiense? São só uns poucos respingos aqui e ali, uns aguaceiros ocasionais... Era bom, assim as minhas sardinhas matinais estavam garantidas. Um dia, chegou com um chapéu muito estranho, de abas largas, que ninguém, em sã consciência, ousaria usar. Mas não é pedir muito coerência a um gênio? Desde cedo, ainda menino, Claude tinha um gosto extravagante, Enquanto as crianças da sua idade gastavam as economias nos doces mais baratos, guloseimas de baixo preço, ele comprava um bombom finíssimo, de paladar refinado. Assim era Claude; em vez de gastar o que recebera em um aquecedor ou no conserto do telhado, comprava uma caríssima almofada de seda, com motivos japoneses, na qual eu me refestelava, sem nela afiar as unhas, pois, nós, gatos, sabemos muito bem onde podemos ou não nos espreguiçarmos. E numa obra de arte, jamais. Além da arte japonesa, outra paixão de Claude eram os livros; costumava percorrer as barracas às margens do Sena e, evidentemente, gastava nelas o que tinha no bolso. Não sei explicar como, mas as minhas deliciosas sardinhas sempre estiveram garantidas. Às vezes, uma somente, enquanto Claude se alimentava de uma única ração de pão e chá o dia todo. Nessas ocasiões de vacas magras, eu apelava para o coração bondoso de madame Sénégal, que sempre me servia um pratinho de leite. Raras vezes, tive de apelar novamente para as latas de lixo da vizinhança. Mesmo assim, jamais culpei Claude por isso ou aquilo, ou melhor, pelo ronco no estômago. O que ele não podia me dar de comida, prodigalizava em carinho e atenção, contando-me os seus planos. Fomos grandes confidentes. Até o dia em que Gaby se embarafustou sótão adentro, trazendo consigo sua mudança em dois malões e uma arca, abarrotados de roupas finas, enquanto Claude estava fora. Levei um susto daqueles! Então, essa era a causa do sorriso constante do compositor nos últimos dias: uma fêmea da sua espécie. E que fêmea! De início, nos estranhamos quando ela me enxotou de cima de uma das suas caríssimas lingeries, estendidas na cama. E como, apesar do ciúme, desgostar de alguém com o mais belo par de olhos verdes que eu já tinha visto? Sua pele era sedosa como um pêssego maduro. Quando ela me tomou nos braços, tive a intuição de que nos daríamos bem, aliás, muito bem. Se Claude a amava, eu também a amaria, apesar do susto inicial. Pois não é assim com as grandes amizades, com os grandes amores, sempre precedidos de uma aversão inicial? 'Os extremos se tocam', aprendi isso observando um cachorro que mordia o próprio rabo, rodando feito uma carrapeta. Gaby não era como as prostitutas que, vez ou outra, Claude trazia para casa, para a higiene do corpo ou para 'afogar o ganso', como dizem os homens e não os gansos. Não, Gaby era de outra estirpe: uma bela mundana, vinda do interior, à cata de um milionário. Como Paul não tivesse onde cair morto, ela já chegou avisando que permaneceria ali somente três meses, o tempo de seu pretendente rico voltar de uma viagem de negócios. Eu logo percebi que essa estada se prolongaria; esses lampejos repentinos e tão verdadeiros aos quais não damos muita atenção no momento. Como as mulheres se sentem atraídas pelos homens frágeis que não tiveram o carinho materno. E, para elas, Claude era um prato cheio; seus aveludados e intransponíveis olhos negros escondiam o desamparo do gigante, prontos a se apaixonar pela primeira que se enternecesse por ele.
"Como eu bem adivinhara, passaram-se os três meses e nada de Gaby ir embora, de volta ao seu milionário. Se ela admoestava Claude pela falta de senso prático, ela tampouco o tinha também. Em vez de se mudar para a tão almejada vida de luxo e riqueza, ela parecia ter prazer na miséria a que os inventores estão condenados desde o alvorecer da humanidade. Gaby ficava encantada de poder cozinhar para ele, varrer o chão, limpar a fuligem de cima do piano, devido à proximidade da estação ferroviária, lavar as suas roupas, passá-las; uma verdadeira dona de casa, apesar da casa em questão ser um sótão miserável, agora abarrotado com os móveis que ela comprara: dois guarda-roupas para acomodar as suas roupas e uma mesa onde podiam, então, fazer as refeições. Guardadas as proporções, parecia uma família burguesa, com o infalível bichinho de estimação.
“Com a vinda de Gaby, Claude estava agora realmente nas nuvens; nada como a presença feminina em uma casa para torná-la acolhedora, com cortinas e chão encerado, apesar das crateras dos cupins. Nos dias quentes, ela andava pela casa vestindo somente um aventalzinho diminuto, que mal cobria as partes íntimas, para deleite de Claude que, de repente, saía do emaranhado das notas musicais e a atirava na cama. Grande parte da sensualidade da peça 'Prélude à l'après-midi d'un faune', inspirada nos versos de Stéphane Mallarmé, é devida à formosura carnal de Gaby. Claude estava mesmo muito feliz. Gaby usava o arsenal de encantos de que dispõe a mulher não só com Claude, mas nas ocasiões em que fosse necessário. Assim foi com o senhorio, quando este entrou no sótão, apoplético, exigindo receber os aluguéis atrasados. Assim foi também com o alfaiate, que exigia o pagamento imediato dos ternos que tinha feito para Claude. A suavidade da voz de Gaby era capaz de amansar a mais sanguinária das bestas-feras.
'Quando Claude tinha que se ausentar para dar aulas de piano ou visitar os editores, em busca de trabalho, Gaby não sabia o que fazer sozinha dentro de casa. Apanhava uma das suas novelas policiais e tentava ler, indócil, sossegava somente quando distinguia os passos dele na escada. Pulava, então, da cadeira e ia recebê-lo na porta, com beijos e mais beijos, como se tivessem passado um mês sem se ver. Ah, como é lindo o amor! De vez em quando, ela inventava umas idas a Lisieux, para visitar a família. Não sei até que ponto isso era verdade. As fêmeas de qualquer espécie são muito espertas: quando querem trair, traem nas barbas do amante. Isso foi só uma suposição, eu nunca a segui para me certificar. Queria, assim como Claude, tenho certeza, uns dias de paz. Não que viver com Gaby fosse ruim, mas a gente precisa, às vezes, de algum sossego. E a língua de Gaby não dava trégua, onde ela estivesse era uma azáfama, um burburinho, ah, a tagarelice das mulheres. Precisávamos um pouco de paz doméstica. Claude, para compor; eu, para dormir, caçar uns ratos. Com Gaby presente, nada disso era possível. Ao voltar, queria contar tudo o que lhe acontecera, chegava a atropelar as palavras, as faces rosadas, os olhos verdes mais verdes ainda. Claude aproveitara a sua ausência para retomar “Pelléas et Mélisande”, febril, interrompida somente pela visita de Pierre Louÿs, um poeta de boa cepa, grande amigo.
“Foi depois de uma das idas a Lisieux que Gaby começou a se tornar irritadiça, qualquer coisa era motivo para discussão, para brigas. Chegou mesmo a gritar com Claude (como podia alguém erguer a voz com ele?), cobrando-lhe que ganhasse dinheiro com a sua música, que escrevesse canções assobiáveis, que pudessem ser tocadas nos cabarés. Quem ela estava se achando? A mulher dele? Quando Claude voltou de Bruxelas, onde fora visitar o amigo Eugéne Ysaye e levar-lhe alguns exemplares do seu quarteto para cordas, encontrou Gaby arrumando as malas. Sem o seu conhecimento, a louca tinha alugado um apartamento de três quartos, no quinto andar de um prédio à Rue Gustave Doré. Pela primeira vez, vi Claude realmente bravo. Saiu batendo a porta, dizendo que não queria vê-la ali quando voltasse. Depois de uma hora, encontrou-a ainda chorando na cama. Quem resiste às lágrimas de uma mulher, sejam elas falsas ou verdadeiras? Dali a alguns dias, mudaram-se para a casa nova. Eu, como bom felino, dei no pé, desapareci feito fumaça, me escafedi. Foi um tempo muito bom esse que lhes fiz companhia, principalmente a ele, mas algo me dizia que na casa nova eu não seria feliz, perderia a tão prezada liberdade. Daí em diante, soube de Claude somente pelos jornais, mas deixo que outros, com mais propriedade, continuem a história; a minha parte está contada.
“O leitor, atento, deve estar se perguntando por que, nesses anos todos de convivência com Claude, eu nunca o apoquentei com ninhadas de gatinhos. Como todos sabem, os artistas, os de verdade, aqueles que vêm para abalar as estruturas, são seres oriundos das estrelas (e Claude, o maior de todos, viera das mais altas esferas cósmicas) e, sei lá por quê, ele achou que eu era uma fêmea, apesar de ter feito aquele exame constrangedor e desnecessário que os humanos fazem nos gatos, as pernas abertas, para saberem o sexo; bastava ver a quantidade de cores. Se têm três cores, são fêmeas; se forem de duas cores, são machos. Portanto, eu era um belo representante da espécie, apesar de ter passado à história como fêmea”.
Nem sempre, Linne, nem sempre.
(Este conto foi escrito após a leitura de “Clair de Lune”, a biografia romanceada de Claude Debussy, de autoria de Pierre La Mure; Edições Melhoramentos, 1966).
sexta-feira, 25 de julho de 2014
terça-feira, 15 de julho de 2014
MERAQ
por Edson Negromonte
Ao meu neto Vlad
Seu nome era Meraq, embora eu mesmo não tenha certeza disso. Esta foi a única palavra que ele pronunciou e, justamente por isso, Meraq foi, Meraq continuará sendo. É uma possibilidade que muito me apraz, gosto de pensar assim, porque Meraq é uma das estrelas do setestrelo, a constelação da Ursa Maior. Eu era, então, um rapazola de quatorze anos, com a cabeça cheia de curiosidade e o coração ávido por descobertas bizarras e extravagantes, como todos os garotos da minha idade. É, talvez eu fosse um pouco mais bisbilhoteiro que a média desses garotos. Minha imaginação assaz estapafúrdia, reconheço, levava-me a conclusões que outros jamais chegariam ou, melhor, não a exprimiriam, por medo do ridículo. Na primeira tarde em que me instalei naquele banco de madeira, comprido e pesado, como deviam ser todos os bancos de estação, ele já estava ali, já fazia parte da paisagem ferroviária e ninguém o notava mais. Todas as vezes em que,voltando da escola, eu o via sentado, imóvel, assustava-me a sua figura invulgar. Eu o associava às cabeças de pedra da Ilha de Páscoa, a perscrutar o horizonte longínquo. Ou a uma monstruosa gárgula. Seria mais condizente associar sua imagem à de um troll, ser mitológico que oscila entre a grandeza e a pequenez? Na ida para a escola, eu não podia perceber a sua figura quimérica, não que meus olhos ainda estivessem remelentos, devido à poeira noturna neles soprada pelo Senhor dos Sonhos. Não, o Homem da Areia não mais me atormentava, tinha se debandado para os lados do meu irmão mais novo, que ainda acreditava nas suas maldades. É que eu, sempre atrasado, fazia correndo um caminho mais curto, um atalho perigoso, atravessando os quintais da vizinhança para não perder o horário da primeira aula, pulando cercas e sebes, atraindo com isso os latidos dos cães, o desesperado cacarejar das galinhas e o xingamento dos moradores. Nesse tempo, eu me preocupava em chegar cedo à escola, ao Colégio Valle Porto, apesar de detestar aqueles professores cacetes que se julgavam os senhores absolutos das almas dos pequenos escravos, aos quais chamavam eufemisticamente de alunos, aprendizes ou, pior, “meus filhos”. Só se com isso quisessem dizer “filhos da puta”. Na volta, com todo o tempo do mundo à minha disposição, eu fazia questão de passar pela plataforma da estação, bem devagar, disfarçadamente, como se estivesse a admirar a arquitetura de ferro, vinda diretamente da Inglaterra, a fim de investigar aquele vagabundo, de olhar aparentemente vago, deambulante. Não quero, com o termo “vagabundo”; dizer que Meraq fosse um desocupado ou um ocioso; uso-o não de forma pejorativa, mas como os poetas, um “wanderer”, aquele que perambula, faço questão de deixar bem claro. Eu quase parava em frente a ele, mas algo dentro de mim dizia que ainda não era chegada a hora do primeiro contato, que ele podia se assustar e fugir, ou me atacar, quem sabe. Então, eu me veria na contingência de fugir do perigo, escafedendo-me, ou de enfrentá-lo com toda a garbosidade de um rato encurralado, sem a mínima probabilidade de chegar à toca. Ou com a intrepidez dos incas venusianos, que só atacavam National Kid em bando. Como já deve ter dado para perceber, nessa época eu era dado à leitura de quadrinhos de ficção científica, também não perdia um filme desse gênero, seja na TV ou no Cine Ópera, o único cinema da cidade. Por precaução, talvez porque ainda não dispusesse de uma arma de raios laser, adotei a tática de me aproximar dele, de Meraq, devagar, lentamente, sem impor a minha presença, como bom terráqueo. Ou como um terráqueo bom? Assim, passei semanas, quase dois meses (três?), nesse processo que eu já considerava sem resultado. Pelo menos, sem efeito aparente; ele sequer desviava o olhar quando eu atravessava o feixe luminoso dos seus olhos, nem mesmo piscava.
Um dia, desses em que “estamos para o crime”, como se diz, tomei coragem e sentei-me na outra ponta do banco, bem distante, o mais distante possível, que eu não era bobo nem nada. Fiquei encarando-o, melhor, olhando-o de esguelha, como quem não quer nada, analisando o perfil intrigante. Parecia humano, aliás, humanoide, com aquele olhar irritante, porque intrigante, que não só me ignorava, mas a todos os transeuntes. Mas, como eu aprendera, assistindo trocentas vezes a “Vampiros de Almas”, os extraterrestres são muito espertos e capazes de tomar a forma humana com uma perfeição absoluta. Quase absoluta, que eu bem sabia quem eram os invasores ali. Se ele se achava espero, eu era sagaz. Ousadamente, mexi-me no banco, para chamar sua atenção. Funguei, resmunguei, e nada, necas de pitibiriba, não movia um único músculo da face, tal e qual Klaatu. Comecei, então, a assobiar. De início, baixinho, pode-se dizer um sussurro, desses assobios sorrateiros que não querem incomodar ninguém, como fazem os velhos, relembrando velhas canções da juventude distante, que só a eles dizem respeito. Nada! Nem uma contração. Em seguida, assobiei um pouco mais alto. Nada, nem aí. Ignorava-me totalmente, alheio a tudo. Indignado, tomado de coragem, como os covardes ante a inércia do oponente, botei dois dedos na boca, ajeitei a língua e soltei um silvo daqueles, de assustar defunto, porque, sem querer me gabar, eu sou bom nisso: no guardamento da minha avó, meu pai, descrente, pediu que eu desse um estoura-tímpanos desses, o mais estridente possível, no ouvido da morta, para se certificar de que a sogra tinha mesmo esticado as canelas. Posso dizer que fiz o meu melhor, nem eu me julgava capaz de tamanha façanha, assustando todos os parentes e não-parentes presentes, estarrecidos com o silvo lancinante, desequilibrando-os. Quem estava chorando, passou a rir, de maneira incontrolável, um riso nervoso, e quem ria, começou imediatamente a carpir, feito comadre desesperada, com sentimento de culpa. Se tivesse sido gravado, como prova, eu hoje estaria no Livro dos Recordes. A velha, assim como Meraq, permaneceu impassível, nem bola. Somente depois disso, pôde ser lavrado o atestado de óbito, era a comprovação definitiva da morte da minha vovozinha. Contei isso, não porque meu pai desgostasse da mãe de minha mãe, mas porque em nossa família houve, pelo menos, um caso conhecido de catalepsia, com um tio-avô, irmão de vovó, tio Aloísio: contavam que, quando abriram o caixão, após vinte anos do sepultamento, a tampa estava toda arranhada por dentro. Vó Pérola tinha muito medo que a enterrassem viva, meu pai “compartilhava” do temor da sogra, mas por razões diversas. Ora, por que escrevi isso? Pelo que sei, sogra e genro sempre se deram muito bem; ele costumava dizer que vó Pérola era “uma joia de pessoa”. É, podia estar sendo irônico, querendo dizer uma joia falsa, bijuteria. Por um momento, cheguei a pensar que Meraq talvez fosse um morto-vivo. Como alguém podia não se sensibilizar com a potência do meu assobio? Era fazer muito pouco de mim. Enfurecido, levantei-me de supetão.
– Que fique aí, seu zumbi de bosta! Vou jogar bola que ganho mais.
Mas a atração que eu sentia por Meraq era muito maior que o orgulho ferido. Na tarde seguinte, lá estava eu, sentado na beirada do banco, a olhá-lo, pronto para pôr em prática um plano: trazia comigo, no embornal um delicioso sanduíche de lombo de porco, com pasta de amendoim e folhas de rúcula fresquinhas. Que extraterrestre não sucumbe a essa guloseima terráquea? Como eu sei disso? Ora, qualquer menino, nem precisa ser muito esperto, sabe que os alienígenas são incapazes de resistir a um sanduíche de lombo de porco com pasta de amendoim e rúcula, a perdição deles. Seria esta a tentativa definitiva para descobrir se Meraq era marciano ou morto-vivo. No caso de morto-vivo, teria que substituir a iguaria caseira por um lanche do McDonald”s; você sabe como essas criaturas são loucas por shoppings, consequentemente por junk food. Daí, seria mais difícil, moro numa cidade pequena, longe da capital. Mas eu daria um jeito, ah, se daria, quando eu quero alguma coisa, vou até o inferno e peço a bênção ao Diabo. Nem tanto, mas é o que diziam de mim lá em casa.
Então, coloquei o sanduíche no banco, entre mim e Meraq. Fiquei olhando para o vazio, imitando-o, fingindo imitá-lo, mas com um olho no peixe e o outro no gato, dando uma de zarolho. Ele, imóvel. Passaram-se horas, até que o trem das oito apitou, chegando à estação, vindo de Curitiba, depois da baldeação em Morretes. Os passageiros desembarcavam apressados, desesperados, loucos para irem para as suas casas, que um temporal diluviano se anunciava, trovões ribombavam, raios serpenteantes rasgavam a cortina negra do céu, ocasião mais que apropriada para aquele frankenstein tomar vida. Isto é, se, por ventura, um desses raios lhe fendesse a cabeça. Mas nada. Nem uma piscadela. O retinir cristalino do velho sino de bronze da estação trouxe-me de volta ao mundo imediatista dos mortais. Receoso (temeroso?) com a tempestade iminente, sem nenhuma vocação para cientista maluco, achei melhor ir para casa; o aconchego do lar quentinho é o lugar ideal dos pesquisadores da vida fora da Terra. Em situações-limite, descubro que sou mesmo é um competente pesquisador de gabinete. No campo, há sempre o perigo de um ataque de formigas-gigantes ou de abelhas assassinas. Acabei esquecendo, não de propósito, mas pelo Providência, creio eu, o sanduíche intocado no banco da estação.
No dia seguinte, gazeei as aulas e fui bem cedo ao encontro de Meraq. Encontrei-o, como sempre, sentado no mesmo banco, no mesmo lugar, na mesmíssima posição. Acomodei-me um pouco mais próximo dele, um palmo, talvez mais, talvez menos; eu já estava um pouquinho mais confiante. Em mim mesmo e nele também, parecia àquela altura tão inofensivo que se eu mijasse no seu pé não teria reação alguma. Mas, apesar de pensar nessa possibilidade, não fiz isso. Não por consideração ou respeito pelos outros, é que eu ainda não era o feliz proprietário de uma arma laser. Lembrei-me, então do sanduíche que havia esquecido no banco da estação. Não estava mais ali! Algum vira-lata o teria comido? Não, porque esse ceticismo todo? Sim, ele o tinha comido! Ele, Meraq, o alien, o tinha saboreado, talvez até devorado, quando ninguém podia observá-lo. Então, definitivamente, Meraq era um e.t. legítimo. Menos mal, detesto zumbis, são uns consumistas nojentos. Zumbis são alienados, não compreendem os fatores políticos, sociais e culturais que os condicionam e os impulsos íntimos que os levam a agir da maneira que agem. Quando pronunciavam essa palavra (zumbi, argh!) perto de mim, ficava imediatamente ouriçado, pensando que não seria nada mal ter uma 45 à mão para detonar essas criaturas infernais que até hoje me causam um asco de revirar as entranhas. Argh novamente! Desse dia em diante, parei de frequentar as aulas, passava o dia todo com o meu mais novo e dileto amigo. Com ele, apesar do seu mutismo, aprendi muito mais do que já houvera aprendido na escola. A única vez que ele abriu a boca foi para pronunciar “Meraq”. Assim, como já disse, deduzi que Meraq era o seu nome. Talvez nem fosse, mais provável que fosse o seu planeta de origem, ou a sua estrela. Ou um arroto: Meraq! Como Charles Atlas, eu precisava somente de um ponto de apoio no espaço para erguer o mundo e, assim, apoiei-me nessa palavra, Meraq. Para um menino sonhador, afeito às fantasias, o solo líquido do pântano é certamente muito mais firme que o asfalto. Acostumei-me a, todos os dias, levar para ele o sanduíche de lombo de porco com pasta de amendoim e rúcula. Agora, eu já o entregava em suas mãos, éramos amigos, afinal. Sei que éramos amigos íntimos, tenho certeza disso. Logo depois de saborear essa delícia, sem olhar para mim, mas para um ponto indefinível no espaço, o qual, com o tempo, aprendi a localizar, a focalizar, passávamos a conversar mentalmente, uma conversa de hipófise para hipófise, se é que você me compreende, um diálogo espiritual. Como a direção da escola tivesse alertado os meus pais de que eu estava faltando muito às aulas (eles, meus pais, pensavam que eu estivesse indo para o campinho, jogar bola; até um tempo atrás meu sonho era ser jogador de futebol. Por isso, meu pai não se importou muito que eu andasse cabulando aula, sonhava fazer de mim um novo Heleno ou um Garrincha), Meraq me aconselhou a frequentar as aulas durante alguns dias para que não me vigiassem em excesso, senão nossos encontros podiam ir por terra. “Ir por terra”, hahaha, entendeu o calemburgo? Foi, também, por aconselhamento dele que desisti de ser jogador profissional. Cabecear a bola, como eu gostava de fazer, podia afetar a minha glândula hipófise, o único meio de nos comunicarmos. Dei-lhe razão ao constatar a quantidade de débeis mentais que há no futebol, gente incapaz de formar uma frase com início, meio e fim, ou sujeito, verbo e predicado.
Meraq foi o mestre que todos os meninos deveriam ter, seus ensinamentos ampliaram tanto os meus horizontes que se assemelhavam às portas da percepção de William Blake, o poeta inglês que apanhava da mãe por conversar com os anjos. Subentenda-se “anjos” como seres vindos do espaço exterior. Com Meraq, tive as mais incríveis experiências além do meu corpo físico, do meu corpo sideral, comunguei com o Buda interior, penetrei nos recônditos da Terra e fiz contatos de terceiro grau com Júlio Verne e H.G. Wells, aprendi o que é o amor incondicional, meu coração transbordava de amor pela humanidade, embora execrasse o ser humano. Com Meraq, toquei as cordas da harpa celestial. Levou-me também aos reinos inferiores, onde as criaturas choram sem descanso, impediu-me de romper o cordão de prata, mostrou-me as almas envilecidas dos criminosos, levou-me a Cuiabá para conhecer o coronel Fawcett, o qual vive até hoje disfarçado de vivandeiro; apresentou-me a Christopher Marlowe, que me garantiu que jamais tinha existido, a não ser na mente do seu criador, Francis Bacon, acompanhei-o a Nuremberg, para velar o corpo ainda em decomposição de Kaspar Hauser... Meraq jamais admitiu que eu o chamasse de mestre, advertindo-me de que cada homem é o mestre de si mesmo, bastando ouvir a voz silente, quase imperceptível, mas firme, da consciência do Universo. Por muito tempo, eu associei essa voz à de Charlton Heston.
Mas como nada é eterno nessa terra (ou nesta Terra? Ainda hei de desvendar este mistério), um dia, pela manhã, cedinho, não encontrei o camarada Meraq no costumeiro banco. Desesperei-me, sim, sucumbi ao choro da criança que ainda reside em mim, em meu coração eternamente infantil, pois chegara repentinamente o momento, por ele previsto, sem que eu me sentisse preparado, em que eu deveria andar pelas próprias pernas, em que o aprendiz, tendo alcançado o degrau da escada do conhecimento a que o mestre não está preparado para galgar, assim como vem acontecendo com Dante e Virgílio durante séculos, a cada nova leitura, a cada novo leitor, da “Divina Comédia”, vê-se só, sem ninguém a quem recorrer, sem uma mão compassiva, contando somente consigo mesmo, momento crucial em que tantos se acovardam e desistem. Sentei-me desconsolado no velho banco, justamente no lugar que Meraq ocupara, chorando as lágrimas mais sentidas de toda a minha existência. Foi quando o guarda da estação, tocou-me no ombro, com um leve aperto fraternal:
– O seu amigo foi preso, ontem de madrugada...
– O que você tá dizendo?!
– Que ele foi preso ontem de madrugada, a polícia veio aqui e o levou, acusando-o de ter violentado a professorinha Naná...
– Mas isso não é verdade!
– Eu bem que disse à polícia que ele não saía daqui, dia e noite, mas me mandaram calar a boca. Disseram ainda que ele era um merda de um guerrilheiro do Araguaia, matou doze, pode?, que era viviado em crack, traficante, essas coisas...
Todas as minhas tentativas de falar com Meraq, na cadeia, foram inúteis; não lhe era permitido receber visita, foi-lhe negado advogado, nem a banho de sol teve direito. Soube, sete dias depois, pelo soldado Edmur, que deve ser boa gente, apesar de servir às forças de repressão, o qual deve ter se condoído do meu desespero ou, quem sabe, para aumentar o meu sofrimento (há seres das trevas que se alimentam disso, da dor alheia), que Meraq tinha se enforcado na cela, depois de barbarizado em uma sessão de tortura, comandada pelo delegado Fleury em pessoa. Morreu como heroi, sem abrir o bico, sem entregar ninguém. Seu corpo jamais foi reclamado. Contou-me, ainda, o soldado Edmur que Meraq rabiscara, na parede da cela, as palavras MERAQ IZT FRE. Eu sei o que isso significa e jamais revelarei a ninguém, é uma questão de lealdade.
Ao meu neto Vlad
Seu nome era Meraq, embora eu mesmo não tenha certeza disso. Esta foi a única palavra que ele pronunciou e, justamente por isso, Meraq foi, Meraq continuará sendo. É uma possibilidade que muito me apraz, gosto de pensar assim, porque Meraq é uma das estrelas do setestrelo, a constelação da Ursa Maior. Eu era, então, um rapazola de quatorze anos, com a cabeça cheia de curiosidade e o coração ávido por descobertas bizarras e extravagantes, como todos os garotos da minha idade. É, talvez eu fosse um pouco mais bisbilhoteiro que a média desses garotos. Minha imaginação assaz estapafúrdia, reconheço, levava-me a conclusões que outros jamais chegariam ou, melhor, não a exprimiriam, por medo do ridículo. Na primeira tarde em que me instalei naquele banco de madeira, comprido e pesado, como deviam ser todos os bancos de estação, ele já estava ali, já fazia parte da paisagem ferroviária e ninguém o notava mais. Todas as vezes em que,voltando da escola, eu o via sentado, imóvel, assustava-me a sua figura invulgar. Eu o associava às cabeças de pedra da Ilha de Páscoa, a perscrutar o horizonte longínquo. Ou a uma monstruosa gárgula. Seria mais condizente associar sua imagem à de um troll, ser mitológico que oscila entre a grandeza e a pequenez? Na ida para a escola, eu não podia perceber a sua figura quimérica, não que meus olhos ainda estivessem remelentos, devido à poeira noturna neles soprada pelo Senhor dos Sonhos. Não, o Homem da Areia não mais me atormentava, tinha se debandado para os lados do meu irmão mais novo, que ainda acreditava nas suas maldades. É que eu, sempre atrasado, fazia correndo um caminho mais curto, um atalho perigoso, atravessando os quintais da vizinhança para não perder o horário da primeira aula, pulando cercas e sebes, atraindo com isso os latidos dos cães, o desesperado cacarejar das galinhas e o xingamento dos moradores. Nesse tempo, eu me preocupava em chegar cedo à escola, ao Colégio Valle Porto, apesar de detestar aqueles professores cacetes que se julgavam os senhores absolutos das almas dos pequenos escravos, aos quais chamavam eufemisticamente de alunos, aprendizes ou, pior, “meus filhos”. Só se com isso quisessem dizer “filhos da puta”. Na volta, com todo o tempo do mundo à minha disposição, eu fazia questão de passar pela plataforma da estação, bem devagar, disfarçadamente, como se estivesse a admirar a arquitetura de ferro, vinda diretamente da Inglaterra, a fim de investigar aquele vagabundo, de olhar aparentemente vago, deambulante. Não quero, com o termo “vagabundo”; dizer que Meraq fosse um desocupado ou um ocioso; uso-o não de forma pejorativa, mas como os poetas, um “wanderer”, aquele que perambula, faço questão de deixar bem claro. Eu quase parava em frente a ele, mas algo dentro de mim dizia que ainda não era chegada a hora do primeiro contato, que ele podia se assustar e fugir, ou me atacar, quem sabe. Então, eu me veria na contingência de fugir do perigo, escafedendo-me, ou de enfrentá-lo com toda a garbosidade de um rato encurralado, sem a mínima probabilidade de chegar à toca. Ou com a intrepidez dos incas venusianos, que só atacavam National Kid em bando. Como já deve ter dado para perceber, nessa época eu era dado à leitura de quadrinhos de ficção científica, também não perdia um filme desse gênero, seja na TV ou no Cine Ópera, o único cinema da cidade. Por precaução, talvez porque ainda não dispusesse de uma arma de raios laser, adotei a tática de me aproximar dele, de Meraq, devagar, lentamente, sem impor a minha presença, como bom terráqueo. Ou como um terráqueo bom? Assim, passei semanas, quase dois meses (três?), nesse processo que eu já considerava sem resultado. Pelo menos, sem efeito aparente; ele sequer desviava o olhar quando eu atravessava o feixe luminoso dos seus olhos, nem mesmo piscava.
Um dia, desses em que “estamos para o crime”, como se diz, tomei coragem e sentei-me na outra ponta do banco, bem distante, o mais distante possível, que eu não era bobo nem nada. Fiquei encarando-o, melhor, olhando-o de esguelha, como quem não quer nada, analisando o perfil intrigante. Parecia humano, aliás, humanoide, com aquele olhar irritante, porque intrigante, que não só me ignorava, mas a todos os transeuntes. Mas, como eu aprendera, assistindo trocentas vezes a “Vampiros de Almas”, os extraterrestres são muito espertos e capazes de tomar a forma humana com uma perfeição absoluta. Quase absoluta, que eu bem sabia quem eram os invasores ali. Se ele se achava espero, eu era sagaz. Ousadamente, mexi-me no banco, para chamar sua atenção. Funguei, resmunguei, e nada, necas de pitibiriba, não movia um único músculo da face, tal e qual Klaatu. Comecei, então, a assobiar. De início, baixinho, pode-se dizer um sussurro, desses assobios sorrateiros que não querem incomodar ninguém, como fazem os velhos, relembrando velhas canções da juventude distante, que só a eles dizem respeito. Nada! Nem uma contração. Em seguida, assobiei um pouco mais alto. Nada, nem aí. Ignorava-me totalmente, alheio a tudo. Indignado, tomado de coragem, como os covardes ante a inércia do oponente, botei dois dedos na boca, ajeitei a língua e soltei um silvo daqueles, de assustar defunto, porque, sem querer me gabar, eu sou bom nisso: no guardamento da minha avó, meu pai, descrente, pediu que eu desse um estoura-tímpanos desses, o mais estridente possível, no ouvido da morta, para se certificar de que a sogra tinha mesmo esticado as canelas. Posso dizer que fiz o meu melhor, nem eu me julgava capaz de tamanha façanha, assustando todos os parentes e não-parentes presentes, estarrecidos com o silvo lancinante, desequilibrando-os. Quem estava chorando, passou a rir, de maneira incontrolável, um riso nervoso, e quem ria, começou imediatamente a carpir, feito comadre desesperada, com sentimento de culpa. Se tivesse sido gravado, como prova, eu hoje estaria no Livro dos Recordes. A velha, assim como Meraq, permaneceu impassível, nem bola. Somente depois disso, pôde ser lavrado o atestado de óbito, era a comprovação definitiva da morte da minha vovozinha. Contei isso, não porque meu pai desgostasse da mãe de minha mãe, mas porque em nossa família houve, pelo menos, um caso conhecido de catalepsia, com um tio-avô, irmão de vovó, tio Aloísio: contavam que, quando abriram o caixão, após vinte anos do sepultamento, a tampa estava toda arranhada por dentro. Vó Pérola tinha muito medo que a enterrassem viva, meu pai “compartilhava” do temor da sogra, mas por razões diversas. Ora, por que escrevi isso? Pelo que sei, sogra e genro sempre se deram muito bem; ele costumava dizer que vó Pérola era “uma joia de pessoa”. É, podia estar sendo irônico, querendo dizer uma joia falsa, bijuteria. Por um momento, cheguei a pensar que Meraq talvez fosse um morto-vivo. Como alguém podia não se sensibilizar com a potência do meu assobio? Era fazer muito pouco de mim. Enfurecido, levantei-me de supetão.
– Que fique aí, seu zumbi de bosta! Vou jogar bola que ganho mais.
Mas a atração que eu sentia por Meraq era muito maior que o orgulho ferido. Na tarde seguinte, lá estava eu, sentado na beirada do banco, a olhá-lo, pronto para pôr em prática um plano: trazia comigo, no embornal um delicioso sanduíche de lombo de porco, com pasta de amendoim e folhas de rúcula fresquinhas. Que extraterrestre não sucumbe a essa guloseima terráquea? Como eu sei disso? Ora, qualquer menino, nem precisa ser muito esperto, sabe que os alienígenas são incapazes de resistir a um sanduíche de lombo de porco com pasta de amendoim e rúcula, a perdição deles. Seria esta a tentativa definitiva para descobrir se Meraq era marciano ou morto-vivo. No caso de morto-vivo, teria que substituir a iguaria caseira por um lanche do McDonald”s; você sabe como essas criaturas são loucas por shoppings, consequentemente por junk food. Daí, seria mais difícil, moro numa cidade pequena, longe da capital. Mas eu daria um jeito, ah, se daria, quando eu quero alguma coisa, vou até o inferno e peço a bênção ao Diabo. Nem tanto, mas é o que diziam de mim lá em casa.
Então, coloquei o sanduíche no banco, entre mim e Meraq. Fiquei olhando para o vazio, imitando-o, fingindo imitá-lo, mas com um olho no peixe e o outro no gato, dando uma de zarolho. Ele, imóvel. Passaram-se horas, até que o trem das oito apitou, chegando à estação, vindo de Curitiba, depois da baldeação em Morretes. Os passageiros desembarcavam apressados, desesperados, loucos para irem para as suas casas, que um temporal diluviano se anunciava, trovões ribombavam, raios serpenteantes rasgavam a cortina negra do céu, ocasião mais que apropriada para aquele frankenstein tomar vida. Isto é, se, por ventura, um desses raios lhe fendesse a cabeça. Mas nada. Nem uma piscadela. O retinir cristalino do velho sino de bronze da estação trouxe-me de volta ao mundo imediatista dos mortais. Receoso (temeroso?) com a tempestade iminente, sem nenhuma vocação para cientista maluco, achei melhor ir para casa; o aconchego do lar quentinho é o lugar ideal dos pesquisadores da vida fora da Terra. Em situações-limite, descubro que sou mesmo é um competente pesquisador de gabinete. No campo, há sempre o perigo de um ataque de formigas-gigantes ou de abelhas assassinas. Acabei esquecendo, não de propósito, mas pelo Providência, creio eu, o sanduíche intocado no banco da estação.
No dia seguinte, gazeei as aulas e fui bem cedo ao encontro de Meraq. Encontrei-o, como sempre, sentado no mesmo banco, no mesmo lugar, na mesmíssima posição. Acomodei-me um pouco mais próximo dele, um palmo, talvez mais, talvez menos; eu já estava um pouquinho mais confiante. Em mim mesmo e nele também, parecia àquela altura tão inofensivo que se eu mijasse no seu pé não teria reação alguma. Mas, apesar de pensar nessa possibilidade, não fiz isso. Não por consideração ou respeito pelos outros, é que eu ainda não era o feliz proprietário de uma arma laser. Lembrei-me, então do sanduíche que havia esquecido no banco da estação. Não estava mais ali! Algum vira-lata o teria comido? Não, porque esse ceticismo todo? Sim, ele o tinha comido! Ele, Meraq, o alien, o tinha saboreado, talvez até devorado, quando ninguém podia observá-lo. Então, definitivamente, Meraq era um e.t. legítimo. Menos mal, detesto zumbis, são uns consumistas nojentos. Zumbis são alienados, não compreendem os fatores políticos, sociais e culturais que os condicionam e os impulsos íntimos que os levam a agir da maneira que agem. Quando pronunciavam essa palavra (zumbi, argh!) perto de mim, ficava imediatamente ouriçado, pensando que não seria nada mal ter uma 45 à mão para detonar essas criaturas infernais que até hoje me causam um asco de revirar as entranhas. Argh novamente! Desse dia em diante, parei de frequentar as aulas, passava o dia todo com o meu mais novo e dileto amigo. Com ele, apesar do seu mutismo, aprendi muito mais do que já houvera aprendido na escola. A única vez que ele abriu a boca foi para pronunciar “Meraq”. Assim, como já disse, deduzi que Meraq era o seu nome. Talvez nem fosse, mais provável que fosse o seu planeta de origem, ou a sua estrela. Ou um arroto: Meraq! Como Charles Atlas, eu precisava somente de um ponto de apoio no espaço para erguer o mundo e, assim, apoiei-me nessa palavra, Meraq. Para um menino sonhador, afeito às fantasias, o solo líquido do pântano é certamente muito mais firme que o asfalto. Acostumei-me a, todos os dias, levar para ele o sanduíche de lombo de porco com pasta de amendoim e rúcula. Agora, eu já o entregava em suas mãos, éramos amigos, afinal. Sei que éramos amigos íntimos, tenho certeza disso. Logo depois de saborear essa delícia, sem olhar para mim, mas para um ponto indefinível no espaço, o qual, com o tempo, aprendi a localizar, a focalizar, passávamos a conversar mentalmente, uma conversa de hipófise para hipófise, se é que você me compreende, um diálogo espiritual. Como a direção da escola tivesse alertado os meus pais de que eu estava faltando muito às aulas (eles, meus pais, pensavam que eu estivesse indo para o campinho, jogar bola; até um tempo atrás meu sonho era ser jogador de futebol. Por isso, meu pai não se importou muito que eu andasse cabulando aula, sonhava fazer de mim um novo Heleno ou um Garrincha), Meraq me aconselhou a frequentar as aulas durante alguns dias para que não me vigiassem em excesso, senão nossos encontros podiam ir por terra. “Ir por terra”, hahaha, entendeu o calemburgo? Foi, também, por aconselhamento dele que desisti de ser jogador profissional. Cabecear a bola, como eu gostava de fazer, podia afetar a minha glândula hipófise, o único meio de nos comunicarmos. Dei-lhe razão ao constatar a quantidade de débeis mentais que há no futebol, gente incapaz de formar uma frase com início, meio e fim, ou sujeito, verbo e predicado.
Meraq foi o mestre que todos os meninos deveriam ter, seus ensinamentos ampliaram tanto os meus horizontes que se assemelhavam às portas da percepção de William Blake, o poeta inglês que apanhava da mãe por conversar com os anjos. Subentenda-se “anjos” como seres vindos do espaço exterior. Com Meraq, tive as mais incríveis experiências além do meu corpo físico, do meu corpo sideral, comunguei com o Buda interior, penetrei nos recônditos da Terra e fiz contatos de terceiro grau com Júlio Verne e H.G. Wells, aprendi o que é o amor incondicional, meu coração transbordava de amor pela humanidade, embora execrasse o ser humano. Com Meraq, toquei as cordas da harpa celestial. Levou-me também aos reinos inferiores, onde as criaturas choram sem descanso, impediu-me de romper o cordão de prata, mostrou-me as almas envilecidas dos criminosos, levou-me a Cuiabá para conhecer o coronel Fawcett, o qual vive até hoje disfarçado de vivandeiro; apresentou-me a Christopher Marlowe, que me garantiu que jamais tinha existido, a não ser na mente do seu criador, Francis Bacon, acompanhei-o a Nuremberg, para velar o corpo ainda em decomposição de Kaspar Hauser... Meraq jamais admitiu que eu o chamasse de mestre, advertindo-me de que cada homem é o mestre de si mesmo, bastando ouvir a voz silente, quase imperceptível, mas firme, da consciência do Universo. Por muito tempo, eu associei essa voz à de Charlton Heston.
Mas como nada é eterno nessa terra (ou nesta Terra? Ainda hei de desvendar este mistério), um dia, pela manhã, cedinho, não encontrei o camarada Meraq no costumeiro banco. Desesperei-me, sim, sucumbi ao choro da criança que ainda reside em mim, em meu coração eternamente infantil, pois chegara repentinamente o momento, por ele previsto, sem que eu me sentisse preparado, em que eu deveria andar pelas próprias pernas, em que o aprendiz, tendo alcançado o degrau da escada do conhecimento a que o mestre não está preparado para galgar, assim como vem acontecendo com Dante e Virgílio durante séculos, a cada nova leitura, a cada novo leitor, da “Divina Comédia”, vê-se só, sem ninguém a quem recorrer, sem uma mão compassiva, contando somente consigo mesmo, momento crucial em que tantos se acovardam e desistem. Sentei-me desconsolado no velho banco, justamente no lugar que Meraq ocupara, chorando as lágrimas mais sentidas de toda a minha existência. Foi quando o guarda da estação, tocou-me no ombro, com um leve aperto fraternal:
– O seu amigo foi preso, ontem de madrugada...
– O que você tá dizendo?!
– Que ele foi preso ontem de madrugada, a polícia veio aqui e o levou, acusando-o de ter violentado a professorinha Naná...
– Mas isso não é verdade!
– Eu bem que disse à polícia que ele não saía daqui, dia e noite, mas me mandaram calar a boca. Disseram ainda que ele era um merda de um guerrilheiro do Araguaia, matou doze, pode?, que era viviado em crack, traficante, essas coisas...
Todas as minhas tentativas de falar com Meraq, na cadeia, foram inúteis; não lhe era permitido receber visita, foi-lhe negado advogado, nem a banho de sol teve direito. Soube, sete dias depois, pelo soldado Edmur, que deve ser boa gente, apesar de servir às forças de repressão, o qual deve ter se condoído do meu desespero ou, quem sabe, para aumentar o meu sofrimento (há seres das trevas que se alimentam disso, da dor alheia), que Meraq tinha se enforcado na cela, depois de barbarizado em uma sessão de tortura, comandada pelo delegado Fleury em pessoa. Morreu como heroi, sem abrir o bico, sem entregar ninguém. Seu corpo jamais foi reclamado. Contou-me, ainda, o soldado Edmur que Meraq rabiscara, na parede da cela, as palavras MERAQ IZT FRE. Eu sei o que isso significa e jamais revelarei a ninguém, é uma questão de lealdade.
terça-feira, 8 de julho de 2014
A LOISLEINE DA RUA XV
por Edson Negromonte
Como não concordar com os caras da turma? Nunca houve Lois Lane mais bonita que a Loisleine da Rua XV. Não dava bola para a gente, sabia que, um dia, seria repórter de A Gazeta do Povo, onde encontraria o Super-homem, disfarçado de Carlos Quente, por trás dos óculos de aro de tartaruga. Com ele, viveria as mais românticas aventuras, dignas dos quadrinhos que lia, sentada na poltrona em frente à TV, os pezinhos delicados, de gueixa, para cima. A Loisleine da Rua XV não fazia nem de longe o tipo submisso, apesar de frequentemente se envolver com os piores vilões do espaço sideral, os quais, a gente sabe, não admitem mulheres de pensamento independente, que sabem manejar com destreza o sabre das ideias. Descendente de imigrantes poloneses, Loisleine era a queridinha do papai Rajmund, mas quem não tirava os olhos de cima da menina era o tio Roman, um mestre do nanquim, que a desenhou nas mais diversas poses, fazendo carinhas e boquinhas. Às vezes, tio Roman aumentava um pouco os atributos físicos da sobrinha, o que não lhe ficava mal. Papai Rajmund escrevia poesia de ficção científica, sob o título genérico de “Metrópolis: “Metrópolis 1”, “Metrópolis 2”, “Metrópolis 18”... uma saga criptoniana, que atingiu o número atômico 36 multiplicado por 10. Quando chegou ao número fluorescente, ele deu início à série “Liebling”, a qual não completou. Nunca foram publicadas, sequer no pasquim local, mas isso não o impedia de continuar a escrevê-las, aos montes, aos magotes. Rajmund e Roman viviam às turras. Somente num ponto os dois estavam de acordo: a beleza inquestionável de Rosalind Russell, uma antiga atriz do cinema americano, que morreu em 28 de novembro de 1976, em Beverly Hills, de um câncer no seio, e nunca soube da existência de papai Rajmund e do tio Roman. “Chamam a isto amor”.
Como não concordar com os caras da turma? Nunca houve Lois Lane mais bonita que a Loisleine da Rua XV. Não dava bola para a gente, sabia que, um dia, seria repórter de A Gazeta do Povo, onde encontraria o Super-homem, disfarçado de Carlos Quente, por trás dos óculos de aro de tartaruga. Com ele, viveria as mais românticas aventuras, dignas dos quadrinhos que lia, sentada na poltrona em frente à TV, os pezinhos delicados, de gueixa, para cima. A Loisleine da Rua XV não fazia nem de longe o tipo submisso, apesar de frequentemente se envolver com os piores vilões do espaço sideral, os quais, a gente sabe, não admitem mulheres de pensamento independente, que sabem manejar com destreza o sabre das ideias. Descendente de imigrantes poloneses, Loisleine era a queridinha do papai Rajmund, mas quem não tirava os olhos de cima da menina era o tio Roman, um mestre do nanquim, que a desenhou nas mais diversas poses, fazendo carinhas e boquinhas. Às vezes, tio Roman aumentava um pouco os atributos físicos da sobrinha, o que não lhe ficava mal. Papai Rajmund escrevia poesia de ficção científica, sob o título genérico de “Metrópolis: “Metrópolis 1”, “Metrópolis 2”, “Metrópolis 18”... uma saga criptoniana, que atingiu o número atômico 36 multiplicado por 10. Quando chegou ao número fluorescente, ele deu início à série “Liebling”, a qual não completou. Nunca foram publicadas, sequer no pasquim local, mas isso não o impedia de continuar a escrevê-las, aos montes, aos magotes. Rajmund e Roman viviam às turras. Somente num ponto os dois estavam de acordo: a beleza inquestionável de Rosalind Russell, uma antiga atriz do cinema americano, que morreu em 28 de novembro de 1976, em Beverly Hills, de um câncer no seio, e nunca soube da existência de papai Rajmund e do tio Roman. “Chamam a isto amor”.
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