sexta-feira, 25 de julho de 2014

LINNE

por Edson Negromonte


Acordei pensando em Linne... O que terá acontecido com ela? Terá sido adotada por madame Sénégal, a zeladora? Por que eu acordaria preocupado com uma gata mourisca, mesclada de amarelo e branco, que viveu há mais de cem anos? Só porque ela pertencia a Claude Debussy? Bem, sim e não. Alguns dirão que a minha preocupação é apenas uma artimanha, ou quem sabe “pose”, em busca da inspiração que não vem; outros, os de veia literária, me compreenderão, assim espero. Linne presenciou os acontecimentos da posição mais privilegiada, a de voyeuse. Quisera eu ter estado no seu lugar e presenciado todas as cenas de amor entre Claude e Gabrielle Dupin, a doce Gaby, a quase sempre doce Gaby, que surgiu na vida de Claude em um desses acasos que o destino é tão hábil em criar. Antes de Gaby, a única companhia feminina do músico era a gata Linne, resgatada do latão de lixo logo que ele se mudara para o velho prédio, no número 42 da Rue de Londres, próximo à Estação Saint-Lazare, onde alugara o sótão. É claro que, como todas as fêmeas, Linne fez-se notar com um lânguido e cativante miado; Claude, carregado de partituras para transcrição, abraçou-a e, desde esse dia, passou a dividir com ela o seu mísero lar, no segundo andar, cheio de goteiras e nenhuma calefação. Agora, num surto metempsicótico, é melhor deixar que Linne conte a maravilhosa história do tempo que conviveu com Claude Debussy, o mais brilhante e inventivo compositor da música erudita francesa.
“Desde a manhã em que o vi, apaixonei-me por ele, perdidamente, o ar romântico, o andar com a cabeça nas nuvens e, principalmente, as duas suculentas sardinhas que me oferecera logo no primeiro dia. Após essa lauta refeição, eu me enrodilhei na sua cama, ainda desfeita, aliás, sempre desfeita (mesmo após a chegada de Gaby) e ali adormeci, ronronando de felicidade e satisfação. Felicidade por ter encontrado um lar aconchegante, depois de tanto perrengue, e a satisfação da barriga cheia. Ou seria o contrário: a felicidade da barriga cheia e a satisfação de um lar? O que sei é me resolvi a nunca mais sair dali, daquela cama quentinha, do aconchego dos braços de Claude, a segurança de um lar. Sim, a segurança de um lar! Muito embora os poetas apregoem a independência dos gatos, nós também precisamos nos sentir seguros, ter um lugar quentinho para as noites frias de inverno, para nos abrigarmos principalmente da chuva, das nevascas.
“O primeiro Natal que passamos juntos, eu e Claude, fazia um frio terrível, o vento entrava assobiando pelas frestas do sótão, o qual Claude insistia em chamar de mansarda; as goteiras chegavam a congelar, formando, no meio do cômodo, duas horrendas estalactites que mais pareciam os caninos medonhos de um canzarrão. Em meio a isso tudo, reclinado na cama, ao meu lado, Claude musicava uns versos de Paul Verlaine, acho que 'Arietes Oubliées'. Quando o inverno abrandou, Claude pode sair de casa para visitar os editores. Voltou radiante, conseguira vender algumas das suas composições. Como a chegada da primavera deixa as pessoas melhores... Não mais as caras enfezadas do inverno, esse inverno lamacento de Paris. Apesar de prometer a si mesmo que, desta vez, seria previdente, sem torrar em poucos dias o pouco que recebia, chegou em casa, trazendo um vaso com as mais belas tulipas que eu já vi, em vez de comprar um guarda-chuva. Mas quem precisa de guarda-chuva na primavera parisiense? São só uns poucos respingos aqui e ali, uns aguaceiros ocasionais... Era bom, assim as minhas sardinhas matinais estavam garantidas. Um dia, chegou com um chapéu muito estranho, de abas largas, que ninguém, em sã consciência, ousaria usar. Mas não é pedir muito coerência a um gênio? Desde cedo, ainda menino, Claude tinha um gosto extravagante, Enquanto as crianças da sua idade gastavam as economias nos doces mais baratos, guloseimas de baixo preço, ele comprava um bombom finíssimo, de paladar refinado. Assim era Claude; em vez de gastar o que recebera em um aquecedor ou no conserto do telhado, comprava uma caríssima almofada de seda, com motivos japoneses, na qual eu me refestelava, sem nela afiar as unhas, pois, nós, gatos, sabemos muito bem onde podemos ou não nos espreguiçarmos. E numa obra de arte, jamais. Além da arte japonesa, outra paixão de Claude eram os livros; costumava percorrer as barracas às margens do Sena e, evidentemente, gastava nelas o que tinha no bolso. Não sei explicar como, mas as minhas deliciosas sardinhas sempre estiveram garantidas. Às vezes, uma somente, enquanto Claude se alimentava de uma única ração de pão e chá o dia todo. Nessas ocasiões de vacas magras, eu apelava para o coração bondoso de madame Sénégal, que sempre me servia um pratinho de leite. Raras vezes, tive de apelar novamente para as latas de lixo da vizinhança. Mesmo assim, jamais culpei Claude por isso ou aquilo, ou melhor, pelo ronco no estômago. O que ele não podia me dar de comida, prodigalizava em carinho e atenção, contando-me os seus planos. Fomos grandes confidentes. Até o dia em que Gaby se embarafustou sótão adentro, trazendo consigo sua mudança em dois malões e uma arca, abarrotados de roupas finas, enquanto Claude estava fora. Levei um susto daqueles! Então, essa era a causa do sorriso constante do compositor nos últimos dias: uma fêmea da sua espécie. E que fêmea! De início, nos estranhamos quando ela me enxotou de cima de uma das suas caríssimas lingeries, estendidas na cama. E como, apesar do ciúme, desgostar de alguém com o mais belo par de olhos verdes que eu já tinha visto? Sua pele era sedosa como um pêssego maduro. Quando ela me tomou nos braços, tive a intuição de que nos daríamos bem, aliás, muito bem. Se Claude a amava, eu também a amaria, apesar do susto inicial. Pois não é assim com as grandes amizades, com os grandes amores, sempre precedidos de uma aversão inicial? 'Os extremos se tocam', aprendi isso observando um cachorro que mordia o próprio rabo, rodando feito uma carrapeta. Gaby não era como as prostitutas que, vez ou outra, Claude trazia para casa, para a higiene do corpo ou para 'afogar o ganso', como dizem os homens e não os gansos. Não, Gaby era de outra estirpe: uma bela mundana, vinda do interior, à cata de um milionário. Como Paul não tivesse onde cair morto, ela já chegou avisando que permaneceria ali somente três meses, o tempo de seu pretendente rico voltar de uma viagem de negócios. Eu logo percebi que essa estada se prolongaria; esses lampejos repentinos e tão verdadeiros aos quais não damos muita atenção no momento. Como as mulheres se sentem atraídas pelos homens frágeis que não tiveram o carinho materno. E, para elas, Claude era um prato cheio; seus aveludados e intransponíveis olhos negros escondiam o desamparo do gigante, prontos a se apaixonar pela primeira que se enternecesse por ele.
"Como eu bem adivinhara, passaram-se os três meses e nada de Gaby ir embora, de volta ao seu milionário. Se ela admoestava Claude pela falta de senso prático, ela tampouco o tinha também. Em vez de se mudar para a tão almejada vida de luxo e riqueza, ela parecia ter prazer na miséria a que os inventores estão condenados desde o alvorecer da humanidade. Gaby ficava encantada de poder cozinhar para ele, varrer o chão, limpar a fuligem de cima do piano, devido à proximidade da estação ferroviária, lavar as suas roupas, passá-las; uma verdadeira dona de casa, apesar da casa em questão ser um sótão miserável, agora abarrotado com os móveis que ela comprara: dois guarda-roupas para acomodar as suas roupas e uma mesa onde podiam, então, fazer as refeições. Guardadas as proporções, parecia uma família burguesa, com o infalível bichinho de estimação.
“Com a vinda de Gaby, Claude estava agora realmente nas nuvens; nada como a presença feminina em uma casa para torná-la acolhedora, com cortinas e chão encerado, apesar das crateras dos cupins. Nos dias quentes, ela andava pela casa vestindo somente um aventalzinho diminuto, que mal cobria as partes íntimas, para deleite de Claude que, de repente, saía do emaranhado das notas musicais e a atirava na cama. Grande parte da sensualidade da peça 'Prélude à l'après-midi d'un faune', inspirada nos versos de Stéphane Mallarmé, é devida à formosura carnal de Gaby. Claude estava mesmo muito feliz. Gaby usava o arsenal de encantos de que dispõe a mulher não só com Claude, mas nas ocasiões em que fosse necessário. Assim foi com o senhorio, quando este entrou no sótão, apoplético, exigindo receber os aluguéis atrasados. Assim foi também com o alfaiate, que exigia o pagamento imediato dos ternos que tinha feito para Claude. A suavidade da voz de Gaby era capaz de amansar a mais sanguinária das bestas-feras.
'Quando Claude tinha que se ausentar para dar aulas de piano ou visitar os editores, em busca de trabalho, Gaby não sabia o que fazer sozinha dentro de casa. Apanhava uma das suas novelas policiais e tentava ler, indócil, sossegava somente quando distinguia os passos dele na escada. Pulava, então, da cadeira e ia recebê-lo na porta, com beijos e mais beijos, como se tivessem passado um mês sem se ver. Ah, como é lindo o amor! De vez em quando, ela inventava umas idas a Lisieux, para visitar a família. Não sei até que ponto isso era verdade. As fêmeas de qualquer espécie são muito espertas: quando querem trair, traem nas barbas do amante. Isso foi só uma suposição, eu nunca a segui para me certificar. Queria, assim como Claude, tenho certeza, uns dias de paz. Não que viver com Gaby fosse ruim, mas a gente precisa, às vezes, de algum sossego. E a língua de Gaby não dava trégua, onde ela estivesse era uma azáfama, um burburinho, ah, a tagarelice das mulheres. Precisávamos um pouco de paz doméstica. Claude, para compor; eu, para dormir, caçar uns ratos. Com Gaby presente, nada disso era possível. Ao voltar, queria contar tudo o que lhe acontecera, chegava a atropelar as palavras, as faces rosadas, os olhos verdes mais verdes ainda. Claude aproveitara a sua ausência para retomar “Pelléas et Mélisande”, febril, interrompida somente pela visita de Pierre Louÿs, um poeta de boa cepa, grande amigo.
“Foi depois de uma das idas a Lisieux que Gaby começou a se tornar irritadiça, qualquer coisa era motivo para discussão, para brigas. Chegou mesmo a gritar com Claude (como podia alguém erguer a voz com ele?), cobrando-lhe que ganhasse dinheiro com a sua música, que escrevesse canções assobiáveis, que pudessem ser tocadas nos cabarés. Quem ela estava se achando? A mulher dele? Quando Claude voltou de Bruxelas, onde fora visitar o amigo Eugéne Ysaye e levar-lhe alguns exemplares do seu quarteto para cordas, encontrou Gaby arrumando as malas. Sem o seu conhecimento, a louca tinha alugado um apartamento de três quartos, no quinto andar de um prédio à Rue Gustave Doré. Pela primeira vez, vi Claude realmente bravo. Saiu batendo a porta, dizendo que não queria vê-la ali quando voltasse. Depois de uma hora, encontrou-a ainda chorando na cama. Quem resiste às lágrimas de uma mulher, sejam elas falsas ou verdadeiras? Dali a alguns dias, mudaram-se para a casa nova. Eu, como bom felino, dei no pé, desapareci feito fumaça, me escafedi. Foi um tempo muito bom esse que lhes fiz companhia, principalmente a ele, mas algo me dizia que na casa nova eu não seria feliz, perderia a tão prezada liberdade. Daí em diante, soube de Claude somente pelos jornais, mas deixo que outros, com mais propriedade, continuem a história; a minha parte está contada.
“O leitor, atento, deve estar se perguntando por que, nesses anos todos de convivência com Claude, eu nunca o apoquentei com ninhadas de gatinhos. Como todos sabem, os artistas, os de verdade, aqueles que vêm para abalar as estruturas, são seres oriundos das estrelas (e Claude, o maior de todos, viera das mais altas esferas cósmicas) e, sei lá por quê, ele achou que eu era uma fêmea, apesar de ter feito aquele exame constrangedor e desnecessário que os humanos fazem nos gatos, as pernas abertas, para saberem o sexo; bastava ver a quantidade de cores. Se têm três cores, são fêmeas; se forem de duas cores, são machos. Portanto, eu era um belo representante da espécie, apesar de ter passado à história como fêmea”.
Nem sempre, Linne, nem sempre.

(Este conto foi escrito após a leitura de “Clair de Lune”, a biografia romanceada de Claude Debussy, de autoria de Pierre La Mure; Edições Melhoramentos, 1966).

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