por Edson Negromonte
Ao meu neto Vlad
Seu nome era Meraq, embora eu mesmo não tenha certeza disso. Esta foi a única palavra que ele pronunciou e, justamente por isso, Meraq foi, Meraq continuará sendo. É uma possibilidade que muito me apraz, gosto de pensar assim, porque Meraq é uma das estrelas do setestrelo, a constelação da Ursa Maior. Eu era, então, um rapazola de quatorze anos, com a cabeça cheia de curiosidade e o coração ávido por descobertas bizarras e extravagantes, como todos os garotos da minha idade. É, talvez eu fosse um pouco mais bisbilhoteiro que a média desses garotos. Minha imaginação assaz estapafúrdia, reconheço, levava-me a conclusões que outros jamais chegariam ou, melhor, não a exprimiriam, por medo do ridículo. Na primeira tarde em que me instalei naquele banco de madeira, comprido e pesado, como deviam ser todos os bancos de estação, ele já estava ali, já fazia parte da paisagem ferroviária e ninguém o notava mais. Todas as vezes em que,voltando da escola, eu o via sentado, imóvel, assustava-me a sua figura invulgar. Eu o associava às cabeças de pedra da Ilha de Páscoa, a perscrutar o horizonte longínquo. Ou a uma monstruosa gárgula. Seria mais condizente associar sua imagem à de um troll, ser mitológico que oscila entre a grandeza e a pequenez? Na ida para a escola, eu não podia perceber a sua figura quimérica, não que meus olhos ainda estivessem remelentos, devido à poeira noturna neles soprada pelo Senhor dos Sonhos. Não, o Homem da Areia não mais me atormentava, tinha se debandado para os lados do meu irmão mais novo, que ainda acreditava nas suas maldades. É que eu, sempre atrasado, fazia correndo um caminho mais curto, um atalho perigoso, atravessando os quintais da vizinhança para não perder o horário da primeira aula, pulando cercas e sebes, atraindo com isso os latidos dos cães, o desesperado cacarejar das galinhas e o xingamento dos moradores. Nesse tempo, eu me preocupava em chegar cedo à escola, ao Colégio Valle Porto, apesar de detestar aqueles professores cacetes que se julgavam os senhores absolutos das almas dos pequenos escravos, aos quais chamavam eufemisticamente de alunos, aprendizes ou, pior, “meus filhos”. Só se com isso quisessem dizer “filhos da puta”. Na volta, com todo o tempo do mundo à minha disposição, eu fazia questão de passar pela plataforma da estação, bem devagar, disfarçadamente, como se estivesse a admirar a arquitetura de ferro, vinda diretamente da Inglaterra, a fim de investigar aquele vagabundo, de olhar aparentemente vago, deambulante. Não quero, com o termo “vagabundo”; dizer que Meraq fosse um desocupado ou um ocioso; uso-o não de forma pejorativa, mas como os poetas, um “wanderer”, aquele que perambula, faço questão de deixar bem claro. Eu quase parava em frente a ele, mas algo dentro de mim dizia que ainda não era chegada a hora do primeiro contato, que ele podia se assustar e fugir, ou me atacar, quem sabe. Então, eu me veria na contingência de fugir do perigo, escafedendo-me, ou de enfrentá-lo com toda a garbosidade de um rato encurralado, sem a mínima probabilidade de chegar à toca. Ou com a intrepidez dos incas venusianos, que só atacavam National Kid em bando. Como já deve ter dado para perceber, nessa época eu era dado à leitura de quadrinhos de ficção científica, também não perdia um filme desse gênero, seja na TV ou no Cine Ópera, o único cinema da cidade. Por precaução, talvez porque ainda não dispusesse de uma arma de raios laser, adotei a tática de me aproximar dele, de Meraq, devagar, lentamente, sem impor a minha presença, como bom terráqueo. Ou como um terráqueo bom? Assim, passei semanas, quase dois meses (três?), nesse processo que eu já considerava sem resultado. Pelo menos, sem efeito aparente; ele sequer desviava o olhar quando eu atravessava o feixe luminoso dos seus olhos, nem mesmo piscava.
Um dia, desses em que “estamos para o crime”, como se diz, tomei coragem e sentei-me na outra ponta do banco, bem distante, o mais distante possível, que eu não era bobo nem nada. Fiquei encarando-o, melhor, olhando-o de esguelha, como quem não quer nada, analisando o perfil intrigante. Parecia humano, aliás, humanoide, com aquele olhar irritante, porque intrigante, que não só me ignorava, mas a todos os transeuntes. Mas, como eu aprendera, assistindo trocentas vezes a “Vampiros de Almas”, os extraterrestres são muito espertos e capazes de tomar a forma humana com uma perfeição absoluta. Quase absoluta, que eu bem sabia quem eram os invasores ali. Se ele se achava espero, eu era sagaz. Ousadamente, mexi-me no banco, para chamar sua atenção. Funguei, resmunguei, e nada, necas de pitibiriba, não movia um único músculo da face, tal e qual Klaatu. Comecei, então, a assobiar. De início, baixinho, pode-se dizer um sussurro, desses assobios sorrateiros que não querem incomodar ninguém, como fazem os velhos, relembrando velhas canções da juventude distante, que só a eles dizem respeito. Nada! Nem uma contração. Em seguida, assobiei um pouco mais alto. Nada, nem aí. Ignorava-me totalmente, alheio a tudo. Indignado, tomado de coragem, como os covardes ante a inércia do oponente, botei dois dedos na boca, ajeitei a língua e soltei um silvo daqueles, de assustar defunto, porque, sem querer me gabar, eu sou bom nisso: no guardamento da minha avó, meu pai, descrente, pediu que eu desse um estoura-tímpanos desses, o mais estridente possível, no ouvido da morta, para se certificar de que a sogra tinha mesmo esticado as canelas. Posso dizer que fiz o meu melhor, nem eu me julgava capaz de tamanha façanha, assustando todos os parentes e não-parentes presentes, estarrecidos com o silvo lancinante, desequilibrando-os. Quem estava chorando, passou a rir, de maneira incontrolável, um riso nervoso, e quem ria, começou imediatamente a carpir, feito comadre desesperada, com sentimento de culpa. Se tivesse sido gravado, como prova, eu hoje estaria no Livro dos Recordes. A velha, assim como Meraq, permaneceu impassível, nem bola. Somente depois disso, pôde ser lavrado o atestado de óbito, era a comprovação definitiva da morte da minha vovozinha. Contei isso, não porque meu pai desgostasse da mãe de minha mãe, mas porque em nossa família houve, pelo menos, um caso conhecido de catalepsia, com um tio-avô, irmão de vovó, tio Aloísio: contavam que, quando abriram o caixão, após vinte anos do sepultamento, a tampa estava toda arranhada por dentro. Vó Pérola tinha muito medo que a enterrassem viva, meu pai “compartilhava” do temor da sogra, mas por razões diversas. Ora, por que escrevi isso? Pelo que sei, sogra e genro sempre se deram muito bem; ele costumava dizer que vó Pérola era “uma joia de pessoa”. É, podia estar sendo irônico, querendo dizer uma joia falsa, bijuteria. Por um momento, cheguei a pensar que Meraq talvez fosse um morto-vivo. Como alguém podia não se sensibilizar com a potência do meu assobio? Era fazer muito pouco de mim. Enfurecido, levantei-me de supetão.
– Que fique aí, seu zumbi de bosta! Vou jogar bola que ganho mais.
Mas a atração que eu sentia por Meraq era muito maior que o orgulho ferido. Na tarde seguinte, lá estava eu, sentado na beirada do banco, a olhá-lo, pronto para pôr em prática um plano: trazia comigo, no embornal um delicioso sanduíche de lombo de porco, com pasta de amendoim e folhas de rúcula fresquinhas. Que extraterrestre não sucumbe a essa guloseima terráquea? Como eu sei disso? Ora, qualquer menino, nem precisa ser muito esperto, sabe que os alienígenas são incapazes de resistir a um sanduíche de lombo de porco com pasta de amendoim e rúcula, a perdição deles. Seria esta a tentativa definitiva para descobrir se Meraq era marciano ou morto-vivo. No caso de morto-vivo, teria que substituir a iguaria caseira por um lanche do McDonald”s; você sabe como essas criaturas são loucas por shoppings, consequentemente por junk food. Daí, seria mais difícil, moro numa cidade pequena, longe da capital. Mas eu daria um jeito, ah, se daria, quando eu quero alguma coisa, vou até o inferno e peço a bênção ao Diabo. Nem tanto, mas é o que diziam de mim lá em casa.
Então, coloquei o sanduíche no banco, entre mim e Meraq. Fiquei olhando para o vazio, imitando-o, fingindo imitá-lo, mas com um olho no peixe e o outro no gato, dando uma de zarolho. Ele, imóvel. Passaram-se horas, até que o trem das oito apitou, chegando à estação, vindo de Curitiba, depois da baldeação em Morretes. Os passageiros desembarcavam apressados, desesperados, loucos para irem para as suas casas, que um temporal diluviano se anunciava, trovões ribombavam, raios serpenteantes rasgavam a cortina negra do céu, ocasião mais que apropriada para aquele frankenstein tomar vida. Isto é, se, por ventura, um desses raios lhe fendesse a cabeça. Mas nada. Nem uma piscadela. O retinir cristalino do velho sino de bronze da estação trouxe-me de volta ao mundo imediatista dos mortais. Receoso (temeroso?) com a tempestade iminente, sem nenhuma vocação para cientista maluco, achei melhor ir para casa; o aconchego do lar quentinho é o lugar ideal dos pesquisadores da vida fora da Terra. Em situações-limite, descubro que sou mesmo é um competente pesquisador de gabinete. No campo, há sempre o perigo de um ataque de formigas-gigantes ou de abelhas assassinas. Acabei esquecendo, não de propósito, mas pelo Providência, creio eu, o sanduíche intocado no banco da estação.
No dia seguinte, gazeei as aulas e fui bem cedo ao encontro de Meraq. Encontrei-o, como sempre, sentado no mesmo banco, no mesmo lugar, na mesmíssima posição. Acomodei-me um pouco mais próximo dele, um palmo, talvez mais, talvez menos; eu já estava um pouquinho mais confiante. Em mim mesmo e nele também, parecia àquela altura tão inofensivo que se eu mijasse no seu pé não teria reação alguma. Mas, apesar de pensar nessa possibilidade, não fiz isso. Não por consideração ou respeito pelos outros, é que eu ainda não era o feliz proprietário de uma arma laser. Lembrei-me, então do sanduíche que havia esquecido no banco da estação. Não estava mais ali! Algum vira-lata o teria comido? Não, porque esse ceticismo todo? Sim, ele o tinha comido! Ele, Meraq, o alien, o tinha saboreado, talvez até devorado, quando ninguém podia observá-lo. Então, definitivamente, Meraq era um e.t. legítimo. Menos mal, detesto zumbis, são uns consumistas nojentos. Zumbis são alienados, não compreendem os fatores políticos, sociais e culturais que os condicionam e os impulsos íntimos que os levam a agir da maneira que agem. Quando pronunciavam essa palavra (zumbi, argh!) perto de mim, ficava imediatamente ouriçado, pensando que não seria nada mal ter uma 45 à mão para detonar essas criaturas infernais que até hoje me causam um asco de revirar as entranhas. Argh novamente! Desse dia em diante, parei de frequentar as aulas, passava o dia todo com o meu mais novo e dileto amigo. Com ele, apesar do seu mutismo, aprendi muito mais do que já houvera aprendido na escola. A única vez que ele abriu a boca foi para pronunciar “Meraq”. Assim, como já disse, deduzi que Meraq era o seu nome. Talvez nem fosse, mais provável que fosse o seu planeta de origem, ou a sua estrela. Ou um arroto: Meraq! Como Charles Atlas, eu precisava somente de um ponto de apoio no espaço para erguer o mundo e, assim, apoiei-me nessa palavra, Meraq. Para um menino sonhador, afeito às fantasias, o solo líquido do pântano é certamente muito mais firme que o asfalto. Acostumei-me a, todos os dias, levar para ele o sanduíche de lombo de porco com pasta de amendoim e rúcula. Agora, eu já o entregava em suas mãos, éramos amigos, afinal. Sei que éramos amigos íntimos, tenho certeza disso. Logo depois de saborear essa delícia, sem olhar para mim, mas para um ponto indefinível no espaço, o qual, com o tempo, aprendi a localizar, a focalizar, passávamos a conversar mentalmente, uma conversa de hipófise para hipófise, se é que você me compreende, um diálogo espiritual. Como a direção da escola tivesse alertado os meus pais de que eu estava faltando muito às aulas (eles, meus pais, pensavam que eu estivesse indo para o campinho, jogar bola; até um tempo atrás meu sonho era ser jogador de futebol. Por isso, meu pai não se importou muito que eu andasse cabulando aula, sonhava fazer de mim um novo Heleno ou um Garrincha), Meraq me aconselhou a frequentar as aulas durante alguns dias para que não me vigiassem em excesso, senão nossos encontros podiam ir por terra. “Ir por terra”, hahaha, entendeu o calemburgo? Foi, também, por aconselhamento dele que desisti de ser jogador profissional. Cabecear a bola, como eu gostava de fazer, podia afetar a minha glândula hipófise, o único meio de nos comunicarmos. Dei-lhe razão ao constatar a quantidade de débeis mentais que há no futebol, gente incapaz de formar uma frase com início, meio e fim, ou sujeito, verbo e predicado.
Meraq foi o mestre que todos os meninos deveriam ter, seus ensinamentos ampliaram tanto os meus horizontes que se assemelhavam às portas da percepção de William Blake, o poeta inglês que apanhava da mãe por conversar com os anjos. Subentenda-se “anjos” como seres vindos do espaço exterior. Com Meraq, tive as mais incríveis experiências além do meu corpo físico, do meu corpo sideral, comunguei com o Buda interior, penetrei nos recônditos da Terra e fiz contatos de terceiro grau com Júlio Verne e H.G. Wells, aprendi o que é o amor incondicional, meu coração transbordava de amor pela humanidade, embora execrasse o ser humano. Com Meraq, toquei as cordas da harpa celestial. Levou-me também aos reinos inferiores, onde as criaturas choram sem descanso, impediu-me de romper o cordão de prata, mostrou-me as almas envilecidas dos criminosos, levou-me a Cuiabá para conhecer o coronel Fawcett, o qual vive até hoje disfarçado de vivandeiro; apresentou-me a Christopher Marlowe, que me garantiu que jamais tinha existido, a não ser na mente do seu criador, Francis Bacon, acompanhei-o a Nuremberg, para velar o corpo ainda em decomposição de Kaspar Hauser... Meraq jamais admitiu que eu o chamasse de mestre, advertindo-me de que cada homem é o mestre de si mesmo, bastando ouvir a voz silente, quase imperceptível, mas firme, da consciência do Universo. Por muito tempo, eu associei essa voz à de Charlton Heston.
Mas como nada é eterno nessa terra (ou nesta Terra? Ainda hei de desvendar este mistério), um dia, pela manhã, cedinho, não encontrei o camarada Meraq no costumeiro banco. Desesperei-me, sim, sucumbi ao choro da criança que ainda reside em mim, em meu coração eternamente infantil, pois chegara repentinamente o momento, por ele previsto, sem que eu me sentisse preparado, em que eu deveria andar pelas próprias pernas, em que o aprendiz, tendo alcançado o degrau da escada do conhecimento a que o mestre não está preparado para galgar, assim como vem acontecendo com Dante e Virgílio durante séculos, a cada nova leitura, a cada novo leitor, da “Divina Comédia”, vê-se só, sem ninguém a quem recorrer, sem uma mão compassiva, contando somente consigo mesmo, momento crucial em que tantos se acovardam e desistem. Sentei-me desconsolado no velho banco, justamente no lugar que Meraq ocupara, chorando as lágrimas mais sentidas de toda a minha existência. Foi quando o guarda da estação, tocou-me no ombro, com um leve aperto fraternal:
– O seu amigo foi preso, ontem de madrugada...
– O que você tá dizendo?!
– Que ele foi preso ontem de madrugada, a polícia veio aqui e o levou, acusando-o de ter violentado a professorinha Naná...
– Mas isso não é verdade!
– Eu bem que disse à polícia que ele não saía daqui, dia e noite, mas me mandaram calar a boca. Disseram ainda que ele era um merda de um guerrilheiro do Araguaia, matou doze, pode?, que era viviado em crack, traficante, essas coisas...
Todas as minhas tentativas de falar com Meraq, na cadeia, foram inúteis; não lhe era permitido receber visita, foi-lhe negado advogado, nem a banho de sol teve direito. Soube, sete dias depois, pelo soldado Edmur, que deve ser boa gente, apesar de servir às forças de repressão, o qual deve ter se condoído do meu desespero ou, quem sabe, para aumentar o meu sofrimento (há seres das trevas que se alimentam disso, da dor alheia), que Meraq tinha se enforcado na cela, depois de barbarizado em uma sessão de tortura, comandada pelo delegado Fleury em pessoa. Morreu como heroi, sem abrir o bico, sem entregar ninguém. Seu corpo jamais foi reclamado. Contou-me, ainda, o soldado Edmur que Meraq rabiscara, na parede da cela, as palavras MERAQ IZT FRE. Eu sei o que isso significa e jamais revelarei a ninguém, é uma questão de lealdade.
terça-feira, 15 de julho de 2014
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belo, Edson!! uma delirante aventura de infancia, na terra do nunca da Deitada-a-beira-do-mar!!
ResponderExcluirescreva mais!!