domingo, 31 de agosto de 2014

UM PRESENTE DO HAITI

Edson Negromonte

Nunca fui de acreditar nessas coisas de magia negra, mas sempre respeitei todas as religiões e suas idiossincrasias, mesmo o vodu. Sim, o vodu, que apesar de tudo, de todo o falso folclore que essa pequena palavra implica, que o cinema, principalmente o americano, se encarregou de criar e difundir para o mundo inteiro, é também considerado uma religião, oriunda do Haiti. Todo o meu drama começou quando o meu primo Frederico Werner trouxe-me de presente uma boneca vodu, após uma viagem de estudos a este país, comprada em Porto Príncipe, com o meu nome bordado nas costas. Meu primo é antropólogo, vive viajando e pesquisando nas paragens mais insólitas do planeta. A sua última viagem, ao Haiti, levou-o a conhecer vários xamãs, tanto do sexo masculino como feminino, que se diziam capazes de tirar a vida a outros seres humanos por meio da feitiçaria. Brincalhão como sempre, Frederico encomendou a uma autopropalada suma sacerdotisa dessa seita, uma conhecida “mambo”, que tem uma tenda no soberbo Mercado de Ferro, uma boneca com o meu nome. Por que não o dele? Chegou-me, uma noite, com o inusitado presente e, ante a minha cara de espanto e repugnância, desafiou-me, zombeteiro, a deixá-la exposta na estante de livros que fica às minhas costas, em meu escritório, afiançando que nada me aconteceria. Ou melhor, que só me aconteceria algo de ruim se eu acreditasse em maldições. A vontade de mostrar-me corajoso perante meu primo mais velho, o qual sempre zombou do meu respeito pelas coisas do outro mundo, respeito que ele sempre interpretou como medo, levou-me a aceitar o desafio. Ora, pensei, que mal poderia fazer uma bonequinha inanimada? Sou um homem moderno, citadino, e não devo, ou não deveria, me assustar com essas crenças primitivas; o ceticismo deve ser cultivado no dia a dia, nos menores gestos do cotidiano. A dúvida deveria ser um exercício constante para que vivêssemos melhor, sem preocupações inócuas com a metafísica. Nos primeiros dias, ao menor ruído, principalmente de madrugada, o melhor horário para concatenar as ideias que surgem durante o alvoroço da claridade diurna, eu virava-me para trás, para me certificar de que ela, a boneca vodu, ainda estava ali, na estante ás minhas costas, imóvel.
Na adolescência, eu e Frederico costumávamos, na saída dos bailes, ir à procura de despachos nas encruzilhadas da cidade. Na madrugada, com a fome que estávamos, saboreávamos o frango e a farofa preparados, com todo cuidado e higiene, para o santo. Satisfeito o instinto mais básico do ser humano, a fome, arrematávamos a refeição com uma boa talagada de pinga. Às vezes, champanha. Ou melhor, cidra. Geralmente, da marca Cereser. Saíamos os dois, satisfeitos, de peito estufado, cada um com um cigarro no bico, e levando conosco o maço de Hollywood (até hoje não entendi a preferência das entidades femininas por essa marca. Talvez porque supostamente todas as mulheres, mesmo a temível Pombajira, sonhem ser atrizes de cinema). Conforme combinado de antemão, oferecíamos cigarros aos amigos, deixando-os darem algumas tragadas para depois lhes contar, para desespero deles, e para nosso gáudio, de onde os tínhamos surrupiado. Atiravam os cigarros longe, maldiziam, pediam desculpas ao mundo invisível, diante das nossas gargalhadas. Quando o despacho era direcionado para uma entidade masculina, saíamos fumando charutos Suerdieck. Confesso que, se fosse pela minha vontade, deixaria que Frederico tomasse a dianteira no saque à oferenda, mas ele, cinco anos mais velho, achava-se no dever de fazer de mim um homem corajoso, sem temer nem mesmo almas do “outro mundo”, coisa que ele reputava inexistente, artifícios do poder para manter o semelhante à mercê dos desmandos da vontade alheia. Uma tarde, depois do almoço, dormindo de bruços, curtindo a ressaca de uma boa carraspana na noite anterior, ouvi chamarem meu nome. Ao erguer a cabeça para ver quem era, levei uma bofetada que deixou meu maxilar dolorido dias seguidos. Não havia ninguém no quarto. Levantei-me espantado, olhei no espelho do banheiro e lá estava, estampada em minha cara, a marca dos cinco dedos do espírito agressor. Pelo sim, pelo não, instintivamente prometi ao Altíssimo que jamais voltaria a profanar a comida dos santos. Mas a amizade com meu primo permaneceu inabalada, sempre fomos unha e carne, apesar de todas as enrascadas em que ele me colocava.
Sempre acreditei, ou quis acreditar, que não fosse supersticioso, mas eu, que tinha uma saúde de ferro, me vi, de um dia para o outro, desde que fora presenteado com aquela pequena boneca de pano, de cabelo de palha, com o meu nome bordado nas costas, acometido de dores de cabeça as mais atrozes. O bom e idoso médico da família aconselhou-me a não dedicar horas ininterruptas e excessivas ao trabalho intelectual. De início, a contragosto, comecei a ocupar algumas horas da madrugada com a programação da TV ou eventualmente a um sono rebelde, o que não me impediu de continuar acordando com dores de cabeça lancinantes. Sim, literalmente sentia meu cérebro atravessado por lanças haitianas. Encaminhado pelo médico, fiz um eletroencefalograma, o qual constatou que nada havia de anormal em meu cérebro, nenhum aneurisma, nenhuma dilatação de vasos sanguíneos, nada. Segundo o neurologista, minha cabeça estava em ordem. De onde vinham, então, as fortes dores que chegavam a incapacitar a concentração, a incompreensão de um mísero parágrafo das monografias de meus alunos? Orientado por um conhecido, passei a frequentar uma academia. Como sempre achei maçante a ginástica, nem a boa vontade e todo o desvelo da bela e bem fornida treinadora foram suficientes para que eu desse prosseguimento aos maçantes exercícios físicos. Para alguém afeito ao mundo dos livros, esse período passado em uma academia é tempo perdido, desperdiçado. Contra todas as evidências, decidi que como as dores de cabeça surgiram, isto é, do nada, haveriam de cessar de uma hora para outra. Ledo engano, as dores, que eram intermitentes, foram se acentuando cada vez mais, até se tornarem contínuas, isto é, uma única dor, sem que eu pudesse diagnosticar o começo ou o fim, uma única nota musical, grave, surda, como o bater de um tambor que soasse indefinidamente, um mantra dos infernos.
Extenuado, os membros lassos, deitei-me, uma manhã de final de outono, o inverno insinuando-se, no sofá do escritório, em busca de um cochilo reparador, para nunca mais levantar. Vi-me, no mesmo instante, incapaz de um único movimento dos membros, tanto inferiores como superiores, o corpo prostrado. Nem a cabeça eu conseguia mexer. Somente os olhos continuavam em plena atividade, vivazes. Não conseguia-me fazer entender a ninguém, nem mesmo à minha mãe, pródiga em cuidados e carinhos, fazendo tudo de que era capaz, alimentando-me, dando-me de beber, atendendo as minhas necessidades fisiológicas: urinar e defecar. Pequena e magra, a pobre mulher trocava minha roupa de cama, movimentando-me com muito sacrifício de lá para cá, de cá para lá. Insatisfeita com o parecer de um, chamou outros médicos, os quais davam os diagnósticos mais disparatados, apesar de meus olhos expressarem inutilmente o terror que eu lhes queria comunicar. Ou o horror que por eles, os médicos, sempre tive. Tempo chegará em que a medicina terá de aceitar que também se adoece da alma, sob a pena de cair no mais completo descrédito. Mas antes a medicina terá de admitir a existência desse corpo sutil, a alma. Enquanto isso não acontecer, cada vez mais os homens, principalmente nas grandes cidades, sucumbirão a doenças ainda inominadas, às quais dão hoje o nome genérico de câncer. Para a medicina atual, tudo é câncer. Jamais passou pela cabeça de minha mãe, evangélica fervorosa, chamar um curandeiro ou coisa que o valha. Ela trouxe, certo dia, um pastor que se dizia entendido em possessões, mas de nada adiantaram seus malabarismos, suas imprecações, a vociferação ao demônio que ele assegurava ter tomado posse do meu corpo. Outro pastor, de mais alta graduação, mais experiente em exorcismos, foi trazido pelo primeiro. Juntos, empolgados com suas próprias pragas, exaltados, acabaram jogando-me ao chão, onde permaneci, sem um único movimento, incapaz de um gemido sequer. Somente meus olhos atônitos eram capazes de emitir sinais de vida; os pastores entenderam isso como mais uma das artimanhas de Satã. Vendo-se incapazes de expulsar o mal de mim, chegaram à conclusão os impostores de que o Senhor das Trevas já era dono da minha alma, assegurando à minha mãe que era somente uma questão de tempo a minha partida definitiva para o fogo eterno.
No ponto do escritório onde estava situado o sofá no qual meu corpo jazia, eu podia ver, de frente para mim, a boneca. Mesmo fechando os olhos, a sua imagem terrível permanecia nítida em minhas retinas. E mesmo durante os poucos minutos de sono agitado que o meu estado nervoso permitia. Com o tempo, os nervos em frangalhos, nem mais ao pesadelo pude recorrer. E como eu ansiava por essa égua da noite que me tirasse, por míseros instantes, daquele ambiente agora opressivo, onde passara as horas mais agradáveis de minha vida, em meio aos meus autores favoritos, e agora ameaçador, acachapante, e o toque contínuo, incessante, do maldito tambor que eu tinha certeza ser proveniente de um ritual vodu, realizado diuturnamente dentro da minha cabeça, do meu cérebro, dentro da minha alma. Cheguei a me apiedar de mim mesmo. Tive, então, a certeza funesta de que estava secando a partir do âmago do meu ser: eu fora amaldiçoado. Eu me transformara, eu era o Haiti! Eu era toda a dor do povo haitiano! Eu era o próprio vodu!
Meu primo não deixou de visitar-me, veio todos os dias, no último mês, enquanto esteve na cidade. Ultimamente, não tem aparecido, está viajando. Pobre Frederico! Tenho certeza que se não fosse tão descrente, teria me auxiliado, teria dado um fim na boneca maldita. Meus olhos esgazeados só o tornavam mais irritado por não saber lê-los, por não poder compreendê-los, fazendo que abandonasse o recinto, apressado, praguejando, impotente. Ele sabia que eu queria lhe comunicar algo. Como todas as pessoas que se enfronham excessivamente na letra impressa, nas runas, hieróglifos, ideogramas, mas esquecem-se do convívio humano, ele percebia que eu queria lhe dizer algo na ineloquência insana dos meus olhares perturbados. Não sei se eu me compreenderia, se estivesse em seu lugar. Provavelmente, não.
As noites eram dolorosamente medonhas, sem a azáfama diurna das gentes, o ruído dos automóveis que adentravam a janela do escritório. Em vez de me irritar como antigamente acontecia, essa agitação sem quê nem porquê da humanidade, trazia-me algum lenitivo, distraía-me por alguns preciosos segundos para mergulhar-me, logo em seguida, no som surdo e contínuo do tambor vodu, senhor absoluto, mais poderoso que tudo, exigindo minha atenção. Bastava-me fechar os olhos no intuito de fugir da imagem da boneca, olhando-me fixamente nos olhos (a cada leve suspiro que se esvaía do meu peito, ela consequentemente se revigorava), cenas nunca antes por mim vividas, de rituais macabros, tomavam existência real dentro de meu cérebro, de minha memória, uma fantástica memória diacrônica da qual jamais suspeitara. Eram invocações e rezas e chamamentos em uma língua parecida com o francês, um francês arrevezado. E uma palavra ecoava insistentemente nas paredes do meu crânio, nitidamente as vozes gritavam “Hounto! Hounto!” Em meio a tudo, havia a plena consciência de que um diabo, ou que vários deles drenavam, aos poucos, as minhas forças. E que eu nada podia fazer para impedi-los.
Foi num final de semana, talvez um sábado, ou domingo, em meio ao inverno, que a mulher de meu primo veio, a seu pedido, saber como eu estava passando. Trouxe com ela as crianças, um menino e uma menina, desculpando-se com a minha mãe por não ter com quem deixá-las, assegurando que a visita seria rápida, que viera somente por insistência de Frederico. Ela não podia ver-me sem chorar, prostrado no sofá, sem reação alguma. Minha mãe, pensando que suas lágrimas só serviriam para piorar ainda mais a minha situação, chamou-a para tomar um café na cozinha. Nesta ocasião, esqueceram-se de levar com elas as crianças, que vendo-me inerme, sem poder lhes chamar a atenção para que não mexessem em nada (sempre fui, desde menino, muito cioso da ordem dos meus pertences), sentiram-se livres para especular todo o escritório. Os dois diabretes mexiam em tudo aquilo que lhes era proibido, como o trenzinho à pilha, da Estrela, que eu ganhara do meu pai, quando fiz três anos. Brincaram livremente com o que lhes chamava a atenção, até seus olhos darem com a boneca vodu no alto da estante. Na impossibilidade de alcançá-la, subiram em uma cadeira e a derrubaram com o auxílio da minha bengala. Logo, os dois se desentenderam a respeito da boneca e começaram a puxá-la, cada um para um lado. Acabaram arrancando a cabeça do restante do corpo, o que fez a menina desatar em um choro desesperado, histérico. Neste exato momento, senti um alívio imediato em meu cérebro, uma claridade, um frescor como há muito não sentia. Seu irmão, com a maldade inerente aos meninos, atirou, com um sorriso maldoso, escarninho, o corpo da boneca nas chamas da lareira. Imediatamente, meu corpo começou a incendiar, labaredas de um fogo azulado que vinha das minhas entranhas. A esposa de meu primo e minha mãe chegaram correndo, atraídas pelo choro incessante da menina, um uivo desesperado e desesperador. Diante da cena, as duas mulheres agarraram as crianças e saíram rapidamente da casa, deixando-me a arder, a me consumir de dentro para fora, solitário, entregue a mim mesmo e à misericórdia divina, à minha própria impossibilidade e às chamas libertadoras.
Quando os bombeiros chegaram já era tarde, graças a Deus. Nunca um atraso foi tão bem recebido. Estranhamente o fogo não se alastrara, consumindo apenas parte do sofá, além de mim mesmo, deixando no ambiente um odor adocicado. Minha cabeça, deslocada do corpo, permanecera intacta. Tornei-me, assim, para os estudiosos, mais um caso de combustão espontânea; quase todos os meus ossos estavam carbonizados. A ciência ainda busca explicações plausíveis para este fenômeno, pois, sabe-se que, mesmo nos crematórios, sob a ação de altíssima temperatura, 1300°C, durante 12 horas, somente a carne dos corpos é queimada, tendo os ossos que ser posteriormente triturados. Afirmam ainda os médicos legistas que as feridas inflamadas das minhas costas teriam provocado um derramamento de gordura subcutânea, a qual em contato com o oxigênio e o calor da lareira causou a combustão dita espontânea de meu corpo. Chamam a esse fenômeno de “efeito pavio”. Sugerem ainda que o incêndio que me consumiu ocorreu quando o gás metano, resultante da decomposição dos vegetais no intestino, entrou em ignição, estimulado pelas enzimas. E como explicarão, então, a cabeça separada do corpo, intacta? O que restou do meu invólucro terreno, a cabeça e a perna esquerda, pertence hoje ao Instituto Jonas Dupont, à disposição de cientistas e interessados na paranormalidade.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

AS MAIS DOCES MEMÓRIAS DE WATCH



Edson Negromonte

Sou conhecido como Watch, embora não seja este o meu verdadeiro nome, mas foi assim, com esta alcunha, que passei à história. Devido à idade avançada, só então resolvi dar a público um pouco do que conheço sobre o poeta Walt Whitman, com quem convivi durante sete anos. Não direi sobre a sua arte poética, deixo-a aos exegetas, os quais se sairão bem melhor do que eu. Quero contar do homem, melhor, do amigo Walt. Thomas Donaldson, um grande amigo, sempre o tratou respeitosamente por Sr. Whitman, embora este o tratasse por Tom. Eu não, sempre o chamei de Walt; nossa amizade era tão verdadeira que abria mão dessas formalidades, apesar da diferença de idades. Era um boa-praça o velho, tratava-me de igual para igual, havia uma camaradagem entre nós. Falava comigo como se fala a um companheiro, sem fazer diferença. Afinal, não somos todos iguais perante o Criador, para quem não há hierarquias no plano da criação?
Durante sete anos, os últimos sete anos da sua vida, fomos felizes juntos. Cheguei à casa da Mickle Street, de mudança, acompanhado de Mary. Era muita tralha para uma casa tão pequena. Para mim, na minha pouca idade, tudo parecia muito grande. Hoje, não consigo entender como Mary conseguiu acomodar toda a mobília e os seus pertences pessoais, principalmente a coleção de gravuras; nada como um toque feminino para dar vida às coisas. E, ah, como aquela casa precisava da presença de uma mulher! Tudo se transformou com a chegada de Mary. Além de todo o cacareco, ela trazia ainda na bagagem várias gaiolas com passarinhos, entre eles, um canário que cantava maravilhosamente bem, um trinado muito doce, e um, argh!, gato que imediatamente, nem bem chegou, aninhou-se no colo de Walt. (Não sei dizer porquê, mas detesto gatos. Essa minha ojeriza talvez seja fruto da superstição, mas, independente disso, dava gosto ver o grande inaugurador da poesia americana brincando com o felino, balançando para lá e para cá um barbantinho com uma bola de papel amarrada na ponta). Além disso, Mary trouxe ainda algumas galinhas poedeiras. E, pasmem, um papagaio empalhado! Para que serve um papagaio empalhado? Como enfeite, é de supremo mau gosto. Aquelas penas já desbotadas serviam somente como depósito de poeira. O papagaio era herança do Capitão Fritzinger, seu antigo patrão. De todos os objetos, o que mais agradou a Walt foi a miniatura de um veleiro, cuja delicadeza e beleza não se cansava de louvar.
Para melhor compreensão, devo acrescentar que a minha amizade com Walt é anterior à nossa mudança para a sua casa. Vem do tempo em que ele mendigava pelas ruas de Camden, envolto em trapos, as galochas desbeiçadas. Dava pena olhar o velho homem enfrentar a chuva gelada. Eu, do meu refúgio aconchegante, ficava consternado ao vê-lo passar. Até que, numa noite enregelante, de arder nos ossos, ele bateu à nossa porta, em busca de um prato de sopa, levado pelo cheiro bom que vazava para a rua. Como você deve saber, o olfato fica mais aguçado no tempo frio. Desse dia em diante, ele tornou-se um visitante contumaz. Mary nunca deixou de lhe oferecer um prato de comida ou um café quentinho, o qual ele aceitava de bom grado, até que acabou convencendo-a, quando a sua situação melhorou, a ir com ele morar, na condição de governanta. Antes, eu adorava andar à toa pelas ruas de Camden, mas, depois da mudança para a Mickle Street, não desgrudei mais de Walt. Ele era carinhoso e compreensivo comigo. Não que Mary não fosse bondosa comigo, mas é compreensível a minha necessidade da figura masculina. Assim, apeguei-me a ele, como um menino se apega ao pai. Apesar de nunca ter me faltado nada, eu ficava de olho grande no café de Walt, principalmente nas torradas. Percebendo isso, ele era muito sensível, passou a dividi-las comigo. Uma das suas iguarias favoritas, as ostras, eu nunca consegui apreciar; aquilo enrolava na minha boca e eu era obrigado a cuspi-la.
As visitas à casa eram frequentes. E silencioso, quieto, sempre calado, mas atento, eu muito aprendi sobre a vida ouvindo a conversa de homens sábios, como o atencioso Tom. Um dos visitantes mais cativantes, a meu ver, foi o jovem Abraham, que ficaria famoso, anos mais tarde, como Bram Stoker, o festejado autor do romance “Drácula”. Que delicadeza de modos! Walt também ficou encantado com ele, conforme eu o ouvi dizer ao Tom. A cada frase dita por Abraham, os olhos de Walt brilhavam. Eram mesmo muito espirituosas, podendo-se dizer formidáveis, de aguda perspicácia. Quanto conhecimento eu adquiri sobre a alma humana só de ouvir a conversa entre esses homens inteligentes. Às vezes, eu dava um aparte, emitia a minha opinião, um breve comentário. Eles viravam-se, então, para mim e sorriam. Nessas ocasiões, Walt fazia-me sempre um afago paternal na cabeça, orgulhoso. Sobre o brilho dos olhos de Walt, seria necessário um capítulo à parte ou mesmo um livro. Sem exagero, aquele par de olhos azuis irradiava tanta energia, eram tão eloquentes que o seu dono não precisava falar para ser compreendido; eram o oceano no qual eu me perdia para me reencontrar. Precisava ver o brilho dos seus olhos quando os amigos o presentearam com uma bela charrete, atrelada a um pônei, pareciam os olhos de uma criança diante do tão almejado presente de Natal. Perdão se soo piegas aos seus ouvidos empedernidos, é que a idade avançada e as boas lembranças do meu velho amigo, a quem tanto devo, dão-me esse direito. Seus olhos luziam com a chegada da correspondência, mas principalmente com as cartas de um poeta inglês de sobrenme Tennyson, a quem tinha muita consideração.
Enquanto os adultos o temiam, talvez pelo caráter libertário dos seus versos, talvez pelo magnetismo da sua personalidade, as crianças o amavam. E ele a elas. Uma das suas brincadeiras favoritas era rolar algumas moedas de pouco valor, do alto da janela do segundo andar, deixando-as cair na calçada, enquanto as crianças brincavam na rua, encarapitadas nas portas do porão. Quanta satisfação em seus olhos, que sorriso peralta diante dos gritinhos de surpresa dos meninos. Por aí, pode-se ver que o dinheiro não tinha para ele nenhuma importância, desmentindo que fosse um velho sovina. Que alegria ao ver as crianças voltando com as mãos cheias de balas e doces! Sobre o medo que os adultos dele sentiam, há uma história muito interessante, um boato que até hoje perdura, inspirada no conto “João e o Pé de Feijão”, de que um dos vizinhos entrara sorrateiro, sem que ninguém o visse, na casa de Walt e, lá, encontrara um gigante devorador de homens, explicando porque as pessoas entravam e jamais saíam daquela casa. Diziam ainda que Mary cozinhava as sobras para dá-las ao cachorro. Argh, que imaginação fértil, assaz mórbida!
Todos os biógrafos insistem em dizer que a casa de Walt era exígua, muito pobre, a menor e a mais feia do quarteirão. Para mim, assemelhava-se a uma mansão. Havia, inclusive, no lado esquerdo, um portão providencial, fácil de abrir, bastava um empurrão, que dava acesso ao beco. Quando se chega à adolescência, a gente precisa dar umas escapadelas noturnas, você sabe, namorar. Mas grande parte dos dias, nesses adóraveis sete anos de convivência com Walt, eu passei em casa.compartilhando nas noites geladas o fogo da lareira que havia no seu quarto, junto a qual ele também gostava de sentar. Interessante que os ruídos que a todos incomodavam, inclusive a mim, como as manobras dos trens de carga (a estação ferroviária ficava a uma quadra da casa), o coral desafinado de uma igreja muito próxima, as badaladas estridentes do sino, tinha eu os ouvidos bem sensíveis, o entrechocar-se das composições, não incomodavam Walt, à sua sensibilidade. Pelo contrário, pareciam parte intrínseca da sua inspiração. Dizia não compreender aqueles que necessitam se isolar em torres de marfim, enquanto ele, por sua vez, necessitava dos espaços abertos. No início, foi difícil me acostumar ao barulho dos trens, principalmente à noite, às manobras, o choque contra os vagões, o engate. Havia ainda o odor fétido, insuportável, de uma fábrica de guano que despejava os detritos no Delaware. Esse cheiro acre tornou-se terrível, nauseabundo, no verão terrível de 1887. Mas nada disso parecia afetar Walt. A única coisa que realmente o incomodava eram as mulheres da vizinhança varrendo, espalhando a água da sarjeta depois da chuva. Isso o irritava sobremaneira pelo perigo das doenças, principalmente a malária. Lembro-me nitidamente, como se fosse hoje, passados tantos anos, de Walt gritando da janela para que elas parassem com aquilo. Pensa que paravam? Continuavam com a varrição. Assim como eu, o bardo americano tinha horror a vassouras. A única vez que vi Walt realmente zangado foi quando Mary, certa ocasião, aproveitando-se da sua ausência (ele fora passar uma semana na casa de amigos), achou por bem arrumar, dar um jeito, na bagunça que era o quarto do poeta. Para ele, cada pedacinho de papel tinha um valor especial, mesmo os amassados na lixeira, os quais reabilitava em busca de um verso anteriormente descartado.
Um dos seus passeios favoritos era a travessia do Delaware, em direção à Filadélfia, assim como eu, que gostava de acompanhá-lo. Ao chegar do outro lado, ele se despedia de mim, mandando-me voltar direito para casa. Ah, se a sempre tão preocupada Mary o visse empoleirado, feito um adolescente, na amurada da balsa, apesar da crescente paralisia, sentindo o vento na cara... Era uma visão emocionante! Os passeios de Walt davam-me uma espécie de ausência... Ora, para que falsear, causavam-me uma grande ausência. Sem ele ao meu lado, era como se faltasse a melhor metade de mim mesmo. Apesar de gostar muito do burburinho da cidade grande, com a idade ele foi se afeiçoando cada vez mais à vida no campo, chegando a cogitar uma mudança para Timber Creek. Contou-me, certa vez, com tanto encantamento sobre Timber Creek que até eu me senti tentado a mudar para lá. Quando Walt se ausentava, eu voltava a dormir no divã da sala. À sua volta, quanta alegria! Ele gostava muito de Mary, isso era patente em seus olhos todas as vezes que Walt voltava para casa, vindo de uma das demoradas visitas a amigos; seus olhos sorriam ao vê-la de novo. Com Mary, ele sentia-se protegido. Nos dias de sol, quando estava disposto, amparado por Mary, sob os meus cuidados também, ele sentava-se em uma cadeira na calçada, com um dos pés apoiado, encaixado no tronco do sombreiro que ficava em frente à casa. Era um sombreiro muito velho, venerável, que chegava a ultrapassar o sobrado em que morávamos. Uma das curiosidades sobre Walt era o seu estranho hábito do banho diário. Devo aqui confessar que até hoje, apesar da idade avançada e da consequente sabedoria, me repugna a simples ideia de tomar banho todos os dias. Acho que amolece o caráter. Walt adorava ficar imerso na tina de água quente até começar a esfriar. Nos últimos anos, acabou adquirindo uma bela banheira, na qual nunca me atrevi a entrar. Ele nunca me convidou, eu nunca fiz questão.
Quando a popularidade de Walt cresceu, a afluência de pessoas à casa tornou-se maior, atrapalhando a vida doméstica. Mary então se perguntava onde estavam todos esses amigos e admiradores no tempo das vacas magras, quando Walt, já doente, devido aos esforços da Guerra, socorrendo os enfermos, se arrastava pelas ruas de Camden, mendigando um mísero prato de comida para aplacar a fome que lhe corroía as entranhas. Walt tratava muito bem a todos, mas algumas vezes recusava-se a recebê-los, principalmente quando estava envolto com a construção de um poema ou, melhor, fundando a autêntica poesia americana. Rasgar notícias de jornal, recortar matérias de revistas, ilustrações que lhe chamavam a atenção, aparentes ninharias, este era o método poético de Walt, um deles, aliás, nada era para ele maior ou menor, ou desprovido de interesse. Mesmo uma simples aranha, tecendo tranquilamente a sua teia no canto do teto, era para ele motivo de admiração, de embruxamento. Ainda sobre a rotina doméstica, digo, sobre a quebra dessa deliciosa rotina, foi a chegada de um escultor e um pintor. Os dois com pretensões de imortalizar Walt Whitman. Foi um reboliço, Mary de cabelo em pé, assustada com tudo isso, os dois, um implicando com o outro, em busca da melhor luz... até que, um dia, foram finalmente embora. Não que eu não gostasse de Morse e Gilchrist, mas eles me roubavam a atenção de Walt.
Walt era mesmo genial! E olhe que a pouquíssimos seres humanos eu aplico este epíteto tão banalizado nos dias que correm: é genial pra lá, genial pra cá, enfim, tudo tornou-se genial e, na realidade, nada mais é genial. O Dr. Bucke um médico canadense, muito amigo de Walt, um dos seus testamenteiros, chegou a estudá-lo como um tipo de mente superior, dedicando-lhe pelo menos dois volumes. Ele chamou a isso de “consciência cósmica” ou “consciência crística”, embora até hoje eu não compreenda muito bem, em toda amplitude, o significado disso tudo, mas confio na competência do Dr. Bucke. Se Walt o tinha em boa conta, eu também. Todas as vezes que Walt precisou, o Dr. Bucke veio em seu auxílio, visitando-o várias vezes durante a longa enfermidade que se abateu sobre o poeta, do verão de 1888 à primavera de 1892. A desgraça teve início quando, logo depois do seu aniversário, fomos, eu e ele, até a beira do rio contemplar o por do sol no Delaware, o seu amado Delaware. Embevecidos com tamanho espetáculo, nos esquecemos da hora (como se Walt se preocupasse com essas coisas), a noite chegou e, com ela, o sereno e a friagem, terríveis para alguém de saúde tão fragilizada como Walt. Voltamos para casa no avançado da noite, já sentindo os sintomas de um resfriado maligno, o qual o levou a um estado de coma. Durante dias, eu, Mary e Tom ficamos ao lado do seu leito, ansiosos, até que ele foi se recuperando aos poucos, mas a sua saúde nunca mais foi a mesma. Este foi o último passeio de Walt.
O seu último aniversário, de 72 anos, foi uma festança, uma comemoração à altura, móveis sendo arrastados para os cantos, as portas dos salões contíguos sendo despregadas para acomodar todos os convidados, uma azáfama sem igual. Tudo transcorreu de acordo, a não ser quando um chato, de voz empostada, altissonante, pomposa, resolveu recitar um poema de Walt (você sabe como são os puxa-sacos), o belíssimo “O Captain! My Captain!'. Aquela falta de sensibilidade foi me dando nos nervos, esquentando os tímpanos, que quando dei por mim eu já o estava arremedando. Mandaram que me calasse, fizeram “pssit”, mas levei a molecagem até o final e só então me retirei do salão, vingado. Ainda vejo o sorriso condescendente de Walt.
Infelizmente, a morte chega a todos, até aos gigantes. Desculpe, mas quando se trata de Walt, não tenho meio-termo. Lembro-me como se fosse hoje do final da tarde do dia 26 de março de 1892, um sábado, quando o meu fiel companheiro partiu para os eternos campos de caça. Além de mim e Mary, estavam presentes o seu enfermeiro Warry o único que conseguia fazê-lo sorrir nos últimos dias, os amigos Harned e Horace, e o Dr. Alex. Tom chegou logo depois. No dia seguinte, eu acompanhei o cortejo fúnebre até o cemitério de Harleigh, ora ao lado de Mary, ora à frente do caixão. Quando todos já tinham deixado Walt descansar em paz, seu corpo cansado, a vasilha da vida, entregue de novo à sorte da terra, somente eu, Watch, estava ali no seu túmulo, como o guardião da sua alma. Mas a noite chegou e achei melhor voltar para casa. Não por medo de alma penada, mas que Mary estivesse preocupada com a minha demora. Longe de mim essa ideia de medo dos mortos mas há de se respeitá-los para que nos respeitem e não se imiscuam em nossas vidas.
Talvez por nostalgia, o andar errático levou-me de volta ao número 328 da Mickel Street, à velha morada. Você precisava ver, Walt, no que transformaram a sua casa, o seu, o nosso lar. A agradável casa virou uma pensão barata, um pardieiro. O proprietário é um italiano grosseirão, um bronco, de nome Thomas, que sequer sabe quem foi Wat Whitman, e que me enxotou dali como se eu fosse um cachorro sarnento. Dependendo de mim, a nossa velha casa seria transformada em uma fundação, um local de cultivo à sua memória, à memória do ser maravilhoso que você foi, algo assim como a Walt Whitman House. Já pensou? Você chegou, um dia, a imaginar em algo assim?
Aos curiosos que, por ventura, queiram saber a minha aparência física, há pelo menos duas fotografias dessa época. Uma, em frente à casa da Mickle Street, na qual também estão Mary e Tom, de pé nos degraus. E outra, datada de 1891, em que estou conversando com Mary sobre a saúde de Walt, enquanto ela cerze uma das suas camisas, sentada em uma cadeira de balanço. Mas, devo dizer, nenhuma dessas fotos faz justiça à minha beleza; meus antepassados vieram do sul da Europa, da Dalmácia, talvez da Iugoslávia. Parafraseando o meu amado Walt, encerro essas memórias: quem põe os olhos neste relato, não os põe num relato, mas num cão, o cão de Walt Whitman.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

A ESCUNA MALDITA


Edson Negromonte

Esta, para dizer o mínimo, curiosa carta, encontrada entre os pertences do meu tio-avô, o Sr. Hipólito Leal Gomes de Almeida, o último Barão de Guaraqueçaba, pode vir a ser um documento esclarecedor sobre um crime ocorrido há mais de quarenta anos e, até hoje, ainda não esclarecido no município vizinho de Antonina, se estudada sob a luz da compreensão filosófica da alteridade, penso eu. Por isso, e somente por isso, é aqui dada a lume:

“Arquipélago dos Atobás, Ilha Menor, 27 de novembro de 2007.
“Caro Leal, após tanto tempo sem dar notícia, perdoe-me se o deixei preocupado. Aceite minhas desculpas, pois não quis ofendê-lo com meu silêncio, sendo você o único amigo que me restou depois de tudo o que aconteceu. Esta carta é muito mais um desabafo que qualquer outra coisa, já que ultimamente venho sentindo a proximidade da morte, essa mãe amorosa que jamais esquece seus filhos, mesmo os ingratos, e que, mais cedo ou mais tarde, vem resgatá-los do mar proceloso da ignorância e infortúnios no qual a espécie humana se debate e chafurda desde o nascimento. Como não pretendo seguir para o ansiado e silencioso esquecimento do último lar acompanhado do segredo que há tanto me atormenta, o designei como o fiel depositário de minha mazela. Dou-lhe o direito de duvidar do que vai ler, jamais o de fazer pouco caso; compreendo que seja um relato assaz fantástico, mas jamais fantasista. Eis, pois, a razão por que me calei durante tanto tempo, sempre fechando-me em copas todas as vezes em que as nossas conversas resvalavam no assunto.
Você lembra com certeza de quando aquela escuna malldita amanheceu atracada em nosso pequeno porto, no ano de 1977. No primeiro dia de maio, para ser mais exato. Sintomático que fosse a madrugada de 30 de abril, véspera da noite consagrada à Santa Valburga, além do mais, o sábado de um ano bissexto. Sem tripulantes, a escuna estava vazia, deserta, sem carga nenhuma. Lembro-me muito bem da comoção dos moradores da nossa decadente aldeia. Imediatamente começaram a surgir suposições sobre a chacina de toda a tripulação por amotinados, que depois teriam fugido, como ocorrera alguns meses antes com o navio pesqueiro Chin-Kai 2, de bandeira chinesa, encalhado na ilha do Superagui. Outros, os ditos supersticiosos, asseguravam ter visto figuras fantasmais andando pelas ruas. Isso é impossível. Se, durante a noite, alguém tivesse transitado por essas ruelas, eu, com certeza, teria notado, ou melhor, percebido. Devido a um distúrbio do sono, surgido na adolescência, tornei-me um noctâmbulo, perambulando pelos becos a noite toda. Devido a tal distúrbio, desenvolvi uma acuidade perceptiva exacerbada que não permitia que um gato sorrateiro passasse incólume sem que meus ouvidos registrassem este fato aparentemente desprezível para o comum dos mortais, mas que, para mim, não passaria desapercebido em meio à solidão noturna a que me vi, desde então, condenado. Prestes a romper a aurora, voltei a me refugiar em casa, nos livros, o meu lar seguro. Não que eu não pudesse com a luz do dia, longe de mim querer jogar mais sombra sobre a minha personalidade já tão estranhamente ensombrecida. A leitura era, sempre foi, para mim, um paliativo à maldade humana que, ignorante das nuances da personalidade, insiste em excluir os diferentes do convívio social, como uma ameaça; sei que sou somente mais um dos que não se conformam à normalidade. Apesar da segregação surda, nunca ninguém me disse explicitamente que eu não podia fazer parte de algum círculo, mas pelo apelido que me deram, o Velador, é nítida a relação de medo que meus concidadãos tinham comigo. Digo medo porque aquele que é diferente das pessoas comuns gera este sentimento aniquilador, levando muitas vezes à intolerância e ao ódio, como ocorreu em relação aos místicos medievais, queimados nas fogueiras santas. Independente do medo, pelo apelido de Velador é perceptível alguma compreensão, apesar da aparente ignorância à qual estão submetidos, do meu papel em suas vidas, na vida da cidade: o de velar, zelar pela tranquilidade do seu sono, com toda a ambiguidade da palavra “velar”. Além de manter a luz, “velar” também significa ocultar. Você deve estar se perguntando como, com tamanha sensibilidade auditiva, eu não percebi a movimentação no porto, no velho cais de madeira, o qual range a qualquer movimento mais brusco da maré. Não saberia dizer, embora venha-me à mente agora, enquanto escrevo este relato, a nitidez do silêncio daquela sinistra madrugada.
Pela manhã, em meio à multidão de curiosos, eu observava a escuna; pintada totalmente de preto, três mastros e, na proa, em vermelho, a inscrição BAPHA. Meu interesse aleatório por línguas indo--europeias valeu-me então. Sem dúvida, eram caracteres cirílicos Pronuncia-se Varna o nome do barco! Esta palavra soou-me levemente familiar, embora, naquele momento, não conseguisse ter acesso ao escaninho da mente onde ela se alojara. Recorrendo a uma enciclopédia, na biblioteca municipal, encontrei o verbete correspondente: uma cidade turística, aprazível balneário na Bulgária. Somente isso, o que, por certo, não me foi de grande ajuda. Decepcionado (como é da minha índole, eu sempre espero uma revelação), tomei o rumo de casa. Ao chegar, deixei-me cair na poltrona; alguns poucos minutos de sono, durante o dia, eram, e ainda são, suficientes para recompor mental e fisicamente o meu organismo cansado das deambulações notunas. As decepções sempre tiveram o poder de me prostrar. Muitas vezes, durante dias, principalmente quando as decepções vêm acompanhadas de uma interrogação, de uma resposta não obtida. Principalmente as respostas intelectuais. Daí, repentinamente, do nada (eu bem sei que não pode ser do nada, pois essa insignificância ardentemente desejada pelos homens insiste em não existir), em repouso, vem, num lampejo, a resposta. Categórica, certeira, iluminadora, com a qual não há discussão, oriunda dos registros cósmicos nos quais tudo, absolutamente tudo, todas as ações do homem, fica assinalado. Os orientais chamam a isso “registros acásicos”. Não é fácil o acesso a esse manancial do conhecimento de todas as eras, somente quando se tem real necessidade. Eu mesmo, quando estudante devotado dos aspectos místicos da vida, não tinha acesso a eles quando bem entendia. Sei que existem, conforme comprovei nas ocasiões em que tive real necessidade, principalmente quando o apelo não era egoístico. Afundado na poltrona, próximo da sonolência, veio-me à mente a palavra “Drácula”. Sem muita convicção, me dirigi à estante, tomei nas mãos o clássico de Bram Stoker, abrindo-o exatamente no capítulo VII. E, como se tivesse um olho na ponta do dedo indicador, lá estava a palavra! Varna, sim, Varna, o porto de onde partira o conde malévolo em direção a Whitby, na Inglaterra. Mera coincidência, diriam os céticos. Devo confessar que eu também, a princípio, tive o mesmo pensamento.
Com o tempo, a população acostumou-se com a negra e perniciosa presença da escuna, com os meninos, indiferentes a tudo, fazendo-a de trampolim para as suas brincadeiras nas águas turvas da baía. Nem quando grande parte da população foi atacada pela meningite, as autoridades médicas ou os supersticiosos foram capazes de associá-la à escuna maldita. A maldição é a nossa sina desde o princípio; vivíamos sob a condenação da capela erguida pelo fundador da vila sobre um cemitério sambaquita, local respeitado até pelos índios guaranis, os quais foram os responsáveis pelo extermínio do povo do sambaqui. Será que não percebiam o odor acre de urina de rato, muito embora não se percebesse visivelmente a presença dessas criaturas nojentas, espalhando-se pela cidade, a partir da embarcação? O cheiro de terra molhada, apodrecida... Seria exagero dizer “a terra pútrida da Transilvânia”, como ouvíamos nos filmes da Hammer, no Cine Ópera? Era como se a população vivesse em um estado alterado de percepção. De que as pessoas tinham medo? Que os seus piores temores tivessem fundamento? Certo dia, sem que ninguém notasse, arranhei a pintura do casco da nau pressaga com a ponta da chave. No dia seguinte, confirmou-se a minha suspeita: a escuna refazia-se à noite de qualquer avaria. Não havia em seu casco qualquer risco; erguia-se imponente, desafiadora. Será que só eu, o Velador, compreendia a ameaça imanente? Como alertar a população sem que me tomassem por lunático? Aliás, mais lunático ainda. No íntimo, acredito que as pessoas são capazes de pagar um preço alto, muito alto, por permanecerem na ignorância confortadora. Basta-lhes dizer “Deus quis assim” ou “Deus deu, Deus leva”. É fácil culpar um ser superior pelas nossas desgraças, muito fácil nos eximirmos da responsabilidade quando nos fazemos de joguete nas mãos implacáveis do Grande Titereiro, movendo-nos para lá e para cá, ao seu bel-prazer. Desculpe-me, mas não posso crer em um Deus caprichoso. Veja bem, não estou blasfemando, é somente que a minha concepção da divindade é muito diferente. E não se dê ao trabalho de querer saber, meu amigo, qual é o meu Deus; a minha concepção é única e exclusiva, somente a mim serve, somente a mim diz respeito, mas, tenha certeza, você não gostaria de conhecê-la; revoltá-lo-ia.
Admito que o vampiro de Stoker martelou o meu cérebro durante dias. Para mim, não há coincidências; recusei-me, como recuso-me até hoje, a aceitar tal alternativa. Para mim, as coisas relacionam-se muitas vezes de maneira desconhecida. O certo é que se relacionam, embora não consigamos compreendê-las na totalidade neste plano terreno. O que dizer, então, do nome da escuna? Coincidência? E o surto de meningite? Não foi este o diagnóstico médico quando o desafortunado Jonathan Harker foi encontrado pelas freiras, após conseguir fugir do castelo amaldiçoado? O que sei é que o carnaval, a história, se repete, muda somente a fantasia. Intimamente, eu sabia que esses fatos estavam relacionados. Só não atinava como, quando em uma das minhas andanças noturnas vi luzes na casa do morro. Há anos aquela casa estivera desocupada, desde que o prefeito Valdomiro ali matara toda a família com requintes de crueldade, empalando as vítimas e, dizem, bebendo-lhes o sangue. Depois disso, a maior casa da cidade, a qual chamávamos de castelinho, foi abandonada à própria sorte, às ruínas. Lembra-se disso? Só uma observação: como tem ruínas a nossa aldeola. Sobrevoá-la é a constatação de uma cidade bombardeada, só escombros; um mundo de aparências, universo de sombras ao qual se acha por bem fechar os olhos.
Sempre tive a fama de nefelibata, com a cabeça eternamente nas nuvens, mas os fatos aqui narrados me darão razão. Pelo menos, a sua razão, assim espero. As coincidências com o vampiro stokeriano não param por aí, pois o romance foi baseado em acontecimentos reais apropriados pelo folclore, a crendice popular onde reside a verdade. Para mim, era cada vez mais gritante a pergunta: O que a sanguessuga transilvânica fazia em nossa Antonina? Embora meu cérebro se recusasse a crer, algo mais íntimo dentro de mim, a convicção da minha alma (ou devo dizer mais apropriadamente “de meu sangue”, posto que os antigos acreditavam ser o sangue a morada da alma?), insistia na presença do ser terrível. Certamente, mais forte com o passar dos anos, ele vinha em busca de algo maior, não somente sangue. Você deve estar achando muito estranha toda esta exposição, peço-lhe apenas que a leia até o fim, sem pré-julgamento. Posso vê-lo balançando a cabeça, com ganas de abandonar a leitura, devido a sua educação cristã. Rogo que não me deixe falando ao léu, tudo o que preciso neste momento é desabafar com um amigo verdadeiro. Não peço que me dê crédito, mas leia-me até o final.
O que o maldito brucolaco buscava? O que ficara inconcluso para que o príncipe das trevas se aventurasse tão longe dos Cárpatos? Sim, esta é a formulação correta da questão! Esperei a resposta e nada. Eu, por um momento, cheguei a duvidar de tudo, admito, quando meus ouvidos foram surdamente assaltados por uma palavra, um nome: Mina! Sim, Mina! Mina, o desejo inalcançado, irrealizado. Sim, os vampiros também são movidos pelo desejo! No cartório, infrutíferas foram minhas averiguações; desde a sua abertura, nniguém fora registrado com este nome. Desanimado, voltei para casa, deixando-me cair na poltrona em busca do lenitivo que só o sono é capaz de proporcionar. Despertei sobressaltado com um nome de mulher martelando-me a cabeça: Guilhermina. Sim, o nome cujo apelido era Mina! Sim, a filha mais nova de uma família tradicional da cidade, os Tepes, a jovem por quem todos choraram ao despencar de carro de um despenhadeiro, em alta velocidade, na Serra da Graciosa. Sim, tornava-se então evidente a relação do aportuguesado Guilhermina com a Wihelmina do romance, nome de origem teutônica, a protetora resoluta. Seria Guilhermina a reencarnação de Wihelmina, a nossa Mina, a virgem dos cabelos negros e cacheados, da pálida pele de opala, cuja lápide ostentava um retrato merecedor de admiração, e até a adoração, dos estrangeiros vindos sabe-se lá de onde, aos quais chamávamos de ciganos? E o que pensar do seu sobrenome Tepes, Guilhermina Tepes? Seria leviandade relacioná-lo com o do cruel Vlad III, príncipe da Valáquia, conhecido como o empalador? Que caminhos tortuosos traça a lei do eterno retorno para os devidos resgates cármicos? Coincidência, diria você. Justaposição? Sincronia? Pois, hoje, posso asseverar, de acordo com meus estudos quânticos, indo contra toda a ciência, que o tempo, essa realidade somente terrena, portanto, útil apenas às finalidades da matéria, é diacrônica, jamais sincrônica. De posse dessa certeza é que posso explicar, talvez somente para mim mesmo (gostaria que você, em nome da nossa longa amizade, me acompanhasse), o motivo por que o morto-vivo estava entre nós, tão longe da terra natal, após tantos séculos: o amor. Sim, somente este sentimento é capaz de explicar tamanho deslocamento da sua realidade imediata. Afirmo ainda que é a diacronicidade do pensamento moderno, fragmentário, através dos séculos, era sobre era, que fortalece o vampiro, seja pelos livros, filmes, lendas. Hoje, a luz do dia não mata mais os vampiros, como dantes, somente os enfraquece. Por isso, desta vez, ele, o excomungado, não repetiria, como não repetiu, os erros do passado. O amor, e somente o amor por uma mulher, pela mulher amada, fez com que o conde viesse de tão longe, das brumas do passado, atravessasse o oceano de Cronos, para alcançá-la. Até mesmo a empedernida ciência dos homens chega a admitir atualmente a existência dos vampiros psíquicos, para explicar os males de um mundo em desarmonia consigo mesmo.
Aconteceu, como já se podia prever, de me ver envolvido com uma investigação por conta própria sobre o conde, sobre a sua permanência em Antonina. Noite e dia, vi minha mente ocupada por essa obsessão, perseguindo como uma sombra invisível as pegadas do vampiro. Onde quer que ele estivesse, lá estava eu, à espreita. Foi assim que vi os lobos, espectros de lobos, cinzentos, rondando, protegendo a antiga mansão do prefeito, no alto do morro, a qual chamávamos de castelinho. Lembra-se da canção “As crianças da noite fazem a sua música”, ouvida na voz das lavadeiras de nossa terra, em nossa infância? Estou, hoje, convicto de que esta cantiga aparentemente singela (não vivemos num mundo de aparências?) era o vaticínio da futura vinda do brucolaco. Lembra-se também do verso na lápide de Mina, versos estes intrigantes, dignos de um poeta ultrarromântico de província: “Dos recõnditos abismais, cessam os uivos, levanta-te, ó alma”? Seria loucura ver neles a intenção de um acróstico macabro? Peço ao amigo que exclua do epitáfio o artigo “os” e a interjeição ó”, mera partícula expletiva. O que acontece? Forma-se a palavra, o nome Drácula. Eu vejo nisso os liames de uma incognoscível matemática cósmica, que sempre se escapa como areia fina por entre os dedos do buscador.
Mesmo neste paraíso que é o Arquipélago dos Atobás, mormente a Ilha Menor, de beleza exuberante, ainda tenho pesadelos com tudo o que vi e presenciei, acordando no meio da noite suado, sobressaltado, a camisa do pijama molhada. E choro; as lágrimas são a chuva redentora da alma. Apesar de tudo, sinto-me então estranhamente rejuvenescido, com força sobre-humana, apesar da imagem do cemitério e o seu ocorrido grudados em mim, em meus olhos arregalados, como moscas de cozinha em papel pega-moscas, me trazerem de volta à realidade mesquinha, definhante. É justamente por isso, por esse irreversível enfraquecimento de meu invólucro físico, muito embora curiosamente eu sinta as faculdades mentais cada vez mais aguçadas, que me faz sentir às portas da benfazeja morte, a mãe misericordiosa, é que lhe estou endereçando esta missiva, o testamento de um homem inocente de todo o mal que lhe imputaram e ainda imputam. Peço-lhe que só a torne pública, se isso lhe convier, após o meu passamento. A mim, hoje, interessa principalmente que você, meu único e grande amigo, saiba toda a verdade. Verdade essa que fiz questão de ocultar dos meus contemporâneos, apesar de sofrer enormemente com a sua execração; meu ódio por eles foi, e ainda é, tanto que até hoje me regozijei em mantê-los na ignorância. Haverá vingança maior que saber que fomos injustos em nosso julgamento e que nada mais poderá ser feito para reparar tal dano? Que, por nossa causa, por nosso juízo afoito, fizemos alguém passar os ditos melhores anos da vida, para mim os piores, atrás das grades de uma penitenciária, depois, de um manicômio mais imundo ainda, por um crime não cometido, se é que crime houve. Sim, eu presenciei toda a cena do cemitério, mas nela não tomei parte. Seria o expectador, segundo a lei dos homens, responsável pela atuação, boa ou má, dos atores? Então, o talento e a genialidade não estariam com Sir Lawrence Olivier, mas com a plateia? E o que sobraria para Shakespeare?
Na noite desgraçada, eu segui a minha intuição: uma voz dentro de mim, de início sutil, logo intermitente, que recomeçava a curtos intervalos, cada vez mais impositiva, a qual mandava-me ir ao cemitério, onde a bela e casta Mina fora enterrada. Ao chegar, a lua cheia, uma esfera magnífica no céu, tudo iluminava, especialmente o túmulo de Mina, sortílega. Não precisei esperar muito; um pouco depois da meia-noite, a hora aziaga, escondido atrás do grande jazigo dos Oliveira, posição que me dava boa visibilidade, eu vi o imundo nosferatu surgir, se materializar. À sua chegada, pesadas nuvens negras, em promíscuo conluio, ocultaram a lua. E como se o ator principal desse drama macabro precisasse de testemunho, da minha cumplicidade, da minha conivência, diriam os juristas, a silhueta esguia, mais negra que o negrume ora instaurado, de energia descomunal, retumbante, deu início à exumação de Mina. Diante da cena atroz, repulsa e ódio. Apesar da escuridão, eu vi, percebi o sorriso da horrível criatura. Preso ao chão, os pés cada vez mais pesados, não pude correr dali. Morbidamente, apesar do terror, eu devo admitir que, estranhamente, meu coração se comprazia com tudo aquilo, deleitando-se, abandonado diante do espetáculo: desprovido de ferramentas, ele, o desventurado, utilizava-se somente de gestos, tal e qual o senhor dos elementos, a terra da cova se erguia aos montes, girava em espirais, rodopiava no ar, espalhando-se pelos túmulos em um bailado macabro, porém apaixonante. Em seguida, com um único gesto, exato, taumatúrgico, ele trouxe o esquife virginal à superfície: branco, intacto. Num supetão, a tampa se rompeu, revelando a beleza de Mina, perfeita, entreabertos os lábios vermelhos, ainda, após tanto tempo, intocada pelos vermes interiores. Viva, sim, viva! Rediviva! Abriu os olhos, aparentemente vinda de um sono breve e repousante. Mina, o desejo inalcançado, agora realizado! Ante a violação do sono sagrado, senti ter sido eu escolhido pelo Diabo, ou pelos Céus, quem sabe, para presenciar o acontecimento do amor, atitude arrebatadora capaz de transgredir as leis naturais, às quais todos os seres se submetem, menos aqueles capazes de amar incondicionalmente. Foi neste momento ensurdecedor (sim, ensurdecedor, não há outro termo para descrever a sensação de que fui acometido. Seria isso a música das esferas?), em que desmaiei, justamente quando o conde a tomava nos braços e com ela, para sempre, desaparecia. Quando recobrei os sentidos, encontrava-me já detrás das grades, acorrentado, como se eu fosse um monstro, a besta-fera responsável pelo desaparecimento do cadáver de Mina.
Certo de que não mais nos veremos, agradeço sinceramente a nobreza de sua amizade. Parto com a certeza de que muitas questões ficaram inconclusas, mas não é assim mesmo a vida, incompleta?
Sinceramente seu,
R.