quarta-feira, 13 de agosto de 2014

AS MAIS DOCES MEMÓRIAS DE WATCH



Edson Negromonte

Sou conhecido como Watch, embora não seja este o meu verdadeiro nome, mas foi assim, com esta alcunha, que passei à história. Devido à idade avançada, só então resolvi dar a público um pouco do que conheço sobre o poeta Walt Whitman, com quem convivi durante sete anos. Não direi sobre a sua arte poética, deixo-a aos exegetas, os quais se sairão bem melhor do que eu. Quero contar do homem, melhor, do amigo Walt. Thomas Donaldson, um grande amigo, sempre o tratou respeitosamente por Sr. Whitman, embora este o tratasse por Tom. Eu não, sempre o chamei de Walt; nossa amizade era tão verdadeira que abria mão dessas formalidades, apesar da diferença de idades. Era um boa-praça o velho, tratava-me de igual para igual, havia uma camaradagem entre nós. Falava comigo como se fala a um companheiro, sem fazer diferença. Afinal, não somos todos iguais perante o Criador, para quem não há hierarquias no plano da criação?
Durante sete anos, os últimos sete anos da sua vida, fomos felizes juntos. Cheguei à casa da Mickle Street, de mudança, acompanhado de Mary. Era muita tralha para uma casa tão pequena. Para mim, na minha pouca idade, tudo parecia muito grande. Hoje, não consigo entender como Mary conseguiu acomodar toda a mobília e os seus pertences pessoais, principalmente a coleção de gravuras; nada como um toque feminino para dar vida às coisas. E, ah, como aquela casa precisava da presença de uma mulher! Tudo se transformou com a chegada de Mary. Além de todo o cacareco, ela trazia ainda na bagagem várias gaiolas com passarinhos, entre eles, um canário que cantava maravilhosamente bem, um trinado muito doce, e um, argh!, gato que imediatamente, nem bem chegou, aninhou-se no colo de Walt. (Não sei dizer porquê, mas detesto gatos. Essa minha ojeriza talvez seja fruto da superstição, mas, independente disso, dava gosto ver o grande inaugurador da poesia americana brincando com o felino, balançando para lá e para cá um barbantinho com uma bola de papel amarrada na ponta). Além disso, Mary trouxe ainda algumas galinhas poedeiras. E, pasmem, um papagaio empalhado! Para que serve um papagaio empalhado? Como enfeite, é de supremo mau gosto. Aquelas penas já desbotadas serviam somente como depósito de poeira. O papagaio era herança do Capitão Fritzinger, seu antigo patrão. De todos os objetos, o que mais agradou a Walt foi a miniatura de um veleiro, cuja delicadeza e beleza não se cansava de louvar.
Para melhor compreensão, devo acrescentar que a minha amizade com Walt é anterior à nossa mudança para a sua casa. Vem do tempo em que ele mendigava pelas ruas de Camden, envolto em trapos, as galochas desbeiçadas. Dava pena olhar o velho homem enfrentar a chuva gelada. Eu, do meu refúgio aconchegante, ficava consternado ao vê-lo passar. Até que, numa noite enregelante, de arder nos ossos, ele bateu à nossa porta, em busca de um prato de sopa, levado pelo cheiro bom que vazava para a rua. Como você deve saber, o olfato fica mais aguçado no tempo frio. Desse dia em diante, ele tornou-se um visitante contumaz. Mary nunca deixou de lhe oferecer um prato de comida ou um café quentinho, o qual ele aceitava de bom grado, até que acabou convencendo-a, quando a sua situação melhorou, a ir com ele morar, na condição de governanta. Antes, eu adorava andar à toa pelas ruas de Camden, mas, depois da mudança para a Mickle Street, não desgrudei mais de Walt. Ele era carinhoso e compreensivo comigo. Não que Mary não fosse bondosa comigo, mas é compreensível a minha necessidade da figura masculina. Assim, apeguei-me a ele, como um menino se apega ao pai. Apesar de nunca ter me faltado nada, eu ficava de olho grande no café de Walt, principalmente nas torradas. Percebendo isso, ele era muito sensível, passou a dividi-las comigo. Uma das suas iguarias favoritas, as ostras, eu nunca consegui apreciar; aquilo enrolava na minha boca e eu era obrigado a cuspi-la.
As visitas à casa eram frequentes. E silencioso, quieto, sempre calado, mas atento, eu muito aprendi sobre a vida ouvindo a conversa de homens sábios, como o atencioso Tom. Um dos visitantes mais cativantes, a meu ver, foi o jovem Abraham, que ficaria famoso, anos mais tarde, como Bram Stoker, o festejado autor do romance “Drácula”. Que delicadeza de modos! Walt também ficou encantado com ele, conforme eu o ouvi dizer ao Tom. A cada frase dita por Abraham, os olhos de Walt brilhavam. Eram mesmo muito espirituosas, podendo-se dizer formidáveis, de aguda perspicácia. Quanto conhecimento eu adquiri sobre a alma humana só de ouvir a conversa entre esses homens inteligentes. Às vezes, eu dava um aparte, emitia a minha opinião, um breve comentário. Eles viravam-se, então, para mim e sorriam. Nessas ocasiões, Walt fazia-me sempre um afago paternal na cabeça, orgulhoso. Sobre o brilho dos olhos de Walt, seria necessário um capítulo à parte ou mesmo um livro. Sem exagero, aquele par de olhos azuis irradiava tanta energia, eram tão eloquentes que o seu dono não precisava falar para ser compreendido; eram o oceano no qual eu me perdia para me reencontrar. Precisava ver o brilho dos seus olhos quando os amigos o presentearam com uma bela charrete, atrelada a um pônei, pareciam os olhos de uma criança diante do tão almejado presente de Natal. Perdão se soo piegas aos seus ouvidos empedernidos, é que a idade avançada e as boas lembranças do meu velho amigo, a quem tanto devo, dão-me esse direito. Seus olhos luziam com a chegada da correspondência, mas principalmente com as cartas de um poeta inglês de sobrenme Tennyson, a quem tinha muita consideração.
Enquanto os adultos o temiam, talvez pelo caráter libertário dos seus versos, talvez pelo magnetismo da sua personalidade, as crianças o amavam. E ele a elas. Uma das suas brincadeiras favoritas era rolar algumas moedas de pouco valor, do alto da janela do segundo andar, deixando-as cair na calçada, enquanto as crianças brincavam na rua, encarapitadas nas portas do porão. Quanta satisfação em seus olhos, que sorriso peralta diante dos gritinhos de surpresa dos meninos. Por aí, pode-se ver que o dinheiro não tinha para ele nenhuma importância, desmentindo que fosse um velho sovina. Que alegria ao ver as crianças voltando com as mãos cheias de balas e doces! Sobre o medo que os adultos dele sentiam, há uma história muito interessante, um boato que até hoje perdura, inspirada no conto “João e o Pé de Feijão”, de que um dos vizinhos entrara sorrateiro, sem que ninguém o visse, na casa de Walt e, lá, encontrara um gigante devorador de homens, explicando porque as pessoas entravam e jamais saíam daquela casa. Diziam ainda que Mary cozinhava as sobras para dá-las ao cachorro. Argh, que imaginação fértil, assaz mórbida!
Todos os biógrafos insistem em dizer que a casa de Walt era exígua, muito pobre, a menor e a mais feia do quarteirão. Para mim, assemelhava-se a uma mansão. Havia, inclusive, no lado esquerdo, um portão providencial, fácil de abrir, bastava um empurrão, que dava acesso ao beco. Quando se chega à adolescência, a gente precisa dar umas escapadelas noturnas, você sabe, namorar. Mas grande parte dos dias, nesses adóraveis sete anos de convivência com Walt, eu passei em casa.compartilhando nas noites geladas o fogo da lareira que havia no seu quarto, junto a qual ele também gostava de sentar. Interessante que os ruídos que a todos incomodavam, inclusive a mim, como as manobras dos trens de carga (a estação ferroviária ficava a uma quadra da casa), o coral desafinado de uma igreja muito próxima, as badaladas estridentes do sino, tinha eu os ouvidos bem sensíveis, o entrechocar-se das composições, não incomodavam Walt, à sua sensibilidade. Pelo contrário, pareciam parte intrínseca da sua inspiração. Dizia não compreender aqueles que necessitam se isolar em torres de marfim, enquanto ele, por sua vez, necessitava dos espaços abertos. No início, foi difícil me acostumar ao barulho dos trens, principalmente à noite, às manobras, o choque contra os vagões, o engate. Havia ainda o odor fétido, insuportável, de uma fábrica de guano que despejava os detritos no Delaware. Esse cheiro acre tornou-se terrível, nauseabundo, no verão terrível de 1887. Mas nada disso parecia afetar Walt. A única coisa que realmente o incomodava eram as mulheres da vizinhança varrendo, espalhando a água da sarjeta depois da chuva. Isso o irritava sobremaneira pelo perigo das doenças, principalmente a malária. Lembro-me nitidamente, como se fosse hoje, passados tantos anos, de Walt gritando da janela para que elas parassem com aquilo. Pensa que paravam? Continuavam com a varrição. Assim como eu, o bardo americano tinha horror a vassouras. A única vez que vi Walt realmente zangado foi quando Mary, certa ocasião, aproveitando-se da sua ausência (ele fora passar uma semana na casa de amigos), achou por bem arrumar, dar um jeito, na bagunça que era o quarto do poeta. Para ele, cada pedacinho de papel tinha um valor especial, mesmo os amassados na lixeira, os quais reabilitava em busca de um verso anteriormente descartado.
Um dos seus passeios favoritos era a travessia do Delaware, em direção à Filadélfia, assim como eu, que gostava de acompanhá-lo. Ao chegar do outro lado, ele se despedia de mim, mandando-me voltar direito para casa. Ah, se a sempre tão preocupada Mary o visse empoleirado, feito um adolescente, na amurada da balsa, apesar da crescente paralisia, sentindo o vento na cara... Era uma visão emocionante! Os passeios de Walt davam-me uma espécie de ausência... Ora, para que falsear, causavam-me uma grande ausência. Sem ele ao meu lado, era como se faltasse a melhor metade de mim mesmo. Apesar de gostar muito do burburinho da cidade grande, com a idade ele foi se afeiçoando cada vez mais à vida no campo, chegando a cogitar uma mudança para Timber Creek. Contou-me, certa vez, com tanto encantamento sobre Timber Creek que até eu me senti tentado a mudar para lá. Quando Walt se ausentava, eu voltava a dormir no divã da sala. À sua volta, quanta alegria! Ele gostava muito de Mary, isso era patente em seus olhos todas as vezes que Walt voltava para casa, vindo de uma das demoradas visitas a amigos; seus olhos sorriam ao vê-la de novo. Com Mary, ele sentia-se protegido. Nos dias de sol, quando estava disposto, amparado por Mary, sob os meus cuidados também, ele sentava-se em uma cadeira na calçada, com um dos pés apoiado, encaixado no tronco do sombreiro que ficava em frente à casa. Era um sombreiro muito velho, venerável, que chegava a ultrapassar o sobrado em que morávamos. Uma das curiosidades sobre Walt era o seu estranho hábito do banho diário. Devo aqui confessar que até hoje, apesar da idade avançada e da consequente sabedoria, me repugna a simples ideia de tomar banho todos os dias. Acho que amolece o caráter. Walt adorava ficar imerso na tina de água quente até começar a esfriar. Nos últimos anos, acabou adquirindo uma bela banheira, na qual nunca me atrevi a entrar. Ele nunca me convidou, eu nunca fiz questão.
Quando a popularidade de Walt cresceu, a afluência de pessoas à casa tornou-se maior, atrapalhando a vida doméstica. Mary então se perguntava onde estavam todos esses amigos e admiradores no tempo das vacas magras, quando Walt, já doente, devido aos esforços da Guerra, socorrendo os enfermos, se arrastava pelas ruas de Camden, mendigando um mísero prato de comida para aplacar a fome que lhe corroía as entranhas. Walt tratava muito bem a todos, mas algumas vezes recusava-se a recebê-los, principalmente quando estava envolto com a construção de um poema ou, melhor, fundando a autêntica poesia americana. Rasgar notícias de jornal, recortar matérias de revistas, ilustrações que lhe chamavam a atenção, aparentes ninharias, este era o método poético de Walt, um deles, aliás, nada era para ele maior ou menor, ou desprovido de interesse. Mesmo uma simples aranha, tecendo tranquilamente a sua teia no canto do teto, era para ele motivo de admiração, de embruxamento. Ainda sobre a rotina doméstica, digo, sobre a quebra dessa deliciosa rotina, foi a chegada de um escultor e um pintor. Os dois com pretensões de imortalizar Walt Whitman. Foi um reboliço, Mary de cabelo em pé, assustada com tudo isso, os dois, um implicando com o outro, em busca da melhor luz... até que, um dia, foram finalmente embora. Não que eu não gostasse de Morse e Gilchrist, mas eles me roubavam a atenção de Walt.
Walt era mesmo genial! E olhe que a pouquíssimos seres humanos eu aplico este epíteto tão banalizado nos dias que correm: é genial pra lá, genial pra cá, enfim, tudo tornou-se genial e, na realidade, nada mais é genial. O Dr. Bucke um médico canadense, muito amigo de Walt, um dos seus testamenteiros, chegou a estudá-lo como um tipo de mente superior, dedicando-lhe pelo menos dois volumes. Ele chamou a isso de “consciência cósmica” ou “consciência crística”, embora até hoje eu não compreenda muito bem, em toda amplitude, o significado disso tudo, mas confio na competência do Dr. Bucke. Se Walt o tinha em boa conta, eu também. Todas as vezes que Walt precisou, o Dr. Bucke veio em seu auxílio, visitando-o várias vezes durante a longa enfermidade que se abateu sobre o poeta, do verão de 1888 à primavera de 1892. A desgraça teve início quando, logo depois do seu aniversário, fomos, eu e ele, até a beira do rio contemplar o por do sol no Delaware, o seu amado Delaware. Embevecidos com tamanho espetáculo, nos esquecemos da hora (como se Walt se preocupasse com essas coisas), a noite chegou e, com ela, o sereno e a friagem, terríveis para alguém de saúde tão fragilizada como Walt. Voltamos para casa no avançado da noite, já sentindo os sintomas de um resfriado maligno, o qual o levou a um estado de coma. Durante dias, eu, Mary e Tom ficamos ao lado do seu leito, ansiosos, até que ele foi se recuperando aos poucos, mas a sua saúde nunca mais foi a mesma. Este foi o último passeio de Walt.
O seu último aniversário, de 72 anos, foi uma festança, uma comemoração à altura, móveis sendo arrastados para os cantos, as portas dos salões contíguos sendo despregadas para acomodar todos os convidados, uma azáfama sem igual. Tudo transcorreu de acordo, a não ser quando um chato, de voz empostada, altissonante, pomposa, resolveu recitar um poema de Walt (você sabe como são os puxa-sacos), o belíssimo “O Captain! My Captain!'. Aquela falta de sensibilidade foi me dando nos nervos, esquentando os tímpanos, que quando dei por mim eu já o estava arremedando. Mandaram que me calasse, fizeram “pssit”, mas levei a molecagem até o final e só então me retirei do salão, vingado. Ainda vejo o sorriso condescendente de Walt.
Infelizmente, a morte chega a todos, até aos gigantes. Desculpe, mas quando se trata de Walt, não tenho meio-termo. Lembro-me como se fosse hoje do final da tarde do dia 26 de março de 1892, um sábado, quando o meu fiel companheiro partiu para os eternos campos de caça. Além de mim e Mary, estavam presentes o seu enfermeiro Warry o único que conseguia fazê-lo sorrir nos últimos dias, os amigos Harned e Horace, e o Dr. Alex. Tom chegou logo depois. No dia seguinte, eu acompanhei o cortejo fúnebre até o cemitério de Harleigh, ora ao lado de Mary, ora à frente do caixão. Quando todos já tinham deixado Walt descansar em paz, seu corpo cansado, a vasilha da vida, entregue de novo à sorte da terra, somente eu, Watch, estava ali no seu túmulo, como o guardião da sua alma. Mas a noite chegou e achei melhor voltar para casa. Não por medo de alma penada, mas que Mary estivesse preocupada com a minha demora. Longe de mim essa ideia de medo dos mortos mas há de se respeitá-los para que nos respeitem e não se imiscuam em nossas vidas.
Talvez por nostalgia, o andar errático levou-me de volta ao número 328 da Mickel Street, à velha morada. Você precisava ver, Walt, no que transformaram a sua casa, o seu, o nosso lar. A agradável casa virou uma pensão barata, um pardieiro. O proprietário é um italiano grosseirão, um bronco, de nome Thomas, que sequer sabe quem foi Wat Whitman, e que me enxotou dali como se eu fosse um cachorro sarnento. Dependendo de mim, a nossa velha casa seria transformada em uma fundação, um local de cultivo à sua memória, à memória do ser maravilhoso que você foi, algo assim como a Walt Whitman House. Já pensou? Você chegou, um dia, a imaginar em algo assim?
Aos curiosos que, por ventura, queiram saber a minha aparência física, há pelo menos duas fotografias dessa época. Uma, em frente à casa da Mickle Street, na qual também estão Mary e Tom, de pé nos degraus. E outra, datada de 1891, em que estou conversando com Mary sobre a saúde de Walt, enquanto ela cerze uma das suas camisas, sentada em uma cadeira de balanço. Mas, devo dizer, nenhuma dessas fotos faz justiça à minha beleza; meus antepassados vieram do sul da Europa, da Dalmácia, talvez da Iugoslávia. Parafraseando o meu amado Walt, encerro essas memórias: quem põe os olhos neste relato, não os põe num relato, mas num cão, o cão de Walt Whitman.

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