domingo, 31 de agosto de 2014

UM PRESENTE DO HAITI

Edson Negromonte

Nunca fui de acreditar nessas coisas de magia negra, mas sempre respeitei todas as religiões e suas idiossincrasias, mesmo o vodu. Sim, o vodu, que apesar de tudo, de todo o falso folclore que essa pequena palavra implica, que o cinema, principalmente o americano, se encarregou de criar e difundir para o mundo inteiro, é também considerado uma religião, oriunda do Haiti. Todo o meu drama começou quando o meu primo Frederico Werner trouxe-me de presente uma boneca vodu, após uma viagem de estudos a este país, comprada em Porto Príncipe, com o meu nome bordado nas costas. Meu primo é antropólogo, vive viajando e pesquisando nas paragens mais insólitas do planeta. A sua última viagem, ao Haiti, levou-o a conhecer vários xamãs, tanto do sexo masculino como feminino, que se diziam capazes de tirar a vida a outros seres humanos por meio da feitiçaria. Brincalhão como sempre, Frederico encomendou a uma autopropalada suma sacerdotisa dessa seita, uma conhecida “mambo”, que tem uma tenda no soberbo Mercado de Ferro, uma boneca com o meu nome. Por que não o dele? Chegou-me, uma noite, com o inusitado presente e, ante a minha cara de espanto e repugnância, desafiou-me, zombeteiro, a deixá-la exposta na estante de livros que fica às minhas costas, em meu escritório, afiançando que nada me aconteceria. Ou melhor, que só me aconteceria algo de ruim se eu acreditasse em maldições. A vontade de mostrar-me corajoso perante meu primo mais velho, o qual sempre zombou do meu respeito pelas coisas do outro mundo, respeito que ele sempre interpretou como medo, levou-me a aceitar o desafio. Ora, pensei, que mal poderia fazer uma bonequinha inanimada? Sou um homem moderno, citadino, e não devo, ou não deveria, me assustar com essas crenças primitivas; o ceticismo deve ser cultivado no dia a dia, nos menores gestos do cotidiano. A dúvida deveria ser um exercício constante para que vivêssemos melhor, sem preocupações inócuas com a metafísica. Nos primeiros dias, ao menor ruído, principalmente de madrugada, o melhor horário para concatenar as ideias que surgem durante o alvoroço da claridade diurna, eu virava-me para trás, para me certificar de que ela, a boneca vodu, ainda estava ali, na estante ás minhas costas, imóvel.
Na adolescência, eu e Frederico costumávamos, na saída dos bailes, ir à procura de despachos nas encruzilhadas da cidade. Na madrugada, com a fome que estávamos, saboreávamos o frango e a farofa preparados, com todo cuidado e higiene, para o santo. Satisfeito o instinto mais básico do ser humano, a fome, arrematávamos a refeição com uma boa talagada de pinga. Às vezes, champanha. Ou melhor, cidra. Geralmente, da marca Cereser. Saíamos os dois, satisfeitos, de peito estufado, cada um com um cigarro no bico, e levando conosco o maço de Hollywood (até hoje não entendi a preferência das entidades femininas por essa marca. Talvez porque supostamente todas as mulheres, mesmo a temível Pombajira, sonhem ser atrizes de cinema). Conforme combinado de antemão, oferecíamos cigarros aos amigos, deixando-os darem algumas tragadas para depois lhes contar, para desespero deles, e para nosso gáudio, de onde os tínhamos surrupiado. Atiravam os cigarros longe, maldiziam, pediam desculpas ao mundo invisível, diante das nossas gargalhadas. Quando o despacho era direcionado para uma entidade masculina, saíamos fumando charutos Suerdieck. Confesso que, se fosse pela minha vontade, deixaria que Frederico tomasse a dianteira no saque à oferenda, mas ele, cinco anos mais velho, achava-se no dever de fazer de mim um homem corajoso, sem temer nem mesmo almas do “outro mundo”, coisa que ele reputava inexistente, artifícios do poder para manter o semelhante à mercê dos desmandos da vontade alheia. Uma tarde, depois do almoço, dormindo de bruços, curtindo a ressaca de uma boa carraspana na noite anterior, ouvi chamarem meu nome. Ao erguer a cabeça para ver quem era, levei uma bofetada que deixou meu maxilar dolorido dias seguidos. Não havia ninguém no quarto. Levantei-me espantado, olhei no espelho do banheiro e lá estava, estampada em minha cara, a marca dos cinco dedos do espírito agressor. Pelo sim, pelo não, instintivamente prometi ao Altíssimo que jamais voltaria a profanar a comida dos santos. Mas a amizade com meu primo permaneceu inabalada, sempre fomos unha e carne, apesar de todas as enrascadas em que ele me colocava.
Sempre acreditei, ou quis acreditar, que não fosse supersticioso, mas eu, que tinha uma saúde de ferro, me vi, de um dia para o outro, desde que fora presenteado com aquela pequena boneca de pano, de cabelo de palha, com o meu nome bordado nas costas, acometido de dores de cabeça as mais atrozes. O bom e idoso médico da família aconselhou-me a não dedicar horas ininterruptas e excessivas ao trabalho intelectual. De início, a contragosto, comecei a ocupar algumas horas da madrugada com a programação da TV ou eventualmente a um sono rebelde, o que não me impediu de continuar acordando com dores de cabeça lancinantes. Sim, literalmente sentia meu cérebro atravessado por lanças haitianas. Encaminhado pelo médico, fiz um eletroencefalograma, o qual constatou que nada havia de anormal em meu cérebro, nenhum aneurisma, nenhuma dilatação de vasos sanguíneos, nada. Segundo o neurologista, minha cabeça estava em ordem. De onde vinham, então, as fortes dores que chegavam a incapacitar a concentração, a incompreensão de um mísero parágrafo das monografias de meus alunos? Orientado por um conhecido, passei a frequentar uma academia. Como sempre achei maçante a ginástica, nem a boa vontade e todo o desvelo da bela e bem fornida treinadora foram suficientes para que eu desse prosseguimento aos maçantes exercícios físicos. Para alguém afeito ao mundo dos livros, esse período passado em uma academia é tempo perdido, desperdiçado. Contra todas as evidências, decidi que como as dores de cabeça surgiram, isto é, do nada, haveriam de cessar de uma hora para outra. Ledo engano, as dores, que eram intermitentes, foram se acentuando cada vez mais, até se tornarem contínuas, isto é, uma única dor, sem que eu pudesse diagnosticar o começo ou o fim, uma única nota musical, grave, surda, como o bater de um tambor que soasse indefinidamente, um mantra dos infernos.
Extenuado, os membros lassos, deitei-me, uma manhã de final de outono, o inverno insinuando-se, no sofá do escritório, em busca de um cochilo reparador, para nunca mais levantar. Vi-me, no mesmo instante, incapaz de um único movimento dos membros, tanto inferiores como superiores, o corpo prostrado. Nem a cabeça eu conseguia mexer. Somente os olhos continuavam em plena atividade, vivazes. Não conseguia-me fazer entender a ninguém, nem mesmo à minha mãe, pródiga em cuidados e carinhos, fazendo tudo de que era capaz, alimentando-me, dando-me de beber, atendendo as minhas necessidades fisiológicas: urinar e defecar. Pequena e magra, a pobre mulher trocava minha roupa de cama, movimentando-me com muito sacrifício de lá para cá, de cá para lá. Insatisfeita com o parecer de um, chamou outros médicos, os quais davam os diagnósticos mais disparatados, apesar de meus olhos expressarem inutilmente o terror que eu lhes queria comunicar. Ou o horror que por eles, os médicos, sempre tive. Tempo chegará em que a medicina terá de aceitar que também se adoece da alma, sob a pena de cair no mais completo descrédito. Mas antes a medicina terá de admitir a existência desse corpo sutil, a alma. Enquanto isso não acontecer, cada vez mais os homens, principalmente nas grandes cidades, sucumbirão a doenças ainda inominadas, às quais dão hoje o nome genérico de câncer. Para a medicina atual, tudo é câncer. Jamais passou pela cabeça de minha mãe, evangélica fervorosa, chamar um curandeiro ou coisa que o valha. Ela trouxe, certo dia, um pastor que se dizia entendido em possessões, mas de nada adiantaram seus malabarismos, suas imprecações, a vociferação ao demônio que ele assegurava ter tomado posse do meu corpo. Outro pastor, de mais alta graduação, mais experiente em exorcismos, foi trazido pelo primeiro. Juntos, empolgados com suas próprias pragas, exaltados, acabaram jogando-me ao chão, onde permaneci, sem um único movimento, incapaz de um gemido sequer. Somente meus olhos atônitos eram capazes de emitir sinais de vida; os pastores entenderam isso como mais uma das artimanhas de Satã. Vendo-se incapazes de expulsar o mal de mim, chegaram à conclusão os impostores de que o Senhor das Trevas já era dono da minha alma, assegurando à minha mãe que era somente uma questão de tempo a minha partida definitiva para o fogo eterno.
No ponto do escritório onde estava situado o sofá no qual meu corpo jazia, eu podia ver, de frente para mim, a boneca. Mesmo fechando os olhos, a sua imagem terrível permanecia nítida em minhas retinas. E mesmo durante os poucos minutos de sono agitado que o meu estado nervoso permitia. Com o tempo, os nervos em frangalhos, nem mais ao pesadelo pude recorrer. E como eu ansiava por essa égua da noite que me tirasse, por míseros instantes, daquele ambiente agora opressivo, onde passara as horas mais agradáveis de minha vida, em meio aos meus autores favoritos, e agora ameaçador, acachapante, e o toque contínuo, incessante, do maldito tambor que eu tinha certeza ser proveniente de um ritual vodu, realizado diuturnamente dentro da minha cabeça, do meu cérebro, dentro da minha alma. Cheguei a me apiedar de mim mesmo. Tive, então, a certeza funesta de que estava secando a partir do âmago do meu ser: eu fora amaldiçoado. Eu me transformara, eu era o Haiti! Eu era toda a dor do povo haitiano! Eu era o próprio vodu!
Meu primo não deixou de visitar-me, veio todos os dias, no último mês, enquanto esteve na cidade. Ultimamente, não tem aparecido, está viajando. Pobre Frederico! Tenho certeza que se não fosse tão descrente, teria me auxiliado, teria dado um fim na boneca maldita. Meus olhos esgazeados só o tornavam mais irritado por não saber lê-los, por não poder compreendê-los, fazendo que abandonasse o recinto, apressado, praguejando, impotente. Ele sabia que eu queria lhe comunicar algo. Como todas as pessoas que se enfronham excessivamente na letra impressa, nas runas, hieróglifos, ideogramas, mas esquecem-se do convívio humano, ele percebia que eu queria lhe dizer algo na ineloquência insana dos meus olhares perturbados. Não sei se eu me compreenderia, se estivesse em seu lugar. Provavelmente, não.
As noites eram dolorosamente medonhas, sem a azáfama diurna das gentes, o ruído dos automóveis que adentravam a janela do escritório. Em vez de me irritar como antigamente acontecia, essa agitação sem quê nem porquê da humanidade, trazia-me algum lenitivo, distraía-me por alguns preciosos segundos para mergulhar-me, logo em seguida, no som surdo e contínuo do tambor vodu, senhor absoluto, mais poderoso que tudo, exigindo minha atenção. Bastava-me fechar os olhos no intuito de fugir da imagem da boneca, olhando-me fixamente nos olhos (a cada leve suspiro que se esvaía do meu peito, ela consequentemente se revigorava), cenas nunca antes por mim vividas, de rituais macabros, tomavam existência real dentro de meu cérebro, de minha memória, uma fantástica memória diacrônica da qual jamais suspeitara. Eram invocações e rezas e chamamentos em uma língua parecida com o francês, um francês arrevezado. E uma palavra ecoava insistentemente nas paredes do meu crânio, nitidamente as vozes gritavam “Hounto! Hounto!” Em meio a tudo, havia a plena consciência de que um diabo, ou que vários deles drenavam, aos poucos, as minhas forças. E que eu nada podia fazer para impedi-los.
Foi num final de semana, talvez um sábado, ou domingo, em meio ao inverno, que a mulher de meu primo veio, a seu pedido, saber como eu estava passando. Trouxe com ela as crianças, um menino e uma menina, desculpando-se com a minha mãe por não ter com quem deixá-las, assegurando que a visita seria rápida, que viera somente por insistência de Frederico. Ela não podia ver-me sem chorar, prostrado no sofá, sem reação alguma. Minha mãe, pensando que suas lágrimas só serviriam para piorar ainda mais a minha situação, chamou-a para tomar um café na cozinha. Nesta ocasião, esqueceram-se de levar com elas as crianças, que vendo-me inerme, sem poder lhes chamar a atenção para que não mexessem em nada (sempre fui, desde menino, muito cioso da ordem dos meus pertences), sentiram-se livres para especular todo o escritório. Os dois diabretes mexiam em tudo aquilo que lhes era proibido, como o trenzinho à pilha, da Estrela, que eu ganhara do meu pai, quando fiz três anos. Brincaram livremente com o que lhes chamava a atenção, até seus olhos darem com a boneca vodu no alto da estante. Na impossibilidade de alcançá-la, subiram em uma cadeira e a derrubaram com o auxílio da minha bengala. Logo, os dois se desentenderam a respeito da boneca e começaram a puxá-la, cada um para um lado. Acabaram arrancando a cabeça do restante do corpo, o que fez a menina desatar em um choro desesperado, histérico. Neste exato momento, senti um alívio imediato em meu cérebro, uma claridade, um frescor como há muito não sentia. Seu irmão, com a maldade inerente aos meninos, atirou, com um sorriso maldoso, escarninho, o corpo da boneca nas chamas da lareira. Imediatamente, meu corpo começou a incendiar, labaredas de um fogo azulado que vinha das minhas entranhas. A esposa de meu primo e minha mãe chegaram correndo, atraídas pelo choro incessante da menina, um uivo desesperado e desesperador. Diante da cena, as duas mulheres agarraram as crianças e saíram rapidamente da casa, deixando-me a arder, a me consumir de dentro para fora, solitário, entregue a mim mesmo e à misericórdia divina, à minha própria impossibilidade e às chamas libertadoras.
Quando os bombeiros chegaram já era tarde, graças a Deus. Nunca um atraso foi tão bem recebido. Estranhamente o fogo não se alastrara, consumindo apenas parte do sofá, além de mim mesmo, deixando no ambiente um odor adocicado. Minha cabeça, deslocada do corpo, permanecera intacta. Tornei-me, assim, para os estudiosos, mais um caso de combustão espontânea; quase todos os meus ossos estavam carbonizados. A ciência ainda busca explicações plausíveis para este fenômeno, pois, sabe-se que, mesmo nos crematórios, sob a ação de altíssima temperatura, 1300°C, durante 12 horas, somente a carne dos corpos é queimada, tendo os ossos que ser posteriormente triturados. Afirmam ainda os médicos legistas que as feridas inflamadas das minhas costas teriam provocado um derramamento de gordura subcutânea, a qual em contato com o oxigênio e o calor da lareira causou a combustão dita espontânea de meu corpo. Chamam a esse fenômeno de “efeito pavio”. Sugerem ainda que o incêndio que me consumiu ocorreu quando o gás metano, resultante da decomposição dos vegetais no intestino, entrou em ignição, estimulado pelas enzimas. E como explicarão, então, a cabeça separada do corpo, intacta? O que restou do meu invólucro terreno, a cabeça e a perna esquerda, pertence hoje ao Instituto Jonas Dupont, à disposição de cientistas e interessados na paranormalidade.

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