Edson Negromonte
Eu era um garimpador de livros,, aliás, ainda sou, mas não com a avidez de anos atrás. Não ia em busca de livros raros, caríssimos, de preços exorbitantes, esses que aguçam a cobiça dos bibliófilos. A minha busca era, pode-se dizer, singela, de valor apenas para mim mesmo, algo muito pessoal, íntimo, algo relacionado com a alma. Assim, tornei-me o provisório possuidor, posto que tudo na terra é de caráter temporário e nada nos pertence, da primeira edição de “O Rei Menos o Reino”, de Augusto de Campos, de 1951, pela Maldoror, que estampa incorretamente na capa “Edições Maldonor”, o que me leva a deduzir que o então jovem poeta ainda não fosse tão criterioso (como deixaria ele passar essa falha terrível justamente na capa do seu livrinho de estreia?); o primoroso “An Emerson Treasury”, em edição de bolso, com capa de couro macio, de pelica, sem data, publicado pela Siegle, Hill & Co., de Londres; de um Affonso Ávila, perdido em meio à poeira de um sebo paulistano, “O Açude e Sonetos da Descoberta”, de junho de 1953, cuja folha de rosto traz a dedicatória manuscrita do autor para o poeta Edgard Braga, outro dos meus eleitos, datada de setembro de 1953, rabiscados os nomes dos dois poetas, na vã tentativa de esconder seus nomes, mas ainda legíveis ou talvez por causa disso mesmo mais legíveis, pois aquilo que tentamos ocultar torna-se mais e mais evidente, aguçando a curiosidade (ao pé da página o endereço: rua Carangola, 225, que vinha a ser o mesmo endereço da revista Vocação; um exemplar esbagaçado, capa e lombada coladas com papel pardo, de “O Duplo Assassínio da Rua Morgue”, de Edgar Allan Poe, cujo subtítulo é “Novellas de aventuras estraordinarias e fantásticas” (na folha de rosto, uma divertida advertência dos editores: “Leitura pouco recomendável às pessoas de espírito fraco, meninas hystericas, jovens acephalos, velhos cardíacos, matronas beatas e outras que creem em almas do outro mundo e cousas inverosímeis”). Esta preciosidade de 1925 é da Empresa Editora Rochér, de São Paulo. Deve ser assinalado que o volume ainda contém os contos “A carta roubada”, “O systema do Dr. Breu e do professor Penna”, “O gato preto”, “Colloquio entre Monos e Uma” e “Hop-Frog”.
Em meados dos anos 1980, eu frequentava um sebo no alto do prédio da sinagoga, situado em uma rua paralela à Avenida Paulista, da qual não lembro mais o nome, à procura dos tesouros que aquelas estantes empoeiradas ocultariam. Várias tardes, permaneci ali, no “sebo dos judeus”, como era conhecido, embriagado com os títulos que aquele espaço abrigava: livros em português, inglês, mas a grande maioria em alemão e, mistério dos mistérios, vários e vários volumes em indecifrável e esfíngico iídiche. Que prazer abrir as páginas, acariciar as capas, admirar a encadernação, o cuidado gráfico, as unciais, a sensação táctil dos grandes poetas: Schiller e Rilke e Heine e Christian Morgenstern. As duas velhinhas que ali atendiam, absortas em suas infalíveis toalhinhas de crochê, deixavam-me à vontade para escarafunchar cada desvão perdido daquela sala enorme e comungar com os antigos donos, com a trama dos seus dramas, tanto coletivos quanto domésticos. Em uma dessas ocasiões, deparei com a obra completa de Goethe, em 36 volumes, no alto de uma das estantes. Toda em alemão! Embora eu não soubesse lhufas de alemão, como até hoje não sei (Ariano Suassuna, numa das suas brilhantes tiradas, conta que se tivesse nascido na Alemanha, seria mudo, devido à dificuldade da língua). Isso não foi empecilho para adquiri-la. Saí do sebo, em direção à estação do metrô, arrastando uma mala que as duas senhoras obsequiosamente me emprestaram, a qual continha o cadáver esquartejado em exatas trinta e seis partes do corpo poético e filosófico do grande poeta alemão, o maior entre os maiores. Johann Wolfgang von Goethe. Não estaria ali também o corpo, não o físico, mas o espiritual, o corpo essencial, do antigo proprietário?
A primeira coisa que fiz, ao chegar em casa, à noite, tarde da noite, foi cheirar, tal e qual um psicopata, absorvendo delirante, sensualmente, o odor fresco do sangue da vítima, o corpus espostejado, membro a membro, posta a posta, aliás, tomo a tomo, enquanto enfileirava gozoso a coleção na principal prateleira da sala de estar: viagens, romances, botânica, teatro, a sua muito pessoal teoria das cores... Em seguida, a acariciei como se acaricia uma mulher, a mulher amada, amorosamente, com cuidado, ternura, de leve para não ofendê-la, sem tocar de imediato nos seios, os cabelos, o perfume dos pelos da nuca, os braços, até que ela, então, delicadamente, sussurrante, ciciando, sibilante, peça chorosa que você a possua. Assim são as mulheres, assim são os livros: sem afoitezas que o tempo é invenção e predicado dos verdadeiros amantes.
Enquanto folheava o “Gedichte” (Poesia), aspirando embriagado o odor de papel velho, em tons de amarelo e ocre, os pontos de ferrugem, página a página, voluptuosamente, os caracteres góticos, inadvertidamente o volume abre as pernas, convidativo. As coxas fogosas deixam entrever o seu pequeno segredo clitoridiano, há tempos guardado, resguardado dos olhos do vulgo: o cartão de bonde pertencente a Sabine Fuhrmann; a foto da adolescente grampeada no documento. Seria a minha “garota de Berlim”, como eu a apelidei, a antiga dona dos trinta e seis pedaços do corpus de Goethe? Teria Sabine Fuhrmann trazido a coleção consigo, fugitiva da bestialidade nazista? Ou a teria comprado em alguma importadora aqui no Brasil, e usara como marcador de página o seu cartão de bonde? Em meio a essas divagações, preparei uma dose de uísque, duas pedras de gelo, acendi um cigarro e me pus a sondar, em conjecturas, a foto agora amarelecida, em tons de sépia, quase apagada, da menina de vestido branco.
Assim, Sabine Fuhrmann aparecia-me ora embarcando no bonde para ir à aula, de uniforme escolar, saia pregueada, os cabelos escuros presos num rabo de cavalo, ora embarcando clandestinamente com seus pais num cargueiro rumo à América do Sul, com escala em Buenos Aires, onde muitos dos seus conterrâneos desceram para uma nova vida, distante da guerra. Ela não, para a minha Sabine Fuhrmann, para os pais da garota de Berlim, o destino era, desde a partida, o Brasil, onde se dizia que a comida era abundante, principalmente as frutas de que ela tanto gostava. Aqui, as bananas, que custavam uma pequena fortuna na Europa, não eram artigo de luxo. Aqui, podia-se comprá-las em cacho, aos montes, por uma ninharia, como ela ouvira contar. Munido de óculos, lupa e de um dicionário alemão-português, investiguei o que restava dos caracteres quase apagados do gasto documento, o cartão do bonde, de papel pardo, as bordas vermelhas. Em evidência, o número 24549, o nome de Sabine Fuhrmann escrito à tinta, em letras maiúsculas, e o seu endereço: Spichernstrasse, 17. Ao lado, a idade: 15 anos. Ao pé do cartão, uma foto retangular (estreita, evidentemente recortada de uma foto maior, onde talvez ela não estivesse só, mas com um grupo de outras pessoas. Pais? Irmãos? Amigas?), perfurada com as letras BSt. Qual o significado de BSt? A sigla da companhia de bondes? Berliner Strassenbahn? Talvez, talvez. No verso, em vermelho, o carimbo de validade, borrado, identificando-se somente o ano: 1924. Ou 1929? Então, se viva, segundo as minhas contas, Sabine Fuhrmann teria hoje 95 anos. Ou 100? Com o avanço da medicina, que hoje prolonga a vida dos seres humanos, principalmente a das mulheres, a idades anteriormente inimagináveis, é bem possível que ela, a garota de Berlim, possa estar, neste instante, a rememorar para netos ou bisnetos a viagem de navio que fez da Alemanha ao Brasil.
Foi justamente por ter ouvido a notícia que a professora Simoni Dias defende em livro a teoria de que o líder nazista Adolf Hitler, ao invés de ter cometido suicídio, teria também fugido para o Brasil, estabelecendo-se na cidade de Nossa Senhora do Livramento, no Mato Grosso, fronteira com a Bolívia, que saí à procura, entre os meus guardados, do cartão de bonde de Sabine Fuhrmann. Foi aqui, também, que o médico nazista Josef Mengele, o “anjo da morte” de Auschwitz, que fazia experiências genéticas com seres humanos vivos, especialmente anões e gêmeos, morreu afogado na praia de Bertioga, no litoral de São Paulo. Não foi aqui, no Brasil, antes da eclosão da Segunda Grande Guerra, que funcionou o segundo maior partido nazista do mundo? Não foi o presidente Getúlio Vargas que entregou a Adolf Hitler, sem que ele houvesse pedido, como prova de simpatia pela causa nazista, a judia Olga Gutmann Benário, a esposa alemã do líder comunista Luiz Carlos Prestes, para apodrecer em um campo de concentração?
Espere um pouco! Se a Segunda Guerra teve início em 1939, como afirmam os historiadores (eu, particularmente, acredito que a assim chamada Segunda Guerra Mundial é a continuação da Primeira, a qual ainda não acabara realmente), então, Sabine Fuhrmann, ao vir para o Brasil, já tinha pelo menos 20 anos. Ou 25... Ou trinta e poucos. Então, ela bem podia ter aqui chegado, acompanhada pelo marido. Talvez até com filhos. E que o seu cartão do bonde era, para ela, um documento obsoleto, já com outra serventia, a de marcador de página. Depois dessa quase descabida digressão, o que importa é que, para mim, Sabine Fuhrmann terá sempre quinze anos e jamais envelhecerá, assim como Peter Pan queria que tivesse acontecido com Wendy Darling ou Lewis Carroll com Alice Liddell.
terça-feira, 16 de setembro de 2014
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Adorei!! ♡
ResponderExcluirObrigado, minha fã número 1!
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