terça-feira, 23 de setembro de 2014
QARINA ou A DESCOBERTA DO SEXO
Edson Negromonte
A melhor fase da vida é a adolescência, quando se está predisposto a acreditar em tudo, quando tudo é possível, quando não se adquiriu ainda os malditos preconceitos que tolhem a imaginação, quando a imaginação ainda é terreno fértil para as ideias mais estapafúrdias, porém confortadoras, da alma juvenil, quando a vida nunca é sem graça ou insossa para um garoto destrambelhado, ávido por filmes e quadrinhos de terror e as, assim ditas, revistas masculinas, tudo isso regado a muito rock’n’roll. A história a seguir é baseada, desculpem, em fatos reais. Por favor, não torçam o nariz, eu bem sei quão mentirosa é, quase sempre, essa advertência. Só peço que me seja concedido o beneficio da dúvida, para que, após a leitura, tenham o direito de me chamar de mentiroso e até me difamar nas redes sociais. Você que já está com um pé atrás, o vírus do descrédito instalado no sangue, é melhor mesmo que fique por aí, à margem de um jardim ao qual jamais será admitido. O medo é o pior inimigo da humanidade; ouse dar um passo adiante, rumo à escuridão infinita do desconhecido, mesmo que isso o leve a vagar indefinidamente no espaço sideral. Ainda assim, arrisco-me a pedir disposição aos incréus. Talvez, ao final da leitura, façam como Giuseppe, o meu avô siciliano, um descrente, que quando lhe contavam uma história extraordinária, difícil de engolir, arrematava: “Si non è vero, è ben trovato”.
Foi em uma noite abafada, eu acabara de completar treze anos (os mais velhos, os guardiães da crônica da cidade, lavraram que, nos últimos quarenta anos, não houvera verão mais quente que aquele de 1973), que, no meio da noite, acordei sobressaltado, com alguém acariciando minha cabeça, a testa, entrelaçando sensualmente os dedos entre os meus cabelos compridos, carinhosamente. Fã de filmes escabrosos, eu era, no íntimo, um cagão. Mas devo admitir que, naquele calor infernal, o contato da mão fria era agradável, reconfortante, quase um refrigério. Por mais incrível que possa parecer, não tive medo, aliás, controlei o medo: “Ser corajoso não é não sentir medo, mas enfrentá-lo, Gafanhoto” – um útil ensinamento aprendido com a série de TV “Kung Fu”. Minha mente era mesmo destrambelhada, e eu associei essa carícia à mão agora esquelética da mãe que não tive. Não quero com isso dizer que eu seja filho de chocadeira: minha mãe morreu no parto, deixando-me órfão desde o primeiro momento de vida. No meio do breu reinante no quarto, eu sentia a presença de alguém, de algo que, apesar de tudo, me fazia bem. Bem podia ser mesmo a minha mãezinha que voltara do mundo dos mortos para me confortar. Ou para me buscar? Sempre quis ter mãe, alguém a quem eu pudesse contar os meus segredos, alguém que me compreendesse, que me desse colo. E vocês hão de convir que de mãe não se deve, não se pode ter medo, mesmo que ela já esteja morta e enterrada, bem enterrada. Enquanto eu desfrutava desse enlevo, o calor voltou a reinar no quarto e a presença angélica se evaporara. No dia seguinte, não contei nada a ninguém. Nem à empregada, nem ao meu pai, muito menos aos amigos. Sempre fui caladão assim, ensimesmado, é o meu jeito. E quem partilharia uma sensação tão íntima, sob o risco de ouvir pilhérias? Se havia algo que me deixava enfezado era o pouco caso que sequer pudessem fazer das minhas histórias, na maioria das vezes, concordo, mirabolantes. Pode-se dizer até rocambolescas. Sim, eu já tinha lido Ponson Du Terrail. Perambulando pelas ruas da cidade, bastava fechar os olhos para sentir de novo a mão diáfana em minha fronte; de bem comigo mesmo, deliciava-me. Era como se aquele ser de substância vaga, feito da matéria dos contos de fada, fosse a melhor parte de mim; eu nunca tinha sido alvo de um gesto feminino tão prazeroso.
À noite, inquieto, me recolhi mais cedo do que o costume, não fiquei na roda de amigos, jogando conversa fora, na esquina da praça Coronel Macedo. Deitei-me, ansioso, à espera de um novo contato. Aquilo me fizera bem, aquecera a orfandade do meu coração. Passei a noite em claro e nada, somente o calor insuportável que os ventiladores não conseguiam amenizar. Levantei-me da cama, frustrado. Tomei o café da manhã e fui bater perna. Nada conseguia atrair minha atenção por muito tempo, nem o jogo de bilhar, nem o bamboleio dos quadris das garotas da Escola Normal, nem o papo furado dos bêbados no mercado, com os quais eu aprendia muito mais sobre a vida do que nos maçantes livros escolares. Angustiado, eu não via a hora de escurecer, para me encerrar em meu quarto, à espera de uma nova visitação. Sentado na poltrona, olhos fechados, revivi toda a sensação daquela noite, repetidas vezes, até que meu corpo se cansou e eu caí em sono profundo, um sono sem sonhos. Dormi feito uma pedra; despertei com a claridade da manhã entrando pela janela; eu não lembrava de tê-la aberto. O sol, surgindo por trás das montanhas, como uma bola de fogo, prometia mais um dia sufocante.
Na vida de um garoto inquieto, como eu era, os acontecimentos se atropelam de tal forma, a vida é tão dinâmica, que quase o fazem esquecer do ocorrido há poucos dias atrás, mesmo que esse acontecimento revista-se dos prodígios do maravilhoso. Assim, voltei ao bilhar, abismando os sapos com meu taco infalível, eu era então capaz de lances mirabolantes. Rocambolescos? Talvez, talvez. Voltei tarde para casa, ninguém ligava muito para mim mesmo (ai, que falta faz uma mãe!), eu não tinha que dar satisfação a ninguém dos meus horários: meu pai, sempre envolvido com a contabilidade da fábrica de conservas, e Maria deitava cedo, cansada das tarefas domésticas. No dia seguinte, ela perguntaria, mecanicamente, por onde eu tinha andado, contentando-se com qualquer resposta evasiva. Perguntava somente por perguntar, como fazem todas as mulheres (menos as mães), pouco se importando com a resposta. Para ela, a casa em ordem era o mais importante; ela bem que tentava, a seu modo, fazer as vezes da minha mãe, mas como não tivera filhos, não sabia lidar com as minhas casmurrices. Maria era algo entre empregada doméstica, governanta e membro da família, e tudo o que essa posição indefinida pudesse acarretar e significar. Ela estava com a família desde tempos imemoriais, viera morar conosco, emprestada por minha avó, que dizia não se lembrar mais quando Maria Leocádia pusera os pés em sua casa.
À noite, foi impossível sair de casa, caía um aguaceiro de dar inveja a Noé. Sem medo de ser exagerado, podia-se dizer que era uma noite bíblica, com todas as lembranças do dilúvio vindo à tona. Depois de faltar a luz, fui deitar, era o melhor, a única coisa que se podia fazer. Nem bem adormeci, senti novamente a carícia da mão fria em meus cabelos. Tentei acordar, abrir os olhos, mas foi inútil, meus músculos se recusaram a obedecer, numa espécie de hiato entre a vigília e o sono. Ou entre o sonho e o pesadelo, a onirodinia, um sonâmbulo que, apesar do esforço, não conseguisse se mover. A mão tocou-me, então, delicadamente o peito, afundando-se gélida ao encontro do coração. Não podia ser minha mãe rediviva, já agora eu tinha certeza disso: pois, senti, logo em seguida, a mão da entidade tocar delicadamente o meu sexo. Agora, a mão estava morna, de uma mornidão gostosa e agradável aos sentidos. Não, não era a minha mãe. Então, a criatura deitou-se sobre mim, aconchegando-se, roçando os seios em meu corpo, meu peito, na minha boca. Quando percebi, a cabeça em redemoinho, eu estava dentro dela, dentro da criatura. Não, definitivamente, não era a minha mãe! A vulva dela era quente, uma quentura que eu nunca antes provara, molhada. Num jorro de leite seminal, inundei-a. No dia seguinte, sentia-me cabreiro, embora feliz, o apetite carnal satisfeito. Nada melhor, para um adolescente, que a gratificação da carne, evita muitos males da cabeça, como a obsessão pelo sexo, evita de ver sexo em tudo, porque sexo é que nem coceira, uma vez coçada desaparece. Isso é o que dizem, pode até ser, mas comigo não foi assim. Eu conheci, um eufemismo bíblico, a criatura durante uma semana, todas as noites, sem lhe ver a face. Sabia somente que ela tinha asas, pressenti-as. Asas enormes, macias, que me envolviam num abraço; um casulo larval. Por momentos, temi que ela fosse um anjo, medo de estar transando com um desses seres virtuosos (isso deve ser pecado!), mas anjos não têm sexo, conforme aprendi nas aulas de catecismo, e isso era já um consolo. Depois do gozo, ela, a criatura alada, imediatamente desaparecia. E eu ficava ouvindo, lá fora, o clamor das asas gigantescas, distanciando-se. Que ela era um ser áleo, já não havia a menor dúvida. E que fosse uma fêmea (e que fêmea!), era um fato.
Fazer sexo todas as noites, durante toda a semana, não me enfraquecia. Em vez disso, eu ficava, a cada dia, mais disposto, mais satisfeito com a vida, a mente mais clara, mais confiante (a droga da felicidade!), tanto que me tornei naturalmente o líder da turma, atirando-me de cabeça do trapiche, sem temer as estacas no fundo, remanescentes de um antigo ancoradouro; uma façanha. Na escola, minhas notas melhoraram sensivelmente, passei a ser elogiado pelos professores, passei a atrair os olhares das meninas, as quais eu achava tão infantis, tratando-as sem nenhuma condescendência, como um legítimo ídolo do rock. Eu era outro, minha personalidade mudara. Mas nada disso me afetava diretamente, era como se não fosse eu, era uma máscara social, era outro aquele que recebia os cumprimentos da diretora, a medalha pelo melhor desenho do colégio, os votos de um belo futuro, essas patacoadas que todos os jovens que se sobressaem em alguma atividade estão fadados a ouvir. Mas o que, na verdade, acontecia comigo? De repente, de um dia para outro, eu passei a compreender várias línguas, conseguia entender o que os marinheiros conversavam entre si, não só os americanos e os franceses, mas os dinamarqueses, os noruegueses, os islandeses, até mesmo a algaravia de um taifeiro javanês. Devo confessar que tudo isso deixava-me assustado, ao mesmo tempo que me envaidecia. Então, por que eu me preocuparia com essa fatuidade, se “vaidade das vaidades, tudo é vaidade, como bem diz Salomão, no “Eclesiastes”?
Meu idílio com a criatura ia cada vez melhor, a testosterona a mil. Diferente do começo, quando ela chegava e ia logo me possuindo, com o tempo, apesar do prazer que ela me dava, eu comecei a me sentir um objeto em suas mãos, um escravo sexual, condição inicialmente nada incômoda. Mas eu queria mais. Assim, como um casal que se ama, depois do ato sexual, passamos a conversar; o seu tom de voz era delicado, ciciante, sussurrava em meus ouvidos palavras ininteligíveis, porém perceptivelmente doces. Agora, depois de me esgotar, ela deitava-se ao meu lado e comigo dormia até um pouco antes da aurora, quando fugia de mim, como uma Cinderela das trevas. Uma madrugada, recostada em meu peito, sem que eu perguntasse, ela disse-me seu nome. Qarina, a doce, a minha doce Qarina! Passou-se, assim, em arroubos noturnos, um mês, dois, três, desde o nosso primeiro encontro. Sim, estávamos apaixonados. Eu, da minha parte, garanto que sim, ela era o motivo da minha existência, da minha nova vida. E acho que ela também tinha por mim o mesmo sentimento. Uma manhã, de banho tomado, desci para o café, quando Maria, olhando em minha direção, de olhos mais que arregalados, esbugalhados, fez o sinal da cruz.
– Ai, menino, que tô veno um encosto do teu lado. E parece uma muié! Valei-me, meu bom Jesus de Iguape! São João, Xangô menino! – exclamou a pobre mulher, desesperada, fazendo novamente o pelo sinal.
(À luz do dia, eu não conseguia ver Qarina, mas percebia a sua presença ao meu lado. À noite, mesmo com todas as luzes apagadas, sua imagem era nítida, como nítida será sempre a luminosidade da carne amada. E ela era linda! Muito mais linda do que qualquer artista renascentista seria capaz de representar). E Maria continuava a se persignar. Nervosa, balbuciou que eu fosse ver o padre Patrick. Dei-lhe um beijo em cada face, dizendo que estava tudo bem, procurando acalmá-la. Ao voltar para casa, Maria, ainda ressabiada, mas sem fazer escândalo, provavelmente não estivesse vendo mais ninguém ao meu lado, disse-me que o padre ordenara que eu fosse vê-lo na manhã do dia seguinte, impreterivelmente, no confessionário. Com certeza, Maria telefonara para ele, contando o que vira. Como discutir uma ordem do padre Patrick? Era um burro de um homem, um irlandês muito alto, curvado, da cabeça quadrada, ciclópico, sanguíneo, de manoplas disformes que mais pareciam duas raquetes de tênis. Não havia como escapar, ele iria me buscar em casa e, se necessário, me arrastaria pelas pernas até a igreja. Padre Patrick era uma autoridade em exorcismo, como todos os padres irlandeses. Sendo amigo da família, e com meu pai sempre ausente, achava-se no direito de dar palpites na minha educação, com o aval de Maria. Não entendo por que Maria, uma negra velha, sensitiva, descendente de africanos, não apelou aos seus orixás, em vez de chamar pelo padre. Nada mais óbvio que eu, aos treze anos, o temesse. A saudação do velho cura era um tapaço na cabeça dos meninos, um cachação, o que, de cara, deixava-nos submissos e propensos a aceitar as suas palavras como lei divina. Ao cruzar o pórtico da igreja, senti vontade de sair correndo dali, fugir daqueles santos gigantescos, de gesso, olhando-me do alto, reprovadores, desdenhosos. Antes que pudesse dar meia-volta, padre Patrick chamou-me, com sua voz de trovão, indicando o confessionário, com o dedo em riste. Sem delongas, foi logo perguntando:
– Tem se masturbado muito?
– Eu não!
– Tá doente?
– Não...
– Então, o que tá fazendo aqui?
– Não sei, a Maria disse que o senhor queria me ver...
– É mesmo! Ela disse que viu uma mulher do seu lado. Tem estado com rameiras ultimamente? Sabe que essas mulheres são almas pegajosas que grudam feito sanguessugas espirituais no corpo dos homens? Dos meninos de treze anos, principalmente! Venha comigo!
Na saleta ao lado, o padre, sem mais nem menos, me aspergiu com água benta, à espera de alguma manifestação, mas nada, nem uma fumacinha saiu do meu corpo. Intrigado, padre Patrick olhou-me bem dentro dos olhos.
– Tem usado drogas?
– Não!
– Nem o xarope Romilar? Eu consigo ver a lubricidade nos seus olhos. Tem tido poluções noturnas?
– O quê?
– Sonhos eróticos, sua besta!
– Não...
– Não minta! Deixe-me examinar seus olhos.
Com polegares colossais, arregaçou minhas pálpebras, como se elas estivessem escondendo a verdade dos séculos ou toda a areia do Saara.
– Humpf, venha comigo!
Por uma porta lateral, passamos à pequena biblioteca da casa paroquial. Na entrada, no alto, estava pintado, em vermelho escarlate: LASCIATE OGNI SPERANZA, VOI CH' ENTRATE.
– Sabe o que quer dizer isso? “Deixai toda a esperança, vós que aqui entrais”. É Dante, canto terceiro do “Inferno”.
Mandou que me sentasse em uma cadeira à sua frente. “Então, é aqui, nesta sala, que ele faz os exorcismos?” – pensei.
– Você já ouviu falar em demônios noturnos, incubus e succubus?
– Não...
– Não minta para mim, seu cachorro depravado!
Baixei a cabeça. Como discordar daquela voz autoritária, tonitruante? Sim, eu sabia o que eram os ditos demônios, lera sobre eles, lera o conto de Balzac sobre o succubus da Rue Chaude.
– Tire a camiseta! O que são essas marcas vermelhas nas suas costas? Esses arranhões profundos, essas lacerações que parecem ter sido feitas por unhas de mulher. Você tem ido à zona? Tem estado com mulher da vida?
– Não.
– E o que me diz, então, dessas marcas?
– Se eu pudesse ver, mas não tenho olhos nas costas...
– Seu filho de uma puta, tá zombando de mim? – vociferou, dando-me um cascudo que jogou-me no chão, onde fiquei sem vontade nenhuma de abrir os olhos.
Quando voltei à vida, padre Patrick estava de costas para mim, procurando um livro na biblioteca. Pegou um pequeno volume e começou a folheá-lo, como se eu não estivesse ali. Não sei precisar quanto tempo se passou, enquanto eu buscava o equilíbrio, alternando-me entre borbulhas de luz e a escuridão absoluta. Talvez uma eternidade, ou alguns minutos.
– Já ouviu falar no padre Sinistrari? Lógico que não! Este vade-mécum sobre os demônios foi escrito por ele, para orientar os inquisidores. Responda à minha pergunta somente com “sim” ou “não”. Você andou sonhando que fodia durante o sono e, quando acordava, não tinha nenhum vestígio de langonha no seu lençol?
Balancei a cabeça, afirmativamente.
– Eu disse para responder “sim” ou “não”!
– Si-sim – balbuciei.
– Assim está melhor, admitir o pecado já é um grande passo.
– Grande passo para quê? – me atrevi.
– Cale a boca, seu pervertido! Só abra a boca quando eu autorizar – e voltou a folhear o livreto. Como as horas se arrastam dentro de uma igreja... Quando eu começava a brigar com o sono, cabeceando de maneira incontrolável, ele perguntou-me, a sua carantonha quase encostando na minha cara, o bafo quente, o mau hálito: – Faz tempo que isso vem acontecendo?
– Uns dois, três meses, talvez quatro...
– E só agora eu fico sabendo disso? Tem alguma vizinha sua grávida?
– Que eu saiba não.
– Você deve estar se perguntando por que fiz essa pergunta. Então, eu vou lhe contar o que está acontecendo com você. Esse tempo todo, seu idiota, você tá trepando com um demônio em forma de mulher, um succubus. Ele coleta o seu sêmen na vagina e vai copular, em forma de incubus, com as mulheres da vizinhança, fertilizando-as com o esperma que coletou de você, porque ele, o incubus, é incapaz de produzir sêmen.
“Ah, então, eles são bissexuais, como Alice Cooper” – conjeturei com os meus botões.
– Eles são estéreis. Você está sendo usado, a sua porra está sendo usada para criar uma raça de homens fracos, fáceis de serem controlados pelas forças do mal. O succubus, a contraparte feminina desses demônios, toma a forma que bem entende, de acordo com as suas fantasias. Diga-me, você sonhou que estava metendo com outras mulheres, além do succubus, mulheres que você deseja? Seja sincero, não tenha vergonha de contar para mim, eu sou seu confessor e, além do mais, somos amigos. Ou não somos?
Balancei a cabeça vigorosamente, assentindo.
– Eu sonhei que tava com a Dina Sfat, usando somente uma anágua branca, de algodão, como eu vi na Playboy; sonhei com a Julie Newmar, vestida de Mulher-Gato, e que ela dizia para mim, na hora do gozo: “purrfect!”; sonhei com a Betty Page, os pentelhos negros, os michelins rosados dos mamilos, os seios arredondados; em Karen Carpenter, fiz um cunnilingus,que a deixou extasiada; com Lorna, a rainha da selva, foi muito estranho, ela era bidimensional, sem volume; ah, a suavidade da pele de pêssego da Rita Lee; com Jane Birkin tinha até trilha sonora, eu sentia suas costelas em minhas mãos, todas as suas delicadas vértebras; Karen Black, Allyson Ames, Grace Slick...
– Chega, chega, já é o bastante! Tudo indica que é mesmo um caso de possessão demoníaca. Acontece que esse succubus apaixonou-se por você. Os succubi são submissos, diferentemente da sua mãe Lilith, a primeira mulher de Adão. Segundo a tradição, os succubi não costumam se apaixonar, mas às vezes acontece, como estamos percebendo aqui. Você tem sentido cansaço depois de trepar noite após noite nesses quatro meses?
– Não, eu tenho me sentido é muito bem, melhor do que nunca me senti antes, bem disposto...
– É isso mesmo, é assim que a coisa funciona quando há paixão entre o homem e um desses demônios! – gritou padre Patrick, exaltado, esmurrando o ar. – Precisamos dar um jeito nisso!
Como “dar um jeito nisso”? Eu não tinha pedido a ajuda de ninguém, a minha vida estava perfeita, eu era o queridinho da escola, tinha uma mulher que me amava, experiente, que me ensinava coisas do arco-da-velha, que, compreensiva, tomava a forma dos meus desejos... Por que as pessoas têm que se intrometer na vida dos outros, onde não são chamadas, dizendo-lhes o que é certo ou errado?
– Padre, tem gente aí, querendo falar com o senhor! – veio avisar a irmã Vincenza.
Quando fiquei só na biblioteca, aproveitei para dar uma olhada no tal livro que o padre asseverava ser o vade-mécum dos demônios. Ficaram gravados em minha memória fotográfica os dizeres da folha de rosto: DEMONIALITY OR INCUBI AND SUCCUBI A TREATISE WHERE IS SHOWN THAT THERE ARE IN EXISTENCE ON EARTH RATIONAL CREATURES BESIDES MAN, ENDOWED LIKE HIM WITH A BODY AND A SOUL, THAT ARE BORN AND DIE LIKE HIM, REDEEMED BY OUR LORD JESUS-CHRIST, AND CAPABLE OF RECEIVING SALVATION OR DAMNATION, BY THE REV. FATHER SINISTRARI OF AMENO (17th CENTURY) PUBLISHED FROM THE ORIGINAL LATIN MANUSCRIPT DISCOVERED IN LONDON IN THE YEAR 1872, AND TRANSLATED INTO FRENCH BY ISIDORE LISEUX NOW FIRST TRANSLATED INTO ENGLISH WITH THE LATIN TEXT PARIS ISIDORE LISEUX, 2 RUE BONAPARTE PARIS. Acho que era isso mesmo, se a minha memória fotográfica não estiver me pregando uma peça.
Quando o padre voltou, olhou com desconfiança para a posição em que eu tinha deixado o livro e, em seguida, para mim, com seus olhos azuis que mais pareciam duas bolas de gude dos inferno.
– Você mexeu aqui?
– Não, senhor!
– Você é um baita de um mentiroso! Sabe que se fosse no tempo da Santa Inquisição, você seria queimado vivo? – rosnou.
Achei por bem baixar a cabeça porque o grande filho de uma cadela era bem capaz de me virar do avesso, com outro safanão.
– Conte-me sobre os seios da criatura!
– Eram perfumados, enchiam e refluíam, conforme os movimentos do seu corpo, isso quando ela vinha por cima de mim. Somente quando ela vinha na forma de Jane Birkin, eram pequenos, como são os peitinhos da cantora.
Por um momento, ciumento, achei que padre Patrick estava muito interessado no meu relato, além da conta, fazendo perguntas muito estranhas. Percebi a excitação no ar. Sabe como são esses padres, excitam-se com o pecado dos outros.
– E a xandanga dela é dentada? É mesmo uma caverna de gelo? Não quero saber, não quero saber, deixa isso pra lá! O succubus veio, alguma vez, na forma de vaca ou de égua?
– Não, nunca!
– Ah, bom! Isso quer dizer que você não praticou bestialismo, o que é um pecado muito grave perante os olhos do Senhor. Pelo menos, essa nódoa você não carrega em sua alma transviada, apesar de ter mantido intercurso com o Demônio.
– Com o Demo não, senhor!
– Cale a boca!
– Mas, senhor...
– Quer sentir novamente o peso da mão do servo de Deus? Os santos padres da Igreja – continuou, falando consigo mesmo, ignorando-me – se debruçaram sobre o assunto, gente do quilate de Santo Agostinho e São Tomás. Constataram eles que isso vem desde tempos imemoriais. Já o Livro de Enoch faz menção aos Vigilantes, os quais são anjos transformados em seres de pedra, que vêm a ser hoje as pedras colossais que vemos à beira-mar, por copularem com a fêmea do homem. Há o relato de Santo Agostinho, que diz não duvidar da existência dessas criaturas demoníacas, devido à quantidade de casos contados por pessoas idôneas; e isto está em seu livro “A Cidade de Deus”. O exorcismo seria incapaz de livrá-lo dessa obsessão, meu pequeno apóstata, pois essas criaturas, esses demônios sexuais, são imunes ao exorcismo, posto que não são o Demônio em pessoa, mas frutos da relação entre mulheres e anjos decaídos. Portanto, em suas veias corre sangue humano, o que impossibilita a esconjuração. Talvez ainda haja salvação para você, levando-se em conta que até o papa Silvestre II envolveu-se com um succubus, que lhe deu uma filha, Meridiana... Você está me escutando? – berrou padre Patrick, raivoso.
– Sim, senhor – respondi prontamente, apesar da sonolência mórbida que ia tomando conta de mim, provocada pela fala monótona do irlandês cabeçudo. Que cabeçorra tinha o homem, devia ser a encarnação do gigante Finn! Deve ter rasgado a mãe...
– Lilith, a primeira mulher de Adão não quis se submeter ao marido e foi obrigada pelo Senhor a vagar pela terra, à margem do Éden. E ela deitou-se com os anjos rebeldes, deitou-se com o arcanjo Samael, dando origem a uma raça de incubi e succubi. A palavra succubus significa originalmente “prostituta”... Os filhos dessa maldita conjunção são chamados de “cambions”, crianças de excelente saúde, mas sujeitas a influências sobrenaturais...
Enquanto o padre divagava, gritando, sussurrando, lembrei-me do disco “Electric Ladyland”, do Jimi Hendrix, com aquele monte de mulheres na capa, as putas elétricas, que bem podiam ser succubi. O negão sabia das coisas, talvez por isso o nome da primeira música seja “And the Gods Made Love”.
– O filósofo Diógenes Laércio, com o qual concorda São Jerônimo, um dos doutores da Igreja, diz ter sido Platão, o grande filósofo, fruto do relacionamento de um incubus com uma mulher. Também Alexandre, o Grande, como informam Plutarco e Quinto Cúrcio Rufo. E Cipião Africano, o Velho, era ele, da mesma forma, fruto de um intercurso pecaminoso, segundo Titus Livius Patavinus...
“Eu é que não tô entendendo patavina nenhuma” – pensei. ”Aonde esse padre quer chegar?”
– Além do mago Merlin, nascido da relação de um incubus com uma freira, a filha de Carlos Magno.
– Então, eu estou em boa companhia! – exclamei, num impulso. Eu e minha língua grande! Foi o que bastou para que levasse um pé de ouvido que me deixou todo zoado, os tímpanos zunindo. Agora é que eu não conseguiria entender mais nada.
– Há algum caso na família, um antepassado seu que tenha se deitado com um desses seres?
– O quê? – perguntei, em meio a um zumbido infernal, sentindo o maxilar, a cabeça, tudo dolorido, impaciente, querendo fugir dali, de tudo aquilo que estava me fazendo tanto mal. Nunca tinha apanhado tanto na vida. Mas como calar aquela matraca celta?
– Pergunto isso porque uma maldição desse quilate estende-se até a quarta geração. Se você foi o primeiro da sua família a praticar ato tão ignóbil, muita coisa ainda há de vir por aí, seu degenerado!
– Ahn?
Vendo que eu estava evidentemente fora de eixo, o padre mandou-me para casa, não sem antes avisar que eu deveria colher o mênstruo de uma virgem, o qual seria misturado com as cinzas do coração de um peixe, para fazer um amuleto que me livraria da obsessão. Muito engraçado! Que mulher, em sã consciência, se submeteria a me ceder sangue menstrual? E como eu pediria algo assim a alguém sem levantar suspeita sobre a minha sanidade mental? Aí, sim, eu me tornaria maldito de vez, mal falado para o resto da vida, condenado até a minha décima geração.
À noite, enraivecido, humilhado, a cabeça doendo, o maxilar rangendo, deitei-me. Mal embarcara no sono, ouvi o som característico das asas de Qarina, ruflando majestosa lá fora. Pela janela aberta, ela adentrou a nossa alcova e, aconchegando-se em meu peito, como uma menininha indefesa, sussurrou:
– Esta vai ser a nossa última noite, eles me matarão amanhã.
– Eles quem?
– Não importa, é melhor que você não saiba, meu amado, o meu erro foi me apaixonar... por você. E a paixão é um sentimento proibido para os demônios sexuais, como vocês, humanos, nos chamam. Então, me possua, faça amor comigo pela última vez!
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Sr. Edson! Parabéns pelo blog e pelos textos. Excelente. Continue a compartilhar esse material sensacional.
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