terça-feira, 30 de setembro de 2014

O CÃO ENCARNADO OU A CRENÇA ESQUIMÓ


Edson Negromonte

Talvez o leitor mais jovem não compreenda o que irá ler a seguir, quando hoje não existem mais cães vagando pelas ruas; a limpeza pública se encarregou de exterminá-los, após o grande surto de gripe canina, logo depois da aviária e da suína. Eram outros tempos, mais perigosos, porém mais livres, quando grande parte da população canina errava livre pelas ruas das cidades, grandes ou pequenas, até mesmo nos vilarejos. Esse pré-histórico “melhor amigo do homem”, quer dizer, do homem que, como eles, vagabundeia pelas ruas, vivia em sua grande maioria à solta, sobrevivendo dos restos que abundavam no lixo dos restaurantes, lanchonetes e até das casas, rosnando para os ratos. Era um tempo de muitos ratos também, mas nunca se ouviu falar de gripe murina. Com o extermínio dos cães e o consequente aproveitamento ecológico do lixo, os ratos acabaram devorando a si mesmos, desequilibrando ainda mais a cadeia alimentar. Assim, a vida nas ruas perdeu grande parte do encanto natural. Nas casas, também o cachorro foi erradicado; aqueles que teimaram em manter os seus bichinhos de estimação, receberam permissão do Ministério da Saúde, desde que empalhados.

Os cães foram, durante muito tempo, fonte de inspiração para a literatura, música, pintura, as artes em geral. Todos os grandes homens faziam questão de ter entre os seus fiéis amigos, pelo menos um desses vira-latas. Assim, foi com Churchill, Courbet e até Steinbeck, que escreveu “Viajando com Charlie”, o nome do seu parceiro de aventuras: um cão atravessando os Estados Unidos, lado a lado com o grande escritor, numa caminhonete. Whitman, cuja dicção deu origem a toda a poesia do continente americano, também tinha em grande conta o amigo Watch. Sei que é cansativo para o leitor mais jovem essa enumeração das personalidades caninas que passaram à história, portanto vou dar início ao meu relato, mas fique ciente de que poderia citá-los aos montes.

Havia entre os cães da minha rua, um que julguei, segundo a crença esquimó, ser a encarnação do meu avô. Calhou de ele aparecer no bairro justamente sete dias após o sepultamento do pai de meu pai. Logo que me viu, balançou o rabo e eu, se ainda tivesse uma cauda, com certeza a balançaria para ele também, em resposta à saudação. Devo confessar que um estremecimento percorreu minha espinha, até terminar em cócegas no cóccix, esta última lembrança de um tempo em que nós, humanos, tínhamos rabo. Acompanhou-me até o portão, rosnando para as sombras da noite, como se quisesse me proteger. Inicialmente, atribuí a sua companhia a algum odor peculiar, talvez o cheiro de gordura barata impregnada em minhas roupas, pois eu costumava jantar numa dessas cantinas que servem uma boa porção de comida por um valor irrisório, de onde se sai fedendo tão ou mais forte que a cozinheira do lugar. Ao me despedir dele, fiz-lhe um leve afago, o qual ele aceitou de bom grado. Fez, então, menção de comigo entrar. Bati o pé, coisa que ele imediatamente entendeu, afastando-se cabisbaixo.

Na manhã seguinte, ao sair para trabalhar, encontrei-o deitado na calçada em frente. Ao me ver, abanou o rabo como se eu não tivesse sido grosseiro. Acompanhou-me até o ponto. Até onde pude ver, ficou olhando o ônibus se afastar. Ao voltar do trabalho, fiquei surpreso ao encontrá-lo deitado à minha porta, tendo conseguido, de alguma maneira que até hoje não consegui descobrir, ultrapassar o alto muro do quintal. Que remédio! Deixei-o ficar, mas avisei-o de que a comida não era suficiente para dois. Muitas vezes, tenho certeza, fui dormir com mais fome do que ele.

Assim, os dias foram se passando, fomos nos apegando um ao outro, o meu salário melhorou, já não partilhávamos mais a fome. Para ele, somente para ele, no dia de Ano Novo, comprei meio quilo de carne moída. De segunda, é claro; o salário tinha melhorado, mas não tanto. Devorou a carne toda, crua. Como um digno representante da raça, detestava banho. Nada que eu pudesse dele exigir, pois o banho é, para mim também, um hábito repulsivo. Segundo os antigos, banhar-se diariamente amolece o caráter; coisa na qual creio piamente. O nome dele? Pois é, não consegui me decidir, ele era muito especial para que ficasse restrito a uma palavra. Dia após dia, eu me debati sobre como chamá-lo, mas nada era bom o suficiente. E sem nome ele ficou; nos entendíamos bem assim, mesmo porque ele nunca quis saber o meu. Talvez já o soubesse. Quereria permanecer incógnito? Mas o que é um nome se o ser ao nosso lado é um grande companheiro. Dar nomes às coisas é invenção dos homens: um pardal não pergunta ao outro qual o seu nome, onde mora, quanto ganha. A única exigência de meu amigo era que deixasse a televisão ligada quando eu saía e não podia levá-lo. E se eu já era avesso a sair de casa, com essa presença servil fui me apartando cada vez mais, dentro do possível, da convivência humana. Já não ia diariamente ao trabalho, nem desculpas esfarrapadas dava mais, até que fui despedido. Sem dinheiro, fui vendendo os poucos pertences, livros, roupas, alguns objetos de adorno, menos a televisão, a máquina de fazer loucos era agora o nosso único elo de ligação com o mundo exterior. Acabamos sendo despejados, a TV ficou para o locador, como parte do aluguel. Fomos morar debaixo do Viaduto do Chá.

Confesso que, de início, sofri muito com a situação, mas com o tempo acabei me integrando ao mundo da mendicância. Descobri que ainda havia pessoas de bom coração, as velhinhas. Elas, em sua grande maioria, são incapazes de negar um prato de comida, o qual eu dividia sempre com o meu fiel escudeiro canino, já que ele era incapaz de enternecer o coração dessas bondosas senhoras. Devido a minha formação escolar, segundo grau completo, tornei-me o porta-voz dos mendigos de São Paulo. Entre os meus iguais, outros havia com mais estudo, mas incapazes de eloquência, de retórica. À noite, à roda de uma fogueirinha, lia para eles, de Baudelaire, um poema em prosa sobre a necessidade de se espancar mendigos, para risada geral. Depois disso, eles iam dormir tranquilos, de alma lavada. Um dia, instado por alguns políticos corruptos (adjetivo desnecessário?), candidatei-me a vereador, e perdi. Nem mesmo meus colegas de infortúnio votaram em mim. Abalado, decidi não ser líder de mais nada. Dora em diante, seríamos eu e meu cachorro. Foi, então, que lembrei do companheiro de todas as horas.

Onde teria ele ido, durante os meses de campanha? Eu, ingrato, tinha-o abandonado à própria sorte. Procurei por ele em todas as ruas, todos os becos da grande cidade, fui a programas de rádio, e nada, ninguém sabia do seu paradeiro. Foi quando ocorreu o grande massacre de cães, em todo o território nacional. Dos pobres cães, não sobrara um para contar a história. O ar ficou empesteado, com o cheiro de carne queimada, as grandes fogueiras em praça pública.

E você, caro leitor, que teve paciência de ler estas linhas até aqui, deve estar se perguntando por que eu associei a doce figura do cãozinho com a memória do meu avô. Sinceramente, não sei, mas o que tenho como certo é que ele era mesmo a encarnação do velho, o pai de meu pai. É algo tão íntimo que não admito discutir o assunto com ninguém, nem mesmo com a família de esquimós que mora num iglu, feito de pequenas caixas de papelão, ao meu lado, nos baixos do Minhocão, onde resido atualmente. E, veja bem, tenho muita consideração por esses esquimós; eles costumam me oferecer, aos sábados, saborosos nacos de carne de foca.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

QARINA ou A DESCOBERTA DO SEXO



Edson Negromonte

A melhor fase da vida é a adolescência, quando se está predisposto a acreditar em tudo, quando tudo é possível, quando não se adquiriu ainda os malditos preconceitos que tolhem a imaginação, quando a imaginação ainda é terreno fértil para as ideias mais estapafúrdias, porém confortadoras, da alma juvenil, quando a vida nunca é sem graça ou insossa para um garoto destrambelhado, ávido por filmes e quadrinhos de terror e as, assim ditas, revistas masculinas, tudo isso regado a muito rock’n’roll. A história a seguir é baseada, desculpem, em fatos reais. Por favor, não torçam o nariz, eu bem sei quão mentirosa é, quase sempre, essa advertência. Só peço que me seja concedido o beneficio da dúvida, para que, após a leitura, tenham o direito de me chamar de mentiroso e até me difamar nas redes sociais. Você que já está com um pé atrás, o vírus do descrédito instalado no sangue, é melhor mesmo que fique por aí, à margem de um jardim ao qual jamais será admitido. O medo é o pior inimigo da humanidade; ouse dar um passo adiante, rumo à escuridão infinita do desconhecido, mesmo que isso o leve a vagar indefinidamente no espaço sideral. Ainda assim, arrisco-me a pedir disposição aos incréus. Talvez, ao final da leitura, façam como Giuseppe, o meu avô siciliano, um descrente, que quando lhe contavam uma história extraordinária, difícil de engolir, arrematava: “Si non è vero, è ben trovato”.
Foi em uma noite abafada, eu acabara de completar treze anos (os mais velhos, os guardiães da crônica da cidade, lavraram que, nos últimos quarenta anos, não houvera verão mais quente que aquele de 1973), que, no meio da noite, acordei sobressaltado, com alguém acariciando minha cabeça, a testa, entrelaçando sensualmente os dedos entre os meus cabelos compridos, carinhosamente. Fã de filmes escabrosos, eu era, no íntimo, um cagão. Mas devo admitir que, naquele calor infernal, o contato da mão fria era agradável, reconfortante, quase um refrigério. Por mais incrível que possa parecer, não tive medo, aliás, controlei o medo: “Ser corajoso não é não sentir medo, mas enfrentá-lo, Gafanhoto” – um útil ensinamento aprendido com a série de TV “Kung Fu”. Minha mente era mesmo destrambelhada, e eu associei essa carícia à mão agora esquelética da mãe que não tive. Não quero com isso dizer que eu seja filho de chocadeira: minha mãe morreu no parto, deixando-me órfão desde o primeiro momento de vida. No meio do breu reinante no quarto, eu sentia a presença de alguém, de algo que, apesar de tudo, me fazia bem. Bem podia ser mesmo a minha mãezinha que voltara do mundo dos mortos para me confortar. Ou para me buscar? Sempre quis ter mãe, alguém a quem eu pudesse contar os meus segredos, alguém que me compreendesse, que me desse colo. E vocês hão de convir que de mãe não se deve, não se pode ter medo, mesmo que ela já esteja morta e enterrada, bem enterrada. Enquanto eu desfrutava desse enlevo, o calor voltou a reinar no quarto e a presença angélica se evaporara. No dia seguinte, não contei nada a ninguém. Nem à empregada, nem ao meu pai, muito menos aos amigos. Sempre fui caladão assim, ensimesmado, é o meu jeito. E quem partilharia uma sensação tão íntima, sob o risco de ouvir pilhérias? Se havia algo que me deixava enfezado era o pouco caso que sequer pudessem fazer das minhas histórias, na maioria das vezes, concordo, mirabolantes. Pode-se dizer até rocambolescas. Sim, eu já tinha lido Ponson Du Terrail. Perambulando pelas ruas da cidade, bastava fechar os olhos para sentir de novo a mão diáfana em minha fronte; de bem comigo mesmo, deliciava-me. Era como se aquele ser de substância vaga, feito da matéria dos contos de fada, fosse a melhor parte de mim; eu nunca tinha sido alvo de um gesto feminino tão prazeroso.
À noite, inquieto, me recolhi mais cedo do que o costume, não fiquei na roda de amigos, jogando conversa fora, na esquina da praça Coronel Macedo. Deitei-me, ansioso, à espera de um novo contato. Aquilo me fizera bem, aquecera a orfandade do meu coração. Passei a noite em claro e nada, somente o calor insuportável que os ventiladores não conseguiam amenizar. Levantei-me da cama, frustrado. Tomei o café da manhã e fui bater perna. Nada conseguia atrair minha atenção por muito tempo, nem o jogo de bilhar, nem o bamboleio dos quadris das garotas da Escola Normal, nem o papo furado dos bêbados no mercado, com os quais eu aprendia muito mais sobre a vida do que nos maçantes livros escolares. Angustiado, eu não via a hora de escurecer, para me encerrar em meu quarto, à espera de uma nova visitação. Sentado na poltrona, olhos fechados, revivi toda a sensação daquela noite, repetidas vezes, até que meu corpo se cansou e eu caí em sono profundo, um sono sem sonhos. Dormi feito uma pedra; despertei com a claridade da manhã entrando pela janela; eu não lembrava de tê-la aberto. O sol, surgindo por trás das montanhas, como uma bola de fogo, prometia mais um dia sufocante.
Na vida de um garoto inquieto, como eu era, os acontecimentos se atropelam de tal forma, a vida é tão dinâmica, que quase o fazem esquecer do ocorrido há poucos dias atrás, mesmo que esse acontecimento revista-se dos prodígios do maravilhoso. Assim, voltei ao bilhar, abismando os sapos com meu taco infalível, eu era então capaz de lances mirabolantes. Rocambolescos? Talvez, talvez. Voltei tarde para casa, ninguém ligava muito para mim mesmo (ai, que falta faz uma mãe!), eu não tinha que dar satisfação a ninguém dos meus horários: meu pai, sempre envolvido com a contabilidade da fábrica de conservas, e Maria deitava cedo, cansada das tarefas domésticas. No dia seguinte, ela perguntaria, mecanicamente, por onde eu tinha andado, contentando-se com qualquer resposta evasiva. Perguntava somente por perguntar, como fazem todas as mulheres (menos as mães), pouco se importando com a resposta. Para ela, a casa em ordem era o mais importante; ela bem que tentava, a seu modo, fazer as vezes da minha mãe, mas como não tivera filhos, não sabia lidar com as minhas casmurrices. Maria era algo entre empregada doméstica, governanta e membro da família, e tudo o que essa posição indefinida pudesse acarretar e significar. Ela estava com a família desde tempos imemoriais, viera morar conosco, emprestada por minha avó, que dizia não se lembrar mais quando Maria Leocádia pusera os pés em sua casa.
À noite, foi impossível sair de casa, caía um aguaceiro de dar inveja a Noé. Sem medo de ser exagerado, podia-se dizer que era uma noite bíblica, com todas as lembranças do dilúvio vindo à tona. Depois de faltar a luz, fui deitar, era o melhor, a única coisa que se podia fazer. Nem bem adormeci, senti novamente a carícia da mão fria em meus cabelos. Tentei acordar, abrir os olhos, mas foi inútil, meus músculos se recusaram a obedecer, numa espécie de hiato entre a vigília e o sono. Ou entre o sonho e o pesadelo, a onirodinia, um sonâmbulo que, apesar do esforço, não conseguisse se mover. A mão tocou-me, então, delicadamente o peito, afundando-se gélida ao encontro do coração. Não podia ser minha mãe rediviva, já agora eu tinha certeza disso: pois, senti, logo em seguida, a mão da entidade tocar delicadamente o meu sexo. Agora, a mão estava morna, de uma mornidão gostosa e agradável aos sentidos. Não, não era a minha mãe. Então, a criatura deitou-se sobre mim, aconchegando-se, roçando os seios em meu corpo, meu peito, na minha boca. Quando percebi, a cabeça em redemoinho, eu estava dentro dela, dentro da criatura. Não, definitivamente, não era a minha mãe! A vulva dela era quente, uma quentura que eu nunca antes provara, molhada. Num jorro de leite seminal, inundei-a. No dia seguinte, sentia-me cabreiro, embora feliz, o apetite carnal satisfeito. Nada melhor, para um adolescente, que a gratificação da carne, evita muitos males da cabeça, como a obsessão pelo sexo, evita de ver sexo em tudo, porque sexo é que nem coceira, uma vez coçada desaparece. Isso é o que dizem, pode até ser, mas comigo não foi assim. Eu conheci, um eufemismo bíblico, a criatura durante uma semana, todas as noites, sem lhe ver a face. Sabia somente que ela tinha asas, pressenti-as. Asas enormes, macias, que me envolviam num abraço; um casulo larval. Por momentos, temi que ela fosse um anjo, medo de estar transando com um desses seres virtuosos (isso deve ser pecado!), mas anjos não têm sexo, conforme aprendi nas aulas de catecismo, e isso era já um consolo. Depois do gozo, ela, a criatura alada, imediatamente desaparecia. E eu ficava ouvindo, lá fora, o clamor das asas gigantescas, distanciando-se. Que ela era um ser áleo, já não havia a menor dúvida. E que fosse uma fêmea (e que fêmea!), era um fato.
Fazer sexo todas as noites, durante toda a semana, não me enfraquecia. Em vez disso, eu ficava, a cada dia, mais disposto, mais satisfeito com a vida, a mente mais clara, mais confiante (a droga da felicidade!), tanto que me tornei naturalmente o líder da turma, atirando-me de cabeça do trapiche, sem temer as estacas no fundo, remanescentes de um antigo ancoradouro; uma façanha. Na escola, minhas notas melhoraram sensivelmente, passei a ser elogiado pelos professores, passei a atrair os olhares das meninas, as quais eu achava tão infantis, tratando-as sem nenhuma condescendência, como um legítimo ídolo do rock. Eu era outro, minha personalidade mudara. Mas nada disso me afetava diretamente, era como se não fosse eu, era uma máscara social, era outro aquele que recebia os cumprimentos da diretora, a medalha pelo melhor desenho do colégio, os votos de um belo futuro, essas patacoadas que todos os jovens que se sobressaem em alguma atividade estão fadados a ouvir. Mas o que, na verdade, acontecia comigo? De repente, de um dia para outro, eu passei a compreender várias línguas, conseguia entender o que os marinheiros conversavam entre si, não só os americanos e os franceses, mas os dinamarqueses, os noruegueses, os islandeses, até mesmo a algaravia de um taifeiro javanês. Devo confessar que tudo isso deixava-me assustado, ao mesmo tempo que me envaidecia. Então, por que eu me preocuparia com essa fatuidade, se “vaidade das vaidades, tudo é vaidade, como bem diz Salomão, no “Eclesiastes”?
Meu idílio com a criatura ia cada vez melhor, a testosterona a mil. Diferente do começo, quando ela chegava e ia logo me possuindo, com o tempo, apesar do prazer que ela me dava, eu comecei a me sentir um objeto em suas mãos, um escravo sexual, condição inicialmente nada incômoda. Mas eu queria mais. Assim, como um casal que se ama, depois do ato sexual, passamos a conversar; o seu tom de voz era delicado, ciciante, sussurrava em meus ouvidos palavras ininteligíveis, porém perceptivelmente doces. Agora, depois de me esgotar, ela deitava-se ao meu lado e comigo dormia até um pouco antes da aurora, quando fugia de mim, como uma Cinderela das trevas. Uma madrugada, recostada em meu peito, sem que eu perguntasse, ela disse-me seu nome. Qarina, a doce, a minha doce Qarina! Passou-se, assim, em arroubos noturnos, um mês, dois, três, desde o nosso primeiro encontro. Sim, estávamos apaixonados. Eu, da minha parte, garanto que sim, ela era o motivo da minha existência, da minha nova vida. E acho que ela também tinha por mim o mesmo sentimento. Uma manhã, de banho tomado, desci para o café, quando Maria, olhando em minha direção, de olhos mais que arregalados, esbugalhados, fez o sinal da cruz.
– Ai, menino, que tô veno um encosto do teu lado. E parece uma muié! Valei-me, meu bom Jesus de Iguape! São João, Xangô menino! – exclamou a pobre mulher, desesperada, fazendo novamente o pelo sinal.
(À luz do dia, eu não conseguia ver Qarina, mas percebia a sua presença ao meu lado. À noite, mesmo com todas as luzes apagadas, sua imagem era nítida, como nítida será sempre a luminosidade da carne amada. E ela era linda! Muito mais linda do que qualquer artista renascentista seria capaz de representar). E Maria continuava a se persignar. Nervosa, balbuciou que eu fosse ver o padre Patrick. Dei-lhe um beijo em cada face, dizendo que estava tudo bem, procurando acalmá-la. Ao voltar para casa, Maria, ainda ressabiada, mas sem fazer escândalo, provavelmente não estivesse vendo mais ninguém ao meu lado, disse-me que o padre ordenara que eu fosse vê-lo na manhã do dia seguinte, impreterivelmente, no confessionário. Com certeza, Maria telefonara para ele, contando o que vira. Como discutir uma ordem do padre Patrick? Era um burro de um homem, um irlandês muito alto, curvado, da cabeça quadrada, ciclópico, sanguíneo, de manoplas disformes que mais pareciam duas raquetes de tênis. Não havia como escapar, ele iria me buscar em casa e, se necessário, me arrastaria pelas pernas até a igreja. Padre Patrick era uma autoridade em exorcismo, como todos os padres irlandeses. Sendo amigo da família, e com meu pai sempre ausente, achava-se no direito de dar palpites na minha educação, com o aval de Maria. Não entendo por que Maria, uma negra velha, sensitiva, descendente de africanos, não apelou aos seus orixás, em vez de chamar pelo padre. Nada mais óbvio que eu, aos treze anos, o temesse. A saudação do velho cura era um tapaço na cabeça dos meninos, um cachação, o que, de cara, deixava-nos submissos e propensos a aceitar as suas palavras como lei divina. Ao cruzar o pórtico da igreja, senti vontade de sair correndo dali, fugir daqueles santos gigantescos, de gesso, olhando-me do alto, reprovadores, desdenhosos. Antes que pudesse dar meia-volta, padre Patrick chamou-me, com sua voz de trovão, indicando o confessionário, com o dedo em riste. Sem delongas, foi logo perguntando:
– Tem se masturbado muito?
– Eu não!
– Tá doente?
– Não...
– Então, o que tá fazendo aqui?
– Não sei, a Maria disse que o senhor queria me ver...
– É mesmo! Ela disse que viu uma mulher do seu lado. Tem estado com rameiras ultimamente? Sabe que essas mulheres são almas pegajosas que grudam feito sanguessugas espirituais no corpo dos homens? Dos meninos de treze anos, principalmente! Venha comigo!
Na saleta ao lado, o padre, sem mais nem menos, me aspergiu com água benta, à espera de alguma manifestação, mas nada, nem uma fumacinha saiu do meu corpo. Intrigado, padre Patrick olhou-me bem dentro dos olhos.
– Tem usado drogas?
– Não!
– Nem o xarope Romilar? Eu consigo ver a lubricidade nos seus olhos. Tem tido poluções noturnas?
– O quê?
– Sonhos eróticos, sua besta!
– Não...
– Não minta! Deixe-me examinar seus olhos.
Com polegares colossais, arregaçou minhas pálpebras, como se elas estivessem escondendo a verdade dos séculos ou toda a areia do Saara.
– Humpf, venha comigo!
Por uma porta lateral, passamos à pequena biblioteca da casa paroquial. Na entrada, no alto, estava pintado, em vermelho escarlate: LASCIATE OGNI SPERANZA, VOI CH' ENTRATE.
– Sabe o que quer dizer isso? “Deixai toda a esperança, vós que aqui entrais”. É Dante, canto terceiro do “Inferno”.
Mandou que me sentasse em uma cadeira à sua frente. “Então, é aqui, nesta sala, que ele faz os exorcismos?” – pensei.
– Você já ouviu falar em demônios noturnos, incubus e succubus?
– Não...
– Não minta para mim, seu cachorro depravado!
Baixei a cabeça. Como discordar daquela voz autoritária, tonitruante? Sim, eu sabia o que eram os ditos demônios, lera sobre eles, lera o conto de Balzac sobre o succubus da Rue Chaude.
– Tire a camiseta! O que são essas marcas vermelhas nas suas costas? Esses arranhões profundos, essas lacerações que parecem ter sido feitas por unhas de mulher. Você tem ido à zona? Tem estado com mulher da vida?
– Não.
– E o que me diz, então, dessas marcas?
– Se eu pudesse ver, mas não tenho olhos nas costas...
– Seu filho de uma puta, tá zombando de mim? – vociferou, dando-me um cascudo que jogou-me no chão, onde fiquei sem vontade nenhuma de abrir os olhos.
Quando voltei à vida, padre Patrick estava de costas para mim, procurando um livro na biblioteca. Pegou um pequeno volume e começou a folheá-lo, como se eu não estivesse ali. Não sei precisar quanto tempo se passou, enquanto eu buscava o equilíbrio, alternando-me entre borbulhas de luz e a escuridão absoluta. Talvez uma eternidade, ou alguns minutos.
– Já ouviu falar no padre Sinistrari? Lógico que não! Este vade-mécum sobre os demônios foi escrito por ele, para orientar os inquisidores. Responda à minha pergunta somente com “sim” ou “não”. Você andou sonhando que fodia durante o sono e, quando acordava, não tinha nenhum vestígio de langonha no seu lençol?
Balancei a cabeça, afirmativamente.
– Eu disse para responder “sim” ou “não”!
– Si-sim – balbuciei.
– Assim está melhor, admitir o pecado já é um grande passo.
– Grande passo para quê? – me atrevi.
– Cale a boca, seu pervertido! Só abra a boca quando eu autorizar – e voltou a folhear o livreto. Como as horas se arrastam dentro de uma igreja... Quando eu começava a brigar com o sono, cabeceando de maneira incontrolável, ele perguntou-me, a sua carantonha quase encostando na minha cara, o bafo quente, o mau hálito: – Faz tempo que isso vem acontecendo?
– Uns dois, três meses, talvez quatro...
– E só agora eu fico sabendo disso? Tem alguma vizinha sua grávida?
– Que eu saiba não.
– Você deve estar se perguntando por que fiz essa pergunta. Então, eu vou lhe contar o que está acontecendo com você. Esse tempo todo, seu idiota, você tá trepando com um demônio em forma de mulher, um succubus. Ele coleta o seu sêmen na vagina e vai copular, em forma de incubus, com as mulheres da vizinhança, fertilizando-as com o esperma que coletou de você, porque ele, o incubus, é incapaz de produzir sêmen.
“Ah, então, eles são bissexuais, como Alice Cooper” – conjeturei com os meus botões.
– Eles são estéreis. Você está sendo usado, a sua porra está sendo usada para criar uma raça de homens fracos, fáceis de serem controlados pelas forças do mal. O succubus, a contraparte feminina desses demônios, toma a forma que bem entende, de acordo com as suas fantasias. Diga-me, você sonhou que estava metendo com outras mulheres, além do succubus, mulheres que você deseja? Seja sincero, não tenha vergonha de contar para mim, eu sou seu confessor e, além do mais, somos amigos. Ou não somos?
Balancei a cabeça vigorosamente, assentindo.
– Eu sonhei que tava com a Dina Sfat, usando somente uma anágua branca, de algodão, como eu vi na Playboy; sonhei com a Julie Newmar, vestida de Mulher-Gato, e que ela dizia para mim, na hora do gozo: “purrfect!”; sonhei com a Betty Page, os pentelhos negros, os michelins rosados dos mamilos, os seios arredondados; em Karen Carpenter, fiz um cunnilingus,que a deixou extasiada; com Lorna, a rainha da selva, foi muito estranho, ela era bidimensional, sem volume; ah, a suavidade da pele de pêssego da Rita Lee; com Jane Birkin tinha até trilha sonora, eu sentia suas costelas em minhas mãos, todas as suas delicadas vértebras; Karen Black, Allyson Ames, Grace Slick...
– Chega, chega, já é o bastante! Tudo indica que é mesmo um caso de possessão demoníaca. Acontece que esse succubus apaixonou-se por você. Os succubi são submissos, diferentemente da sua mãe Lilith, a primeira mulher de Adão. Segundo a tradição, os succubi não costumam se apaixonar, mas às vezes acontece, como estamos percebendo aqui. Você tem sentido cansaço depois de trepar noite após noite nesses quatro meses?
– Não, eu tenho me sentido é muito bem, melhor do que nunca me senti antes, bem disposto...
– É isso mesmo, é assim que a coisa funciona quando há paixão entre o homem e um desses demônios! – gritou padre Patrick, exaltado, esmurrando o ar. – Precisamos dar um jeito nisso!
Como “dar um jeito nisso”? Eu não tinha pedido a ajuda de ninguém, a minha vida estava perfeita, eu era o queridinho da escola, tinha uma mulher que me amava, experiente, que me ensinava coisas do arco-da-velha, que, compreensiva, tomava a forma dos meus desejos... Por que as pessoas têm que se intrometer na vida dos outros, onde não são chamadas, dizendo-lhes o que é certo ou errado?
– Padre, tem gente aí, querendo falar com o senhor! – veio avisar a irmã Vincenza.
Quando fiquei só na biblioteca, aproveitei para dar uma olhada no tal livro que o padre asseverava ser o vade-mécum dos demônios. Ficaram gravados em minha memória fotográfica os dizeres da folha de rosto: DEMONIALITY OR INCUBI AND SUCCUBI A TREATISE WHERE IS SHOWN THAT THERE ARE IN EXISTENCE ON EARTH RATIONAL CREATURES BESIDES MAN, ENDOWED LIKE HIM WITH A BODY AND A SOUL, THAT ARE BORN AND DIE LIKE HIM, REDEEMED BY OUR LORD JESUS-CHRIST, AND CAPABLE OF RECEIVING SALVATION OR DAMNATION, BY THE REV. FATHER SINISTRARI OF AMENO (17th CENTURY) PUBLISHED FROM THE ORIGINAL LATIN MANUSCRIPT DISCOVERED IN LONDON IN THE YEAR 1872, AND TRANSLATED INTO FRENCH BY ISIDORE LISEUX NOW FIRST TRANSLATED INTO ENGLISH WITH THE LATIN TEXT PARIS ISIDORE LISEUX, 2 RUE BONAPARTE PARIS. Acho que era isso mesmo, se a minha memória fotográfica não estiver me pregando uma peça.
Quando o padre voltou, olhou com desconfiança para a posição em que eu tinha deixado o livro e, em seguida, para mim, com seus olhos azuis que mais pareciam duas bolas de gude dos inferno.
– Você mexeu aqui?
– Não, senhor!
– Você é um baita de um mentiroso! Sabe que se fosse no tempo da Santa Inquisição, você seria queimado vivo? – rosnou.
Achei por bem baixar a cabeça porque o grande filho de uma cadela era bem capaz de me virar do avesso, com outro safanão.
– Conte-me sobre os seios da criatura!
– Eram perfumados, enchiam e refluíam, conforme os movimentos do seu corpo, isso quando ela vinha por cima de mim. Somente quando ela vinha na forma de Jane Birkin, eram pequenos, como são os peitinhos da cantora.
Por um momento, ciumento, achei que padre Patrick estava muito interessado no meu relato, além da conta, fazendo perguntas muito estranhas. Percebi a excitação no ar. Sabe como são esses padres, excitam-se com o pecado dos outros.
– E a xandanga dela é dentada? É mesmo uma caverna de gelo? Não quero saber, não quero saber, deixa isso pra lá! O succubus veio, alguma vez, na forma de vaca ou de égua?
– Não, nunca!
– Ah, bom! Isso quer dizer que você não praticou bestialismo, o que é um pecado muito grave perante os olhos do Senhor. Pelo menos, essa nódoa você não carrega em sua alma transviada, apesar de ter mantido intercurso com o Demônio.
– Com o Demo não, senhor!
– Cale a boca!
– Mas, senhor...
– Quer sentir novamente o peso da mão do servo de Deus? Os santos padres da Igreja – continuou, falando consigo mesmo, ignorando-me – se debruçaram sobre o assunto, gente do quilate de Santo Agostinho e São Tomás. Constataram eles que isso vem desde tempos imemoriais. Já o Livro de Enoch faz menção aos Vigilantes, os quais são anjos transformados em seres de pedra, que vêm a ser hoje as pedras colossais que vemos à beira-mar, por copularem com a fêmea do homem. Há o relato de Santo Agostinho, que diz não duvidar da existência dessas criaturas demoníacas, devido à quantidade de casos contados por pessoas idôneas; e isto está em seu livro “A Cidade de Deus”. O exorcismo seria incapaz de livrá-lo dessa obsessão, meu pequeno apóstata, pois essas criaturas, esses demônios sexuais, são imunes ao exorcismo, posto que não são o Demônio em pessoa, mas frutos da relação entre mulheres e anjos decaídos. Portanto, em suas veias corre sangue humano, o que impossibilita a esconjuração. Talvez ainda haja salvação para você, levando-se em conta que até o papa Silvestre II envolveu-se com um succubus, que lhe deu uma filha, Meridiana... Você está me escutando? – berrou padre Patrick, raivoso.
– Sim, senhor – respondi prontamente, apesar da sonolência mórbida que ia tomando conta de mim, provocada pela fala monótona do irlandês cabeçudo. Que cabeçorra tinha o homem, devia ser a encarnação do gigante Finn! Deve ter rasgado a mãe...
– Lilith, a primeira mulher de Adão não quis se submeter ao marido e foi obrigada pelo Senhor a vagar pela terra, à margem do Éden. E ela deitou-se com os anjos rebeldes, deitou-se com o arcanjo Samael, dando origem a uma raça de incubi e succubi. A palavra succubus significa originalmente “prostituta”... Os filhos dessa maldita conjunção são chamados de “cambions”, crianças de excelente saúde, mas sujeitas a influências sobrenaturais...
Enquanto o padre divagava, gritando, sussurrando, lembrei-me do disco “Electric Ladyland”, do Jimi Hendrix, com aquele monte de mulheres na capa, as putas elétricas, que bem podiam ser succubi. O negão sabia das coisas, talvez por isso o nome da primeira música seja “And the Gods Made Love”.
– O filósofo Diógenes Laércio, com o qual concorda São Jerônimo, um dos doutores da Igreja, diz ter sido Platão, o grande filósofo, fruto do relacionamento de um incubus com uma mulher. Também Alexandre, o Grande, como informam Plutarco e Quinto Cúrcio Rufo. E Cipião Africano, o Velho, era ele, da mesma forma, fruto de um intercurso pecaminoso, segundo Titus Livius Patavinus...
“Eu é que não tô entendendo patavina nenhuma” – pensei. ”Aonde esse padre quer chegar?”
– Além do mago Merlin, nascido da relação de um incubus com uma freira, a filha de Carlos Magno.
– Então, eu estou em boa companhia! – exclamei, num impulso. Eu e minha língua grande! Foi o que bastou para que levasse um pé de ouvido que me deixou todo zoado, os tímpanos zunindo. Agora é que eu não conseguiria entender mais nada.
– Há algum caso na família, um antepassado seu que tenha se deitado com um desses seres?
– O quê? – perguntei, em meio a um zumbido infernal, sentindo o maxilar, a cabeça, tudo dolorido, impaciente, querendo fugir dali, de tudo aquilo que estava me fazendo tanto mal. Nunca tinha apanhado tanto na vida. Mas como calar aquela matraca celta?
– Pergunto isso porque uma maldição desse quilate estende-se até a quarta geração. Se você foi o primeiro da sua família a praticar ato tão ignóbil, muita coisa ainda há de vir por aí, seu degenerado!
– Ahn?
Vendo que eu estava evidentemente fora de eixo, o padre mandou-me para casa, não sem antes avisar que eu deveria colher o mênstruo de uma virgem, o qual seria misturado com as cinzas do coração de um peixe, para fazer um amuleto que me livraria da obsessão. Muito engraçado! Que mulher, em sã consciência, se submeteria a me ceder sangue menstrual? E como eu pediria algo assim a alguém sem levantar suspeita sobre a minha sanidade mental? Aí, sim, eu me tornaria maldito de vez, mal falado para o resto da vida, condenado até a minha décima geração.
À noite, enraivecido, humilhado, a cabeça doendo, o maxilar rangendo, deitei-me. Mal embarcara no sono, ouvi o som característico das asas de Qarina, ruflando majestosa lá fora. Pela janela aberta, ela adentrou a nossa alcova e, aconchegando-se em meu peito, como uma menininha indefesa, sussurrou:
– Esta vai ser a nossa última noite, eles me matarão amanhã.
– Eles quem?
– Não importa, é melhor que você não saiba, meu amado, o meu erro foi me apaixonar... por você. E a paixão é um sentimento proibido para os demônios sexuais, como vocês, humanos, nos chamam. Então, me possua, faça amor comigo pela última vez!

terça-feira, 16 de setembro de 2014

O MISTÉRIO DE SABINE FUHRMAN

Edson Negromonte

Eu era um garimpador de livros,, aliás, ainda sou, mas não com a avidez de anos atrás. Não ia em busca de livros raros, caríssimos, de preços exorbitantes, esses que aguçam a cobiça dos bibliófilos. A minha busca era, pode-se dizer, singela, de valor apenas para mim mesmo, algo muito pessoal, íntimo, algo relacionado com a alma. Assim, tornei-me o provisório possuidor, posto que tudo na terra é de caráter temporário e nada nos pertence, da primeira edição de “O Rei Menos o Reino”, de Augusto de Campos, de 1951, pela Maldoror, que estampa incorretamente na capa “Edições Maldonor”, o que me leva a deduzir que o então jovem poeta ainda não fosse tão criterioso (como deixaria ele passar essa falha terrível justamente na capa do seu livrinho de estreia?); o primoroso “An Emerson Treasury”, em edição de bolso, com capa de couro macio, de pelica, sem data, publicado pela Siegle, Hill & Co., de Londres; de um Affonso Ávila, perdido em meio à poeira de um sebo paulistano, “O Açude e Sonetos da Descoberta”, de junho de 1953, cuja folha de rosto traz a dedicatória manuscrita do autor para o poeta Edgard Braga, outro dos meus eleitos, datada de setembro de 1953, rabiscados os nomes dos dois poetas, na vã tentativa de esconder seus nomes, mas ainda legíveis ou talvez por causa disso mesmo mais legíveis, pois aquilo que tentamos ocultar torna-se mais e mais evidente, aguçando a curiosidade (ao pé da página o endereço: rua Carangola, 225, que vinha a ser o mesmo endereço da revista Vocação; um exemplar esbagaçado, capa e lombada coladas com papel pardo, de “O Duplo Assassínio da Rua Morgue”, de Edgar Allan Poe, cujo subtítulo é “Novellas de aventuras estraordinarias e fantásticas” (na folha de rosto, uma divertida advertência dos editores: “Leitura pouco recomendável às pessoas de espírito fraco, meninas hystericas, jovens acephalos, velhos cardíacos, matronas beatas e outras que creem em almas do outro mundo e cousas inverosímeis”). Esta preciosidade de 1925 é da Empresa Editora Rochér, de São Paulo. Deve ser assinalado que o volume ainda contém os contos “A carta roubada”, “O systema do Dr. Breu e do professor Penna”, “O gato preto”, “Colloquio entre Monos e Uma” e “Hop-Frog”.
Em meados dos anos 1980, eu frequentava um sebo no alto do prédio da sinagoga, situado em uma rua paralela à Avenida Paulista, da qual não lembro mais o nome, à procura dos tesouros que aquelas estantes empoeiradas ocultariam. Várias tardes, permaneci ali, no “sebo dos judeus”, como era conhecido, embriagado com os títulos que aquele espaço abrigava: livros em português, inglês, mas a grande maioria em alemão e, mistério dos mistérios, vários e vários volumes em indecifrável e esfíngico iídiche. Que prazer abrir as páginas, acariciar as capas, admirar a encadernação, o cuidado gráfico, as unciais, a sensação táctil dos grandes poetas: Schiller e Rilke e Heine e Christian Morgenstern. As duas velhinhas que ali atendiam, absortas em suas infalíveis toalhinhas de crochê, deixavam-me à vontade para escarafunchar cada desvão perdido daquela sala enorme e comungar com os antigos donos, com a trama dos seus dramas, tanto coletivos quanto domésticos. Em uma dessas ocasiões, deparei com a obra completa de Goethe, em 36 volumes, no alto de uma das estantes. Toda em alemão! Embora eu não soubesse lhufas de alemão, como até hoje não sei (Ariano Suassuna, numa das suas brilhantes tiradas, conta que se tivesse nascido na Alemanha, seria mudo, devido à dificuldade da língua). Isso não foi empecilho para adquiri-la. Saí do sebo, em direção à estação do metrô, arrastando uma mala que as duas senhoras obsequiosamente me emprestaram, a qual continha o cadáver esquartejado em exatas trinta e seis partes do corpo poético e filosófico do grande poeta alemão, o maior entre os maiores. Johann Wolfgang von Goethe. Não estaria ali também o corpo, não o físico, mas o espiritual, o corpo essencial, do antigo proprietário?
A primeira coisa que fiz, ao chegar em casa, à noite, tarde da noite, foi cheirar, tal e qual um psicopata, absorvendo delirante, sensualmente, o odor fresco do sangue da vítima, o corpus espostejado, membro a membro, posta a posta, aliás, tomo a tomo, enquanto enfileirava gozoso a coleção na principal prateleira da sala de estar: viagens, romances, botânica, teatro, a sua muito pessoal teoria das cores... Em seguida, a acariciei como se acaricia uma mulher, a mulher amada, amorosamente, com cuidado, ternura, de leve para não ofendê-la, sem tocar de imediato nos seios, os cabelos, o perfume dos pelos da nuca, os braços, até que ela, então, delicadamente, sussurrante, ciciando, sibilante, peça chorosa que você a possua. Assim são as mulheres, assim são os livros: sem afoitezas que o tempo é invenção e predicado dos verdadeiros amantes.
Enquanto folheava o “Gedichte” (Poesia), aspirando embriagado o odor de papel velho, em tons de amarelo e ocre, os pontos de ferrugem, página a página, voluptuosamente, os caracteres góticos, inadvertidamente o volume abre as pernas, convidativo. As coxas fogosas deixam entrever o seu pequeno segredo clitoridiano, há tempos guardado, resguardado dos olhos do vulgo: o cartão de bonde pertencente a Sabine Fuhrmann; a foto da adolescente grampeada no documento. Seria a minha “garota de Berlim”, como eu a apelidei, a antiga dona dos trinta e seis pedaços do corpus de Goethe? Teria Sabine Fuhrmann trazido a coleção consigo, fugitiva da bestialidade nazista? Ou a teria comprado em alguma importadora aqui no Brasil, e usara como marcador de página o seu cartão de bonde? Em meio a essas divagações, preparei uma dose de uísque, duas pedras de gelo, acendi um cigarro e me pus a sondar, em conjecturas, a foto agora amarelecida, em tons de sépia, quase apagada, da menina de vestido branco.
Assim, Sabine Fuhrmann aparecia-me ora embarcando no bonde para ir à aula, de uniforme escolar, saia pregueada, os cabelos escuros presos num rabo de cavalo, ora embarcando clandestinamente com seus pais num cargueiro rumo à América do Sul, com escala em Buenos Aires, onde muitos dos seus conterrâneos desceram para uma nova vida, distante da guerra. Ela não, para a minha Sabine Fuhrmann, para os pais da garota de Berlim, o destino era, desde a partida, o Brasil, onde se dizia que a comida era abundante, principalmente as frutas de que ela tanto gostava. Aqui, as bananas, que custavam uma pequena fortuna na Europa, não eram artigo de luxo. Aqui, podia-se comprá-las em cacho, aos montes, por uma ninharia, como ela ouvira contar. Munido de óculos, lupa e de um dicionário alemão-português, investiguei o que restava dos caracteres quase apagados do gasto documento, o cartão do bonde, de papel pardo, as bordas vermelhas. Em evidência, o número 24549, o nome de Sabine Fuhrmann escrito à tinta, em letras maiúsculas, e o seu endereço: Spichernstrasse, 17. Ao lado, a idade: 15 anos. Ao pé do cartão, uma foto retangular (estreita, evidentemente recortada de uma foto maior, onde talvez ela não estivesse só, mas com um grupo de outras pessoas. Pais? Irmãos? Amigas?), perfurada com as letras BSt. Qual o significado de BSt? A sigla da companhia de bondes? Berliner Strassenbahn? Talvez, talvez. No verso, em vermelho, o carimbo de validade, borrado, identificando-se somente o ano: 1924. Ou 1929? Então, se viva, segundo as minhas contas, Sabine Fuhrmann teria hoje 95 anos. Ou 100? Com o avanço da medicina, que hoje prolonga a vida dos seres humanos, principalmente a das mulheres, a idades anteriormente inimagináveis, é bem possível que ela, a garota de Berlim, possa estar, neste instante, a rememorar para netos ou bisnetos a viagem de navio que fez da Alemanha ao Brasil.
Foi justamente por ter ouvido a notícia que a professora Simoni Dias defende em livro a teoria de que o líder nazista Adolf Hitler, ao invés de ter cometido suicídio, teria também fugido para o Brasil, estabelecendo-se na cidade de Nossa Senhora do Livramento, no Mato Grosso, fronteira com a Bolívia, que saí à procura, entre os meus guardados, do cartão de bonde de Sabine Fuhrmann. Foi aqui, também, que o médico nazista Josef Mengele, o “anjo da morte” de Auschwitz, que fazia experiências genéticas com seres humanos vivos, especialmente anões e gêmeos, morreu afogado na praia de Bertioga, no litoral de São Paulo. Não foi aqui, no Brasil, antes da eclosão da Segunda Grande Guerra, que funcionou o segundo maior partido nazista do mundo? Não foi o presidente Getúlio Vargas que entregou a Adolf Hitler, sem que ele houvesse pedido, como prova de simpatia pela causa nazista, a judia Olga Gutmann Benário, a esposa alemã do líder comunista Luiz Carlos Prestes, para apodrecer em um campo de concentração?
Espere um pouco! Se a Segunda Guerra teve início em 1939, como afirmam os historiadores (eu, particularmente, acredito que a assim chamada Segunda Guerra Mundial é a continuação da Primeira, a qual ainda não acabara realmente), então, Sabine Fuhrmann, ao vir para o Brasil, já tinha pelo menos 20 anos. Ou 25... Ou trinta e poucos. Então, ela bem podia ter aqui chegado, acompanhada pelo marido. Talvez até com filhos. E que o seu cartão do bonde era, para ela, um documento obsoleto, já com outra serventia, a de marcador de página. Depois dessa quase descabida digressão, o que importa é que, para mim, Sabine Fuhrmann terá sempre quinze anos e jamais envelhecerá, assim como Peter Pan queria que tivesse acontecido com Wendy Darling ou Lewis Carroll com Alice Liddell.