Edson Negromonte
Conheci o hoje laureado escritor Andrés de Lucca lá pelos anos 70, em Hangares, um vilarejo no litoral do Paraná, para onde os hippies da época desciam em peso, em busca dos ideais de uma vida mais próxima à natureza, segundo as ideias revolucionárias de Jean-Jacques Rousseau. Tínhamos quase a mesma idade, com uma pequena diferença de dois anos,sôfregos adolescentes também em busca de ideologias. Dentro da efervescência cultural e política da época, participamos do mesmo grupo teatral, capitaneado por Siegfried Vuh, um maluco visionário que pregava a paz e o amor livre muitos anos antes de isso virar moda. Vuh, como o chamávamos, filho de um industrial da construção naval e uma cantora de ópera, resolvera abandonar a burguesia e levar a vida como bem entendesse, isso ainda no início dos anos 50, lapidando o hábito de comer apenas uma vez ao dia uma ração de aveia com leite de cabra. Na falta, usava mesmo o leite em pó, Glória ou Ninho. Era uma figura estranha: magérrimo, esmaecidos olhos acinzentados, a barba negra chegando ao peito quase sempre nu, desgrenhados os poucos cabelos, eternamente descalço e de calção de futebol, embora fosse um perna-de-pau. Vuh era respeitado no meio teatral paranaense, apesar de afirmar que jamais faria parte das panelinhas do Guaíra. Com ele, levamos a peça “A Família do Acrobata e o Arminho de Estimação” ao conceituado festival de Arara Roxa, cidadezinha do quadrilátero morcegal de Pernambuco, a qual contava a história de um espião brasileiro a serviço do nazismo. Estranhos para os dias atuais, os silêncios intermináveis e os ruídos pré-gravados, a mímica e a gesticulação extravagante, de insinuação sexual, atores rasgando com os próprios corpos paredes de papel-arroz, com gritos, gemidos e sussurros, eram entendidos pela plateia, como um código passível de decifração, uma espécie de “Finnegans Wake” da ditadura militar. Para Arara Roxa, viajamos durante seis dias num ônibus caindo aos pedaços, numa fedentina só, depois que Juca Bandido e Paulinho Perereca, dois atores do mesmo grupo, entupiram a privada. Apesar do nojo, a fome era de roer as entranhas, dividíamos o pouco que tínhamos, que leváramos de casa, irmanamente. Ah, aqueles abacaxis da beira da estrada foram providenciais. De tão famintos, só faltava comermos a coroa (não, não estou me referindo à mulher de Vuh. Ela seguia com o marido no conforto de uma caminhonete, à frente do nosso ônibus). Nunca mais comi abacaxis tão doces, tão saborosos. Na peça, eu fazia o papel do espião menino, contracenando com Valquíria, a filha bastarda de Vuh, enquanto o tímido Andrés escondia-se por trás de sacos de estopa, no papel de rocha, erguendo os braços ao ser açoitado pelos vagalhões de um mar tempestuoso, representado por Vuh, que fazia também o espião adulto, o acrobata aposentado e o arminho. Acho, não tenho certeza, que Andrés também ajudava Chispito na iluminação. Foi esta a minha única incursão pelos palcos; ao voltar de Arara Roxa, achei melhor me dedicar a coisas mais urgentes, como roubar canoas para ir remando até as Pedras Brancas, em busca dos melhores siris. Andrés continuou morando com a família de Vuh, o qual ele tinha tomado como uma espécie de guru.
Na casa de Vuh, a sede do grupo, Andrés já aprontava das suas: a novela “Aletria Elétrica”, lida em voz alta ou passada de mão em mão em cópias datilografadas em carbono, na qual ele ridicularizava os colegas. Ríamos muito dessas traquinagens, das quais ele poupava somente Siegfried Vuh. Era sábio o garoto prodígio, o embrião do grande escritor que um dia viria a ser sabia que a sua vida estava nas mãos do improvisado mestre. Naquele tempo, para ganhar um troco para o cigarro, ele costumava fazer traduções do inglês para a carteira de câmbio da agência local do Banco do Brasil. Como a casa de meus pais fazia fundos com a casa de Vuh, tendo inclusive um portão de acesso, uma passagem de servidão, era natural que, volta e meia, Andrés fosse filar um, dois, três pedaços dos gostosos bolos que minha mãe fazia. O seu favorito era nega maluca. De vez em quando, sentava-se para almoçar conosco. Apesar da fome nos olhos, era capaz de manter a educação e comer pouco, de acordo com a boa educação que recebera em casa. Minha mãe, apiedada, preparava-lhe um gordo farnel, como se o rapaz fosse viajar para longe. Várias vezes o vi deliciando-se com um bife frio ou um naco de carne de panela, sentado sob a mangueira secular que ficava na divisa dos dois terrenos, lambendo os beiços às escondidas. Lembro bem, como se fosse hoje, do enfant terrible na janela do meu quarto mostrando-me uma tela, onde reproduzira à perfeição (assim pensava eu, na minha prepotente ignorância) um quadro de Modigliani, o “Nu Sentado”. Como eu também pintava e desenhava, ele fazia questão da minha opinião, apesar de eu ser mais novo. Surpreso, pois até aquele momento eu sequer suspeitara do seu interesse pelas artes pictóricas, disse-lhe que estava muito bom. E realmente estava, dentro dos meus parcos conhecimentos da técnica da pintura; tinha eu somente 16 anos, era um intuitivo (ainda não ingressara na Belas Artes, da Emiliano Perneta, o que acabou tolhendo toda a minha criatividade, transformando-me em professor ao invés de artista). Mais surpreso ainda fiquei com a sua perspectiva de se profissionalizar como falsário dos grandes mestres. Será que ele falava sério, apesar da gargalhada? Alguns anos depois, reconheci a mesma gargalhada no Coringa, do Batman. Ou estaria o meu amigo sob a influência da mente distorcida de Vuh? Às vezes, as ideias do guru, no afã de estar sempre na contramão, de ser marginal a qualquer custo, podiam ser bem nefastas a uma alma em formação.
Ao me mudar para São Paulo, passei a acompanhar de longe a trajetória de Andrés, desde a publicação de alguns capítulos de “Aletria Elétrica”, na extinta revista Escrita. Com a publicação de “Monges Trapistas”, prefaciado pelo único poeta que conseguiu ultrapassar as fronteiras do Estado, teve início a sua tão almejada fama, embora ele em entrevistas recentes faça questão de dizer que nunca correu atrás dela. Agora, ele ocupa todas as prateleiras das livrarias com o best-seller “Os Saqueadores da Santa Ceia”, premiadíssimo, tanto aqui quanto lá fora. É sobre este livro que pretendo fazer alguns esclarecimentos. Primeiro, não tenho nada contra o uso que o autor faz do próprio pai como personagem, ridicularizando-o em praça pública. É comum em literatura o recurso à nossa própria vivência; nem só de ficção se faz um romance. Se Andrés de Lucca não quis mudar o nome do pai, isso é problema dele, e só a ele compete. Mas quando o autor relembra a primeira paixão, não correspondida, a adolescente Leonora Schiele, isto passa a ser da minha alçada. Conhecemos a garota quase ao mesmo tempo, com a diferença de um ano talvez, na ilha das Gralhas, quando ela contava entre 13 e 14 anos. Ora, Andrés, por que você, no livro, denigre a imagem da família Schiele? Essa família foi um marco para todos aqueles que privaram da sua intimidade. Você, certamente, não se perguntou se algumas dessas pessoas ainda estavam vivas, com filhos, netos, bisnetos, tendo que esclarecê-los sobre o diz-que-diz malicioso dos conhecidos a respeito da morte da matriarca Astra. As filhas de Leonora foram perguntar à mãe se era mesmo verdade o que está impresso na página 103: Mãe, o que é isso que estão dizendo sobre a minha vó? Não, Andrés, Astra não morreu de um coquetel de cocaína, ácido e uísque, como você fantasiou; sua já aguardada morte, embora não querida, ocorreu prosaicamente por problemas decorrentes da idade avançada, segundo os médicos. Ou a sua ficção quer ser mais real que a medicina? Outra coisa: a casa dos Schiele não era o antro que você pinta, à página 325, com portas caindo, incapazes de serem fechadas, ou sofás capengas, com molas saltadas que beliscavam a sua bunda, e nem mesmo brutamontes jogando pôquer a dinheiro e xingando em um dialeto estranho. Não, Andrés, Gustav, o marido de Astra, não era alemão, mas austríaco, natural de Viena. Sabe você que ele era tão querido que ao seu funeral compareceu toda a cidade de Hangares? Parecia até o enterro de um ídolo pop, como Francisco Alves ou Orlando Silva. Todos choraram a perda de Gustav, até mesmo os que discordavam das suas ideias políticas, as quais ele defendia com tanto ardor que chegava a emocionar os adversários. Gente dessa estirpe vem pouco à Terra, gente dessa natureza pertence a esferas mais sutis, são os governantes invisíveis do mundo. Até hoje, passados mais de 30 anos, Gustav ainda é lembrado com carinho. Quem pode se dar a tal luxo no nosso corrido mundo moderno, onde as pessoas, não contentes em atropelar as outras, atropelam a si mesmas? Sabe você que Bertoldo e Linda, os filhos mais novos do casal, também já faleceram? Portanto, não podem mais manifestar pesar pelas inverdades do seu livro. O guardamento de Linda foi comovente: um coral improvisado de mendigos, surgidos sabe-se lá de onde, cantou a “Ave Maria”, de Gounod. Mesmo desafinados, não houve quem não derramasse uma lágrima. Depois, tomaram um gole de café e se foram. Se estivessem vivos, Bertoldo e Linda teriam ido à sua casa só para lhe dar umas boas porradas. E Ferdinand (lembra dele, de apelido Mosquito), o mais velho, ficou muito sentido com o que leu. Como ele pode escrever essas mentiras? Sabe, não se deve brincar com a memória de uma família. Sei que vão dizer que à literatura tudo é permitido, mas em consideração à menina Leonora, que você descreve “linda como uma xícara de porcelana chinesa”, você poderia ter se valido do artifício do nome fictício. E, por falar em nomes, por que o do nosso amigo que morreu de complicações em decorrência da Aids foi omitido, se todos nós sabemos de quem se trata? Quanto cuidado! Ah, a família dele é influente aí na capital? E eu, como sei de tudo isso? É que, depois de dar várias cabeçadas na vida, acabei encontrando uma ocupação condizente: jardineiro na ilha das Gralhas. Pois é, eu não vendi a minha alma (conforme o nosso pacto. Lembra disso?), e, por mais incrível que pareça, ainda conservo os ideais rousseaunianos. Sou mesmo uma coisa ultrapassada, um bicho-da-concha.
terça-feira, 31 de março de 2015
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