quarta-feira, 11 de março de 2015
O CINEMA
Edson Negromonte
No Cine Ópera, o qual atualmente voltou a atender pelo antigo nome de Theatro Municipal, depois de uma reforma que lhe devolveu as linhas arquitetônicas originais, os jovens se encontravam para assistir a filmes muitas vezes com o prazo de validade vencido, cheios de emendas, remendos e cortes, mas principalmente para namorar, fora do alcance dos olhos dos pais. Minha primeira lembrança dessa casa de espetáculos, onde, na década de 30, se apresentavam muitos cantores operísticos, alguns até de renome internacional, como dona Carmen do Alentejo, vem justamente do dia da minha chegada à cidade, no último ano da década de 1960, quando minha família instalou-se no segundo andar de um sobrado, situado na rua principal, defronte ao cinema. Um pouco antes de começar a sessão das oito, os alto-falantes berravam algumas músicas, como ainda hoje é comum nos parques de diversões instalados temporariamente nos mais perdidos rincões do interior. Em minha primeira noite na cidade, entre velhas pérolas do cancioneiro popular, como "Índia" e "Meu Primeiro Amor", nas vozes de Cascatinha e Inhana, ao gosto do gerente, eis que subitamente o ar se enche de um familiar fraseado de contrabaixo e, então, os Beatles gritam:
– Don't let me down!
Para deleite meu e de minha irmã, que adorávamos os quatro cabeludos de Liverpool, eles insistem:
– Don't let me down! Nobody ever loved me like she does...
Logo em seguida, vinha "Pra Frente Brasil", o hino da seleção que disputaria a Copa do México, de onde sairíamos consagrados com o tricampeonato mundial de futebol, com craques da pelota, como Tostão, Pelé, Jairzinho e Rivelino, para alegria geral da nação, mas principalmente de Garrastazu Médici, o general-presidente:
Noventa milhões em ação
Pra frente Brasil do meu coração
Todos juntos vamos
Pra frente Brasil, Brasil
Salve a Seleção
De repente é aquela corrente pra frente
Parece que todo o Brasil deu a mão
Todos ligados na mesma emoção
Tudo é um só coração
Todos juntos vamos
Pra frente Brasil, Brasil
Salve a Seleção
Era o sinal tácito de que a sessão ia finalmente ter início, com trailers de filmes, que terminavam sempre com o indefectível Breve Neste Cinema, os quais não eram exibidos nunca, ou quase nunca, apesar dos cartazes permanentemente expostos no saguão. Seguia-se então o Jornal da Tela (o nome do produtor Primo Carbonari nos era familiar, como se fosse um parente próximo, mas do qual nunca víramos sequer o bigode), com as últimas notícias, principalmente as do campeonato nacional. Daí, geralmente, vinham dois desenhos animados, de no máximo sete minutos de duração, variando entre Tom & Jerry, Popeye e Pernalonga, mais um curta-metragem, que podia ser Chaplin ou o Gordo e o Magro, para ser exibido finalmente o longa anunciado no cartaz. Nos sábados à tarde, nas matinês, a molecada era brindada com uma sessão dupla, onde se podia assistir a velhos bangue-bangues, com caubóis do tempo do onça, mas que ainda causavam furor, mais episódios de séries produzidas para a TV americana, como Rin-Tin-Tin ou Lone Ranger, chamado indevidamente, no Brasil, de Zorro. Na porta do cinema, trocavam-se figurinhas e gibis. Quantas vezes dei dois, três gibis do Cavaleiro Negro ou do Flecha Ligeira em troca de um do Risko ou Antar. Após a sessão das oito, as pessoas iam passear na praça Coronel Macedo, em volta do chafariz e do coreto, onde a banda recebia os namorados com o bolero "Besame Mucho", a valsa "Sobre as Ondas" e o apaixonante hino da Marinha: "Cisne Branco".
Quantas vezes, junto com meu amigo Nico, fui expulso do cinema, em meio à sessão, por jogar do alto do balcão ovos de jatutá sobre a plateia entretida com o longa da semana ou as carícias amorosas. Então, o inevitável facho do lanterninha apontava em nossa direção e ficávamos terminantemente proibidos de entrar no cinema, coisa que burlávamos facilmente, na semana seguinte, pois éramos amigos da bilheteira que, aproveitando-se da ausência do gerente, deixava-nos entrar, sob a promessa de que nos comportássemos. Jatutá, vocábulo que não consta dos dicionários, é um caramujo, de porte médio, do qual colhíamos os pequenos ovos no Morro da Cruz e os deixávamos apodrecer, no quintal, durante os dias da semana, lentamente, sob a ação de um tímido sol de inverno, úmido, típico do litoral paranaense, para então transportá-los cuidadosamente nos bolsos do casaco e, no momento combinado, arremessá-los na plateia. Era gente gritando, xingando, quase vomitando, devido ao mau cheiro dos pequenos ovos devidamente preparados, quer dizer, apodrecidos.
Assisti, no saudoso Cine Ópera, durante todos os dias da semana, a "Sem Destino", o mais clássico filme de estrada de todos os tempos, o qual tinha no elenco Peter Fonda e Dennis Hopper, cavalgando cobiçadas Harley-Davidson, na tradição americana dos caubóis solitários, mas principalmente o iniciante Jack Nicholson, no papel do advogado bêbado. Primorosa a trilha sonora, com a guitarra pujante de Jimi Hendrix, a voz psicodélica de Grace Slick, do Jefferson Airplane e, é claro, o Steppenwolf, com a matadora "Born to be Wild". É um filme que traz, até hoje, às minhas nostálgicas narinas, como um cão doméstico farejando o passado em busca do lobo que outrora fora, a fragrância da adolescência, da descoberta da vida, do sexo, da droga, enfim, do arrombamento das portas da percepção. Na iniciática sala escura, também vi "O Exorcista", que me fez ir para casa às carreiras, desabalado pela deserta e infindável Avenida Matarazzo, à meia-noite, em busca da segurança do lar, onde eu achava que meus pais enfrentariam o Diabo por mim. Mas os filmes de terror que chamavam mesmo a minha atenção eram os do Zé do Caixão. Item obrigatório para os meninos; as meninas, esses seres sensíveis, se recusavam a entrar no cinema, enojadas de ver aranhas caranguejeiras, negras e peludas, andando calmamente pelo rosto da estarrecida atriz, de olhos esbugalhados, o medo genuíno. Ao escrever essas linhas, lembro-me agora do meu primeiro encontro com Mojica, em São Paulo, quando andando ao seu lado senti, em meio a uma animada conversação, o cheiro característico, guardado durante tanto tempo no baú da memória, talvez de carne em putrefação, quem sabe, o mesmo cheiro acre que associo hoje aos velhos celuloides, em preto e branco, capazes de combustão espontânea, ou, ainda, às figuras esquálidas de um circo mambembe, à luz que emana ininterrupta da sala de projeção de um velho cinema. Nem a carne tenra de Regan queimando, efervescendo, como um Sonrisal, sob a ação da água benta, foi capaz de produzir tal efeito em minha educação sentimental. Havia também os faroestes italianos, onde pontificavam Django e Sartana, além da inesquecível dupla de cômicos, também italianos, Ciccio Ingrassia e Franco Franchi, mas o que mais atraía a atenção dos jovens, levando-os a desembolsar os parcos caraminguás, eram certamente as pornochanchadas, típico produto nacional da época, com nomes de peso do nosso humorismo, como Grande Otelo, Costinha e Wilza Carla. No pequeno palco do Cine Ópera, apresentou-se, um dia, em carne e osso, o cômico Rony Cócegas, que levou a plateia ao delírio ao cantar "Upa, Negunho", em versão alterada para 78rpm, numa pândega imitação de Elis Regina. Prometemos que jamais esqueceríamos da breve passagem do grande humorista pela cidade. Mas a verdade é que esquecemos, e nem sequer lamentamos a sua morte, muitos anos depois.
A sétima arte tornou-se parte da minha vida, pois, até essa época, a minha única lembrança de uma sala de cinema era de quando, aos cinco anos, fui levado pelos meus pais para assistir a "A Dama e o Vagabundo", de Walt Disney, em Blumenau, cujo hall de entrada em tudo se assemelhava, pelo menos em minha memória construída, à do Radio City Music Hall, de "A Era do Rádio", o melhor filme de Woody Allen. Sim, eu também fiz o álbum de figurinhas, grudadas com goma de araruta, preparada no fogão da cozinha, pois ainda não tinha sido inventada a cola Tenaz. Quando esse clássico da animação passou em Antonina, no final da minha adolescência, eu afanei justamente o lobby card da cena mais brega de todos os tempos: os dois cachorros saboreando romanticamente o mesmo fio de espaguete, à mesa da cantina italiana. Guardei-o durante muitos anos; e, num surto nostálgico, preguei-o na parede do escritório, mas o tempo encarregou-se de transformá-lo em quase nada, em pó de pirâmide, a matéria-prima dos desertos, ou, melhor, em pretexto para este raconto.
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Bela, saudável e memorável recordação. E ainda tinha o Canal 100.
ResponderExcluirBem lembrado, Bó!
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